No passado domingo (11), dezenas de pessoas reuniram-se no Jardim do Marquês para contestar o fim da Seiva Trupe. O diretor artístico sublinhou que a manifestação “saiu da sociedade civil” porque “o Porto não deixa que lhe pisem os calcanhares”.

Fotografia: Joana Rita Cirne

A Seiva Trupe, emblemática companhia de teatro portuense, enfrenta a possibilidade de encerramento, no ano em que completa 50 anos. A falta de apoio da DGArtes pode deixar atores e técnicos sem trabalho a partir de dia 1 de janeiro de 2023. Jorge Castro Guedes, diretor artístico da companhia, está certo de que Pedro Adão e Silva “reverterá rapidamente esta situação”, porque “sabe que é um disparate”.

Nem a ameaça de chuva parou os manifestantes que se uniram este domingo (11), no Jardim do Marquês, solidários com a Seiva Trupe e todas as companhias do norte que ficaram de fora do Programa de Apoio Sustentado às Artes (PASA) para o triénio 2023-26, promovido pela Direção-Geral das Artes (DGArtes).

Mafalda Covas tem 23 anos e estreou-se na Seiva Trupe este ano. Ao JPN, confessou que achava “que tinha encontrado uma casa para ficar”. Agora é possível que fique sem trabalho. Foi à manifestação pela “casa cheia de história” onde deseja continuar a atuar. Levou crisântemos para distribuir, uma flor que representa “a vida e a morte”. Ao seu lado, havia duas caixas onde se lia “com apoio” e “sem apoio”. Perguntou aos presentes se queriam que pousasse o crisântemo na caixa “da vida, com apoio, com teatro” ou na “caixa da morte”. Ganhou a vida e rapidamente os crisântemos começaram a ser distribuídos. Estavam em todo o lado, nos cabelos, nas bolsas, nas mãos.

Aos poucos, nomes maiores da Seiva Trupe, como Jorge Castro Guedes e Júlio Cardoso, um dos fundadores, foram pegando no megafone para expor o que sentiam sobre os apoios que podem nunca chegar. Criticaram o “júri ad hoc” que “desconhece a atividade dos concorrentes” e garantiram que esta “é uma decisão política”.

O que pedem é que sejam apoiados “todos os [projetos] elegíveis”, o que acontece sempre que a avaliação fica acima dos 60%. Contudo, a verba disponível no programa da DGArtes esgotou antes de todas as companhias serem contempladas. A Seiva Trupe é uma delas, apesar de ser avaliada com 66%. Assim, se a decisão não for revertida, não lhes chegará dinheiro nenhum e serão obrigados a cessar atividade.

Nesta fase, ninguém parece disposto a baixar os braços e está em curso uma petição, que podia ser assinada no local e também está disponível online. Até à data conta mais de 2 mil assinaturas. É endereçada ao ministro da Cultura e reclama a “resolução da situação criada à Seiva Trupe”, pedindo uma intervenção direta, “mesmo que por exceção”, invocando as “características únicas desta e de outras Companhias que sejam idênticas a ela, no reconhecimento de uma discricionariedade pela positiva“, pode ler-se no documento.

Garantem que o próximo passo, caso nada mude, será o requerimento hierárquico, que visa a impugnação de um ato da Administração Central. Castro Guedes garantiu que “o Porto não deixará a Seiva Trupe morrer”.

Júlio Cardoso é um dos fundadores e uma das caras do legado da Seiva Trupe. A voz com que se dirigiu aos manifestantes evidenciava os anos de palco e dispensava megafone. Fez questão de relembrar o “pioneirismo” que sempre distinguiu a companhia e “atividades paralelas” que desenvolveu durante dos 50 anos de existência, como “conferências, recitais de música, poesia, jornais falados, mesas redondas, ciclos de cinema”. Não tem dúvidas da revisão da decisão: “[o ministro da Cultura] vai pensar um bocadinho e vai concluir que isto é uma absurdidade monstra”. Mas confessou que o “aborrece chegar ao fim da vida e ainda estar de joelhos perante mediocridades”.

Para lá do Porto, também é importante “afincar o pé contra uma situação ridícula”

Não foi só a Seiva que se fez ouvir. A Filandorra, a mais proeminente companhia de teatro de Trás-os-Montes, posicionou-se lado a lado com os portuenses. Também obtiveram uma avaliação elegível para o apoio da DGArtes, mas foram excluídos por falta de verba. Vítor Santos é ator em colaboração com a Filandorra, mas em tempos já foi residente e esteve presente na fundação da companhia, há 36 anos. Estava no Jardim do Marquês porque acha necessário “afincar o pé contra uma situação ridícula”. Foi apanhado de surpresa por este corte: “chegam-nos zero euros” num ano em que “aumentou tanto a disponibilidade financeira para a cultura”. Há uma diferença, no entanto, que a distingue da Seiva Trupe: a companhia transmontana pode sobreviver mais tempo porque tem “uma rede protocolar de 20 municípios” que lhe faz “chegar metade das necessidades”. Este ano têm de sobreviver com metade do previsto, o mais provável é ter de reduzir o efetivo da companhia, que conta com mais de 10 profissionais, com “tudo em dia”.

David Carvalho, diretor artístico da Filandorra, vincou que “não dar dinheiro aos criadores para terem liberdade para criar é como não dar pão a quem tem fome”. Descreveu esta situação como um “crime” igual à “censura no tempo de Salazar”: “é igual ao que o Estado Novo fascista fazia do ponto de vista político”. As críticas ao ministro da Cultura prosseguiram e pairava um clima geral de cansaço: “nunca pensei que aos 66 anos tivesse de fazer estas coisas”, afirmou.

Ao JPN, José Caldas, diretor artístico da Quinta Parede, fez questão de relembrar outras companhias que também não vão receber apoio: a Pé de Vento, Jangada Teatro ou a Varazim Teatro. Isso leva-o a falar num possível padrão: “parece que é uma perseguição ao Norte ou às pequenas cidades”. Poucos minutos antes, Júlio Cardoso tinha lembrado uma frase que António Reis, co-fundador da Seiva Trupe, recentemente falecido, dizia frequentemente: “para sermos iguais ao que se faz na capital do Império temos que ser nove vezes superiores”. A Quinta Parede não participou no concurso em questão, mas José Caldas, que já encenou várias peças noutras companhias, mostrou-se solidário com os projetos que podem fechar portas em breve.

Nos apoios bienais, 19 candidaturas não vão receber apoio apesar de elegíveis, algumas com avaliações acima dos 70%. Nos quadrienais, são seis as que ficam de fora (entre elas a Seiva Trupe). Apenas uma não atingiu os 60% necessários à elegibilidade.

Este ano, houve aumentos substanciais no financiamento para as artes. Em maio, a DGArtes tinha anunciado uma verba de 81 milhões de euros, mas em setembro o ministro da Cultura anunciou um reforço relativo aos concursos quadrienais. Havia 148 milhões de euros disponíveis, mais 78,9 do que no quadriénio anterior. O teatro ficou com a maior fatia. Para os apoios quadrienais, a DGArtes disponibilizou 51,360 milhões de euros – mais 99% do que no ciclo anterior. No caso dos bienais, seis milhões de euros, mais 6% do que no ciclo 2020/2021.

PCP, Bloco de Esquerda e PSD já requereram a presença do ministro da Cultura para prestar declarações sobre os concursos do PASA no parlamento. Pedro Adão e Silva estará presente numa audição regimental em janeiro.

Por enquanto não se vislumbra uma solução, mas Júlio Cardoso sente-se “leve, com o peso de uma borboleta”, porque considera ter “razão”. “Existimos, estamos vivos” garantiu.

Artigo editado por Fernando Costa