Depois de “Shoplifters”, Hirokazu Kore-eda traz-nos mais um drama sob o tema da família. Porém, desta vez, este conceito dá uma volta completa e transforma-se numa entidade abstrata, disfuncional e, acima de tudo, relativizável.

Em “Broker” (2022), a ideia de partir de um esquema de tráfico de bebés para a humanização dos problemas do aborto e do abandono parece demasiado criativa. No entanto, os diálogos não deixam de ser credíveis, com uma estrutura frásica simples e adequada à classe social das personagens, aliás bastante característica do cinema do japonês. Este aspeto, porque genuíno, confere ao seu cinema uma certa veracidade, que o torna mais comovente.

Na realidade, as “baby boxes”, onde So-young (Bae Doona) abandona o seu filho, estão espalhadas um pouco por todo o mundo, e permitem que milhares de mães deixem os seus filhos ao encargo de uma instituição. Kore-eda explora, a partir desse ponto, o que estará por trás dessa decisão, construindo um filme naturalista e, acima de tudo, humano.

“Broker” é uma narrativa bem construída, acompanhada de imagens delicadas, com uma edição exímia. Esta, fabrica o ambiente melancólico do filme, que resvala muitas vezes para um tom depressivo e para paisagens taciturnas: noites à beira-mar, rodas-gigantes e um toque de road trip que acompanha as cenas.

Lee Ji Eun, mais conhecida pelo seu nome artístico IU, em “Broker”

A trama apresenta, porém, uma complexidade desnecessária, aspeto que vemos também em “Shoplifters”, mas onde se justifica muito mais, ainda assim (note-se que o magnum opus de Kore-eda estreou em Cannes em 2018, onde foi vencedor da Palma d’Ouro, e posteriormente nomeado aos Óscares). Embora com uma morte completamente dispensável e conspirações sem sentido, o roteiro de “Broker” nunca resvala para clichés hollywoodescos, mesmo quando pensamos que o vai fazer (em momentos como a luta num posto de lavagem automática).

Há, na verdade, um travão subtil nos diálogos e nas cenas que começam a tornar-se demasiado explicitamente filosóficas, reservando as considerações individuais apenas ao espectador. A cena do telhado com a detetive e So-young é a que mais adentra no debate sobre o aborto e o abandono (“matá-lo antes de nascer é um crime menor?”), mas o diálogo esvanece-se levemente.

É, no entanto, desta dualidade entre as duas “soluções possíveis” que nasce todo o argumento (“matar” – ou privar de viver – vs. “deixar morrer” metaforicamente um recém-nascido sem acompanhamento e afeto).

O ritmo do filme é ideal, dando tempo ao espectador para digerir e refletir, e originando um bonito ensaio sobre o amor e a esperança, com excelentes interpretações, que chega às salas portuguesas a 5 de janeiro. A não perder, mas não se esqueça do guarda-chuva. Agradece depois.

Artigo editado por Paulo Frias