A propósito da homenagem que a Feira do Livro do Porto vai fazer a Manuel António Pina em 2023, o JPN entrevistou o seu amigo e biógrafo, Álvaro Magalhães, para quem a distinção já devia ter acontecido. No centro da conversa, a "singularidade" do escritor que chegava sempre atrasado e que preferia "perder-se" a chegar ao destino.

Manuel António Pina (1943-2012) faleceu há dez anos, mas o seu legado literário prevalece e tem prometido um lugar de destaque no ano que se avizinha: em 2023, anunciou a Câmara Municipal do Porto, o escritor vai ser o homenageado da Feira do Livro da cidade.

A propósito, o JPN entrevistou Álvaro Magalhães um dos amigos mais próximos do autor de “O país das pessoas de pernas para o ar” (1973) e de “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde” (1974), as primeiras obras que publicou.

Nascido no Sabugal, mas residente na maior parte da vida no Porto, Manuel António Pina estudou Direito. Foi advogado, técnico de publicidade, jornalista e escritor. No domínio da criação literária, emprestou a sua criativa imaginação ao teatro, ao ensaio, à crónica, mas foi na literatura infantil e na poesia que se evidenciou.

“A poesia era a coisa mais importante que havia para ele”, a poesia e a literatura infantil, que eram para ele uma e “a mesma coisa”, conta Álvaro Magalhães – autor da biografia póstuma de Manuel António Pina, “Para Quê Tudo Isto?”, publicada em 2021 pela editora Contraponto. “Manuel António Pina provou que a literatura infantil é muito importante”, diz ainda Magalhães, um dos autores deste género que reconhece no amigo uma inspiração.

Vencedor de múltiplos prémios – incluindo o Prémio Camões em 2011 -, Pina é dono de uma obra “difícil de arrumar” e distingue-se, na visão de Álvaro Magalhães, pela sua “singularidade”. O homem que marcava múltiplos encontros à mesma hora, que estava sempre atrasado e pronto para inventar uma história para se justificar, que “preferia perder-se” a chegar ao destino, era, para Magalhães, “único” e “original”, também como homem. Alguém que detestava os que se levam muito a sério e se ria “da seriedade do mundo”. 

Sobre a homenagem que lhe será prestada em 2023 na Feira do Livro, Álvaro Magalhães – também ele autor, com mais de 120 títulos publicados – não é de meias-palavras: “A homenagem já é muito tardia. (…) É, de longe, um poeta e um criador muito mais original e importante do que muitos outros que já foram homenageados.”

JPN – Como e quando é que conheceu o seu amigo Manuel António Pina?

Álvaro Magalhães (AM) – Conheci-o no início dos anos 80, quando eu tinha uma editora de poesia e editei o segundo e terceiro livro de poesia dele. Além disso, como ambos escrevíamos literatura infantil e vivíamos no Porto, era quase inevitável que nos conhecêssemos, ou melhor, era impossível que não nos viéssemos a conhecer.

JPN – Ele estudou Direito. Como é que foi parar ao jornalismo?

AM – Ele, na verdade, pouco estudou Direito, como eu conto na biografia. Inscreveu-se na Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra], porque não era preciso ir às aulas. Ele vivia no Porto, mas estava a estudar em Coimbra e, então, não ia lá às aulas.

Acho que ele tirou o curso sem ter frequentado uma única aula. Ia só fazer os exames e as provas de frequência, e quando ia fazê-las, pedia boleia do Porto até Coimbra. Depois, até abandonou o curso, quando começou a trabalhar no jornalismo, que era aquilo que queria fazer. Ele gostava de escrever e de lidar com a linguagem e com as palavras.

Embora ele tenha exercido advocacia durante uns anos (quase sempre a meias com o jornalismo) e tenha sido um excelente advogado, pois era uma pessoa dotada, ele praticamente não tirou o curso. O curso dele foi uma aldrabice.

Apesar disso, o que ele gostava mesmo era de jornalismo, tanto que chegou a uma altura que achou que não podia conciliar a literatura com o jornalismo e tinha de escolher uma profissão e, sem pensar duas vezes, escolheu o jornalismo. 

JPN – Enquanto jornalista, ele acompanhou o 25 de Abril no Porto, juntamente com o Germano Silva. Pode contar-nos um pouco mais sobre isto?

AM – Esse episódio que falou, até desconhecia. Agora, o que eu sei e contei, foi que ele teve uma vida revolucionária antes do 25 de Abril. Era militante de um partido que se chamava Movimento de Esquerda Socialista, que já acabou, e era um partido posicionado na chamada extrema-esquerda. Era um partido armado, com sede na Praça da Batalha, e, frequentemente, eram atacados por outros partidos e defendiam-se com tiros e granadas. Aquilo foi um período terrível da nossa história, de grande confusão, em que toda a gente estava armada e admira-me que não tenha morrido mais gente, porque havia armas nas mãos de toda a gente. Os partidos não discutiam entre eles, trocavam tiros. E ele pertencia a esse partido e participou, assim, em muitas ações armadas.

Houve um episódio, onde o povo tomou conta de um quartel, em Vila Nova de Gaia, que se chamava o Regimento de Artilharia. Durante muito tempo ocuparam aquele quartel e impuseram a ordem revolucionária. Tinham barricadas à porta, defendiam-se de ataques, era mesmo quase uma guerra civil, e ele participou ativamente como militante de esquerda, nesse período. E sei também da grande alegria que ele, como todos os que lutaram por essa liberdade, depois sentiram quando a liberdade finalmente chegou.

JPN – Ele era, acima de tudo, o quê: um advogado, um jornalista, um cronista, um escritor? Para si quem era o verdadeiro Manuel António Pina?

AM – Sem dúvidas nenhumas que era o poeta. Esse é que era o primeiro. Ele estava sempre disponível e sintonizado para a poesia, tanto que tinha “ataques” quando tinha ideias poéticas. Teve várias multas por tomar apontamentos quando estava a conduzir. Estivesse ele em qualquer lado, fosse um julgamento, a dormir, a trabalhar, ele tinha que tomar nota daquilo.

Estava sempre sintonizado. Tinha sempre as antenas viradas para a construção da poesia. De tal forma, que os poemas dele demoravam muito tempo a fazer. Era capaz de andar dez anos à volta do mesmo poema. Esse é que era o verdadeiro Manuel António Pina que eu conheci. A poesia era a coisa mais importante que havia para ele e, mesmo quando ia para o jornal trabalhar, como jornalista, na realidade, estava a trabalhar na sua poesia.

Ele dirigia a secção de Cultura e, enquanto os outros trabalhavam, ele estava a copiar os poemas dele, isto é, a passar para a máquina de escrever, que na altura ainda não havia computadores, embora ele também tenha trabalhado com computador no fim da vida. A maior parte dos poemas dele, escritos à máquina, eram em papel do “Jornal de Notícias”, porque ele em vez de estar a trabalhar, estava a trabalhar para ele, ou seja, para a poesia. A poesia estava sempre em primeiro lugar. Outras atividades, como advogado, jornalista, como ele dizia, eram só para ganhar a vida, porque tinha que se ganhar a vida.

Houve outra coisa que ele fez também para ganhar a vida, que fez comigo, que foi séries de televisão. Fizemos cerca de duzentos episódios de séries de televisão. Tudo isso ele fazia porque eram coisas que tinha que fazer, mas a única coisa, de tudo isso, que ele fazia por prazer e que lhe dava alegria e sentido, era a poesia. A poesia e a criação literária em geral, porque ele também escreveu muita literatura infantil. E, para ele, escrever literatura infantil ou poesia não era diferente, era a mesma coisa.

Era um autor muito original e muito único. Ainda hoje é difícil de classificar ou de “arrumar” a poesia dele.

JPN – Enquanto autor e escritor o que o distinguia dos outros?

AM – Era a singularidade. Era um autor muito original e muito único. Há autores, seja de poesia ou de literatura infantil, que foi o que ele fez, que são bons autores, mas que são parecidos com outros. Seguem e desenvolvem uma tradição. Mas ele era completamente original e completamente diferente. Os primeiros livros infantis dele eram objetos estranhos. Além disso, ele era um poeta que já nasceu feito. O primeiro livro é praticamente igual ao último, não há oscilações.

Os primeiros livros eram objetos únicos e inclassificados. Ainda hoje é difícil de classificar ou de “arrumar” a poesia dele. Enquanto qualquer outro poeta é facilmente “arrumável numa gaveta”, como pertencente aos poetas românticos ou aos poetas do real, ele não se consegue meter em lado nenhum. É absolutamente único e singular, seja como poeta, seja como autor de literatura infantil, e seja também como pessoa. Nós como pessoas também acabámos por ser todos parecidos uns com os outros, mas ele tinha um conjunto de características que faziam com que fosse único e singular.

Álvaro Magalhães, à direita, ao lado de Manuel António Pina, numa sessão de apresentação de um livro de crónicas do escritor falecido em 2012. Foto: D.R.

JPN – Qual é a importância que a infância tinha na vida dele?

AM – Não tanta como parece. Ele tinha uma memória da infância que era, como todas as infâncias, uma memória boa, de uma experiência única. Mas não era assim um nostálgico da infância.

A infância servia-lhe principalmente para a poesia, para alimentar os poemas, mas não era das pessoas mais nostálgicas da infância que já conheci. Eu, por exemplo, sou muito mais. 

JPN – Qual foi o principal motivo que o levou a inspirar-se no seu amigo Pina para algumas das suas personagens literárias?

AM – Não foi só inspirar-me nele. Eu sou autor de literatura infantil porque ele existiu, porque existiu a literatura dele. Senão, teria feito outras coisas: romances, poesia. Era o que eu queria fazer. Outros autores de literatura infantil acham o mesmo.

Manuel António Pina provou que a literatura infantil é muito importante. Podem-se fazer livros tão bons para criança como se faz para adultos, ou melhor. Vimos que era possível haver vida em Marte. Estávamos perante um território de oportunidades literárias. Era possível trabalhar a língua na literatura infantil e obter resultados incríveis.

Por isso é que mesmo nas coisas que escrevo não escondo, nunca escondi, a influência que tive dele. Aliás, nos primeiros livros infantis que escrevi, nos anos 80, há uma personagem que tem o nome dele. Ainda hoje recrio muitas coisas que ele fez, porque não só não posso esconder essa influência, como tenho orgulho nela e faço questão de a mostrar.

JPN – De onde surgiu a ideia de criar o Clube de Amigos à Espera do Pina?

AM – Uma das particularidades do Pina é que ele chegava sempre atrasado ou nem chegava a aparecer. Às vezes, marcava encontros com três ou quatro pessoas no mesmo dia e à mesma hora, portanto, ele não podia ir a todos e o mais provável era ir a nenhum. Mas como ele era uma pessoa incapaz de dizer “não”, dizia sempre “sim”. Depois, chegava à altura e ele não podia, ou não lhe apetecia, ou tinha outra coisa para tratar.

A vida dele baseava-se em inventar desculpas elegantes por não ter aparecido. “Não imaginas o que me aconteceu”, era a frase mais típica dele, e inventava na hora uma história. Ele tinha muito jeito para mentir. Ele inventava histórias e as pessoas acreditavam.

Uma vez, telefonou-me para me contar uma desculpa que tinha inventado para não ir a uma escola. Tanto eu como ele éramos muitas vezes convidados para ir a escolas. Como não me apetecia ir, ele disse-me que tinha inventado uma desculpa bestial. Disse-me para inventar que tinha conjuntivite, mas para dizer também os medicamentos que estava a tomar para eles acreditarem, porque considerava que os pormenores eram muito importantes, porque senão as pessoas não acreditavam.

Portanto, ele tinha essa particularidade de chegar atrasado. Nós frequentávamos o café “Convívio” e ele marcava os encontros lá. Quando víamos pessoas inquietas a olharem sempre para a porta, eu e os meus amigos achávamos logo que elas estavam à espera do Pina. Em qualquer lado da cidade, havia sempre alguém à espera dele.

Ele faltou uma vez a uma festa de homenagem que lhe fizeram no Campo Alegre. Nesse dia, eu estava a conversar com ele no café e de repente apareceu uma pessoa muito indignada, porque toda a gente estava à espera dele. E ele disse: “Era hoje?”. Essa frase também era muito típica dele.

Quando era advogado, também se esquecia muitas vezes dos dias em que tinha julgamento. Uma vez, um homem veio ter com ele indignado por não ter aparecido no julgamento e ele disse também: “Era hoje?”. “Era hoje?” e o “não sabem o que me aconteceu” eram as frases que ele mais dizia.

Isto também acontecia com o nosso grupo de amigos. Nós marcávamos jantares e ele não aparecia. Nós ficávamos à espera dele enquanto ele escrevia crónicas à última da hora para os jornais. Ele acabava-as às onze da noite e nós ficávamos à espera dele desde as oito para irmos jantar. Estávamos sempre à espera dele.

E depois de ele morrer, nós achámos que devíamos continuar à espera dele, à espera que ele aparecesse. É essa a homenagem que eu faço. Nós continuamos a fazer os jantares no café “Convívio” e ainda hoje vemos pessoas inquietas a olhar para a porta como se estivessem à espera dele para depois, quando ele aparecesse, dizer: “Nem sabem o que é que me aconteceu”.

JPN – O que é feito nas reuniões do Clube?

AM – O que sempre fizemos quando ele era vivo. Jantares, convívios, contar anedotas, rirmo-nos uns dos outros e da vida de uns dos outros. No fundo, é um modo que nós tínhamos de recuperar a infância, as brincadeiras e a alegria. Como naquele grupo havia ilustradores, escritores, intelectuais e professores universitários, as pessoas achavam que nós nos encontrávamos para falar de coisas intelectuais, como a literatura e a poesia. Mas essa não é a verdade. Quando nos encontramos, contamos anedotas, falamos de futebol, rimo-nos uns dos outros, dizemos disparates, piadas, etc.

Uma vez, um realizador fez um documentário sobre o Pina para a televisão, que passa regularmente na RTP 2, chamado “Um Sítio Onde Pousar a Cabeça” [nome, também, de um livro de poesia do escritor, datado de 1991]. É um documentário de uma hora, onde ele aparece a falar e que também tem depoimentos de várias pessoas, inclusive eu. Ele fez questão de gravar um dos convívios que nós tínhamos. Mas quando passou o documentário, apareceu essa cena, mas sem som. Via-se o grupo a conversar, mas não havia som. E eu perguntei ao realizador o porquê de isso ter acontecido e ele disse que nós não dizíamos nada que se aproveitasse, só dizíamos asneiras, ou seja, não havia conversas sérias.

Ele, também, não era uma pessoa séria, era uma pessoa que estava permanentemente a brincar. Ele detestava as pessoas que levavam tudo a sério, que se achavam muito importantes. Ele tinha um verso, que eu citei num livro [“O Senhor Pina”], que prova isso: “As coisas sérias que cómicas que são”. Portanto, ele ria-se da seriedade do mundo, e tinha muita graça. Muitas vezes, a história que ele contava não tinha graça; a maneira como ele a contava é que tinha graça.

JPN – Qual foi a maior descoberta que encontrou ao escrever a biografia dele, a que deu o título de “Para Quê Tudo Isto”?

AM – Foram duas. Uma foi que ele praticou karaté durante uns seis ou sete anos e que até partiu duas costelas. Para mim, isso foi muito inesperado, porque ele não falava muito disso.

E também descobri uma namorada que ele teve entre os 20 e os 27 anos da qual nunca falou. Conheci-a e ela mostrou-me cartas e contou-me histórias de amor deles e uma em especial que era dramática. Ela deixou-o para casar com um primo, mas depois ele morreu. Foi uma descoberta incrível.

A homenagem [da Feira do Livro do Porto 2023] já é tardia, (…) porque é, de longe, um poeta e um criador muito mais original e importante do que muitos outros que já foram homenageados.

JPN – Já se passaram dez anos sobre a morte do seu amigo. Do que é que sente mais falta?

AM – Naturalmente, o que sinto mais falta é desses convívios, dessa alegria quase infantil. Na maior parte das noites em que íamos ao Convívio, quando o café fechava às duas da manhã e tínhamos de sair, ele nunca queria ir para casa dormir. Queria continuar o convívio, a brincadeira e, às vezes, arranjávamos sítios para onde ir.

Havia um atelier de uns escritores amigos ou, também descobrimos, uma casa que nos deixava entrar, onde se jogava bilhar e nós passávamos lá a noite a jogar, a rir e a brincar, e ficávamos lá até às sete, oito da manhã. De facto, foi nesses momentos que ele era mais livre, mais feliz. E é realmente desses momentos que eu tenho mais saudades.

JPN – Qual é a memória que tem mais presente dele?

AM – As histórias desses convívios, mas também viagens que eu fiz com ele ao estrangeiro. Às vezes, íamos a Espanha e perdíamo-nos sempre pelo caminho. Isso chegou a acontecer comigo e com outros amigos.

Ele preferia perder-se, conviver, conversar, brincar e descobrir coisas novas do que chegar lá. Às vezes, chegávamos aos colóquios e às conferências quando aquilo já tinha acabado, e eu dizia que a culpa era dele e que ele devia ir pedir desculpa por termos chegado atrasados. Depois, lá ia ele com a frase: “Nem sabem o que nos aconteceu”.

JPN – Manuel António Pina vai ser a figura homenageada na próxima Feira do Livro do Porto. Como acha que ele acolheria essa notícia?

AM – Com naturalidade. Ele teve muitas homenagens, sobretudo depois de ter ganho o Prémio Camões [em 2011], e não ficava fascinado com isso. Ficava um bocado desconfiado e na dúvida se teria feito batota.

Eu, pessoalmente, acho que essa homenagem já é muito tardia, porque há muito que ele merecia ser homenageado, porque é, de longe, um poeta e um criador muito mais original e muito mais importante do que muitos outros que já foram homenageados.

Artigo editado por Filipa Silva