Mafalda Mendonça faz parte do grupo de 12 autores que pintou o mural “Para Agustina - Extravagante Retrato de Família”, no Porto. A artista é arquiteta de formação, mas na sua vida coexistem diferentes formas de arte.

A composição do mural artístico contou com a participação de 13 artistas. Foto: Diogo Silva / CCDR-Norte, cedida por Mafalda Mendonça

Mafalda Mendonça, de 34 anos, é uma das artistas que deu vida ao mural de 120 metros em homenagem à escritora Agustina Bessa-Luís. Quem passa pela Via Panorâmica Edgar Cardoso, junto à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não fica indiferente à beleza singular da obra. Atualmente, a artista está a tirar um doutoramento na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), onde já concluiu a licenciatura e mestrado integrado em arquitetura. Para além de arquiteta é, também, pintora, cenógrafa, coreógrafa e bailarina.

O livro “Dentes de Rato” foi a obra literária da escritora nortenha escolhida pela pintora para representar no exterior do muro da CCDR-Norte. Sobre a razão que motivou a decisão, Mafalda confessa que foi a primeira obra de Agustina que leu. “É um livro para crianças, mas não é infantil. Além de tudo, é absolutamente autobiográfico, é uma espécie de espelho da Agustina”.

Para construir a pintura, Mafalda foi, também, buscar inspiração à autobiografia da autora natural de Amarante, “O Livro de Agustina”, na qual se percebe que “existe um cruzamento entre a vida real de Agustina e a vida de Lourença”, a personagem principal de “Dentes de Rato”. 

A maçã que a criança segura serve de símbolo que representa a sua identidade. Foto: Inês Silva

São vários os elementos representados que remetem quer para a personagem, quer para a ilustre figura da literatura portuguesa. A maçã funciona como um “símbolo” que representa a identidade de Lourença e “o facto dela estar sempre a segurá-la é como se estivesse a segurar a [sua] identidade”, uma vez que o título do livro se deve ao facto de “dentes de rato” ser o apelido da personagem, que “desde pequenina pegava nas maçãs, dava-lhes uma trinca e voltava a pousá-las”. 

De igual forma, as cores carregam consigo significado, além de conferirem harmonia à obra. “Os verdes e os azuis têm muito a ver com a perceção que tenho do livro, que é uma sensação de subtileza muito grande na passagem do tempo”. “O fundo manchado contrasta com a serenidade das figuras, porque eu queria passar essa ideia de transformação constante, seja da própria personagem, seja dos lugares que a acompanham ”, explica Mafalda Mendonça.

As posições em que as figuras foram delineadas contribuem para construir a história e conferem-lhe harmonia. Foto: Inês Silva

Enquanto bailarina e coreógrafa, Mafalda realça a importância que a postura corporal das figuras que representa assume na dimensão figurativa das suas obras. “Nenhuma posição é por acaso, quase que coreografo quando estou a pintar, porque para mim é muitíssimo importante aquilo que quero dizer com a pintura”. A protagonista Lourença ilustrada no mural é um exemplo disso – da esquerda para a direita, a maçã que Lourença segura atrás das costas vai sendo revelada pouco a pouco, “como se a personagem fosse escondendo e revelando partes da sua personalidade”.

O mural “Para Agustina – Extravagante Retrato de Família” está localizado na Via Panorâmica Edgar Cardoso. Foto: Inês Silva

Ilustrado por 12 artistas com estilos muito distintos, o mural contempla diversas pinturas que retratam vários livros de Agustina-Bessa Luís. Para Mafalda, o segredo do trabalho em equipa passou por “coordenar linguagens e nunca ninguém perder a sua identidade”. “Ninguém interfere na identidade de ninguém, nem na linguagem de ninguém, mas existe um pensamento comum e o trabalho é um só”, uma visão de conjunto impulsionada por Frederico Draw, o curador do projeto.

A oportunidade trouxe consigo um “sentimento de responsabilidade”, e um desafio maior, que para a pintora foi a ideia e a consolidação da mesma. “A ideia é o fundamental, é o centro, se a ideia estiver bem segura é certo que o resto vai correr bem e eu tinha segurança nessa ideia”.

Pintar a uma escala completamente diferente da que estava habituada e a exposição a que a obra estava sujeita permanentemente fizeram, também, parte de um mundo novo. “Expor as dúvidas, as incertezas, para mim, foi terapêutico, foi transformador. Tinha os meus colegas comigo a passar pela mesma coisa: não são inseguranças ou dúvidas que são só minhas, são de todos”.

Mafalda procurou incluir pormenores na pintura, como o dedo mindinho do pé levantado, a transparecer uma intenção de “malandrice”. Fotografia: Inês Silva

Ao longo do processo de ilustração do mural, foram muitas as pessoas que, diariamente, se cruzaram com a obra de arte. A curiosidade e a beleza imponente que a cada dia se tornava mais percetível, despertou o interesse de quem por lá passava. “É comovente a generosidade das pessoas, de tirarem um bocadinho do tempo delas para irem ter connosco, para agradecer, elogiar”.

“Havia pessoas a passar de carro e a abrir a janela para aplaudir, mesmo no trânsito, porque tinham necessidade de nos dizer o quanto gostavam do que estávamos a fazer e o quanto era importante. É isso é que faz a arte valer a pena, é sentir que se aquilo que eu estou ali a fazer tem a capacidade de trazer um bocadinho de felicidade ao dia daquelas pessoas, vale completamente a pena, vale tudo”. Quando terminada a missão, restam “as saudades de estar com as pessoas” e as recordações de um trabalho realizado com “artistas incríveis”.

Formas de arte que coexistem

Mafalda Mendonça formou-se em arquitetura pela FAUP, mas a pintura e a cenografia também estão intrinsecamente ligadas à sua área de profissão. “Quando sou arquiteta também sou as outras coisas. A minha experiência nas outras áreas também me traz muito para o meu processo de projeto na arquitetura, como o contrário também é verdadeiro”.

Na arquitetura, durante o desenvolvimento de um projeto, muitas vezes surgem desafios, seja a uma escala mais geral ou pormenorizada. Assim, Mafalda revela procurar quem já tenha encontrado uma solução semelhante para os desafios que enfrenta. Posteriormente, repensa-a e adapta-a ao seu próprio projeto. Para a arquiteta, o cruzamento entre as diferentes vertentes “é muito rico, porque abre o espectro e ajuda-nos a encontrar e a construir soluções mais originais.

Mafalda Mendonça acredita que diferentes formas de arte podem ser uma só e trabalhar em conjunto. Foto: Madalena Pinto da Silva

No entanto, na sua perspetiva, há duas das áreas que se encontram mais interligadas: a cenografia e a arquitetura. A sua maior referência é o arquiteto João Mendes Ribeiro, que diz não ser um cenógrafo, mas sim um arquiteto que faz cenografia, afirmação com a qual Mafalda se sente verdadeiramente identificada. 

Quando realiza um projeto de cenografia, a artista tem de acompanhar uma narrativa, bem como o desenho coreográfico e o desenho dos corpos dos bailarinos sobre esse espaço. “Inevitavelmente, os objetos que vou desenhar, a forma como vou compor aquele espaço cénico, vai interferir na coreografia.”

Sobre a liberdade criativa que cada área lhe permite alcançar, a artista confidencia que é na pintura que encontra a “liberdade total e absoluta”, pois aí, ao contrário da cenografia e da arquitetura, não há, necessariamente, trabalho de equipa, nem programa a seguir. “Eu tenho total liberdade, desde a conceção da ideia até à execução. Passa tudo única e simplesmente por mim, é uma experiência muito diferente em termos de concretização.”

A arquitetura é, por seu turno, um trabalho de equipa. “O arquiteto não está, de todo, sozinho, tem uma ideia da conceção, mas para a concretização do projeto, precisa de uma equipa, precisa de engenheiros de várias especialidades. Depois, na fase da obra, é necessária outra equipa também, que vai acompanhar a obra. É mesmo um trabalho de equipa, de interdependência”.

Assim, a liberdade está à partida mais limitada, “não tanto a liberdade criativa, mas a liberdade na experimentação. Na arquitetura esse espaço não é tão amplo.” Ainda assim, Mafalda conta o quanto se aprende com os outros intervenientes da obra: serralheiros, carpinteiros, entre outros. Muitas vezes, acontece ajustar o seu desenho a uma sugestão que lhe foi dada, de quem já tem anos de experiência. “É um processo de aprendizagem enorme e temos que estar sempre muito abertos a isso”.

Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro

Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online