Na conferência de imprensa realizada esta segunda-feira (13), a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa apresentou dados e relatos que têm início em 1950. 25 casos foram entregues ao Ministério Público, mas há abusadores que ainda estão no ativo.

Altar interior de igreja católica. Foto: Circe Denyer/Public Domain Pictures

“O abuso acontecia na casa dos próprios pais, numa casita que havia no quintal para guardar coisas”, conta a irmã de uma das vítimas, que testemunhou perante a Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa.

A testemunha informou que o padre teria, à data dos factos, cerca de 40 anos, e visitava a casa após a morte do pai, para apoiar a mãe. Um dia, conta, ouviu sons estranhos oriundos do depósito. Foi ver o que acontecia e presenciou o abuso. O irmão estava “despido de calças e roupa para baixo e o padre assim meio que no chão a pôr o sexo dele na boca”. 

A denunciante afirma que nunca tinha visto algo semelhante na vida, e que tudo pareceu passar “muito rápido”. Fugi com o olhar, e quando voltei a olhar, estava o meu irmão agora no chão, como um animal, o padre por trás dele, a enfiar-se nele, e ele aflito de lágrimas a chorar”. A irmã da vítima disse que seu irmão faleceu recentemente, e jamais falou disso antes, mas que ela não suportava mais aguentar esta situação sozinha: “Não posso ir para o outro mundo, falecendo a carregar comigo este segredo”.

No “mínimo” terão existido 4815 vítimas de abusos desde 1950

Diversos relatos como este estão expostos no relatório final da CI, que validou 512 testemunhos, entre os 564 recebidos. Os primeiros casos remontam a 1950, mas houve um pico entre os anos 60 e 90. Segundo Pedro Strecht, coordenador do estudo, os depoimentos permitiram à equipa de investigação identificar, no “mínimo”, 4815 vítimas de abusos na igreja.  Os distritos onde os casos mais ocorreram foram Lisboa, Porto, Santarém, Braga e Leiria.

Embora estes números sejam elevados, apenas 25 casos foram enviados ao ministério público, pois a maioria dos possíveis crimes já prescreveram. Álvaro Laborinho Lúcio, ex-ministro da justiça e membro da comissão, esclareceu que nas situações de abuso sexual de crianças, as queixas devem ser prestadas até a vítima fazer 23 anos. Após isso, o crime fica sem efeito. O ex-ministro diz que a comissão chegou à conclusão que esta idade deve ser aumentada para os 30 anos. “Muitas pessoas diziam que não conseguiam falar antes”, esclarece Laborinho Lúcio.

Pedro Strecht refere que o relatório aponta uma maioria de casos de abusos com crianças do sexo masculino, mas que as de sexo feminino também aparecem em número “importante”. O coordenador contou o testemunho de uma jovem que vivia num lar católico para meninas. “Estávamos as três no mesmo quarto, cada uma foi uma noite com ele”, afirma a jovem, referindo-se ao diretor do lar. “As meninas sabiam, mas não se falava disso entre nós”.

Para as vítimas, “o senhor padre é a voz de Deus”

O psiquiatra e também membro da comissão Daniel Sampaio disse na apresentação do relatório que, em média, os abusos sexuais de menores ocorrem até os 13 anos, sendo a grande maioria em crianças de 9 e 10 anos. A média de idade das vítimas do relatório da comissão, de acordo com Pedro Strecht, era de 11,2 anos

Sobre os abusadores, o documento aponta que 96% eram homens e 77% padres. O psiquiatra afirma que é difícil entender o que se passa “psicopatologicamente”, e que é necessário que os abusadores tenham acompanhamento terapêutico, não apenas espiritual.

Pedro Strecht acrescenta que os abusadores eram muitas vezes uma parte frequente da vida das vítimas, de acordo com os testemunhos recolhidos. “Tenho fotos do meu abusador no meu batizado, olho diversas fotos e ele está sempre lá“, disse Strecht, dando voz a uma das vítimas.

Daniel Sampaio explica que a principal característica dos casos de abuso é o poder que o adulto tem sobre aquela criança. No caso dos abusos na igreja, a relação espiritual é preponderante para os casos de abusos. “Em muitas das entrevistas que realizei, o senhor padre é a voz de Deus”, afirmou o psiquiatra. 

Sampaio faz questão de ressaltar que vários distúrbios psicológicos resultam dos abusos. As crianças que foram abusadas demonstram transtornos de stress pós-traumático, ansiedade e até depressão. As vítimas também estão mais propensas a terem problemas de abuso de álcool e drogas. Em alguns casos, desenvolvem até mesmo esquizofrenia.

Ainda existem abusadores no ativo

Por sua vez, Laborinho Lúcio referiu que alguns dos relatos descrevem casos de padres que ainda estão no ativo. A Comissão está a finalizar uma lista de nomes destes abusadores para enviar ao Ministério Público para investigações. Esta lista será também entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para que a igreja possa tomar suas decisões de maneira institucional a respeito da posição dos abusadores ativos. “Não a enviamos apenas para a meterem no arquivo”, afirmou Lúcio.  

Igreja faz pedido de desculpas às vítimas

Durante a tarde desta segunda-feira (13), D. José Ornelas, em declarações aos jornalistas, pediu “perdão” a “todas as vítimas”. O bispo de Leiria-Fátima, que preside à CEP, afirmou ainda que as conclusões apresentadas horas antes no relatório da Comissão Independente são “uma ferida aberta que nos dói e envergonha”. 

O arcebispo de Évora, D. Francisco José Senra Coelho, à saída da sessão de apresentação do relatório, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, declarou que a igreja tomará medidas para garantir que as estruturas sob alçada da Igreja Católica sejam as “mais seguras do país”.

“O que pensam fazer de agora em diante?”

Esta foi a primeira vez que 48% das vítimas falaram sobre os abusos que receberam. Uma delas foi enfática: “espero que muita coisa mude” afirmou, “por isso gostava de dirigir a pergunta à igreja: O que pensam fazer de agora em diante?” Outra vítima disse que se sentiu confortável para falar pela primeira vez , pois a comissão “parece-me uma iniciativa séria, independente e descomprometida”, palavras reproduzidas no relatório que já se encontra disponível online, em versão integral

Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro