A Praça do Império, em Lisboa, foi inaugurada na passada terça-feira (14). Ao JPN, o movimento SOS Racismo declara que a obra, com brasões alusivos ao colonialismo, é "uma glorificação de um Portugal invasor", mas há também quem defenda que "apagar uma forma do passado é um ato de barbarismo cultural".
A renovada Praça do Império foi inaugurada, na passada terça-feira (14), em Lisboa, apesar da controvérsia gerada em torno dos brasões construídos junto à Fonte Monumental. A obra, iniciada há dois anos, custou 900 mil euros, de acordo com a TSF.
Segundo a Câmara de Lisboa, o projeto de restauro foi desenvolvido de forma a conservar o conceito original do jardim, desenhado por Cottinelli Telmo, em 1940. A plantação de novas árvores, a ampliação da área verde para sul e a reformulação da eficiência hídrica e energética integram a obra da autoria de Cristina Castel-Branco, da ACB Arquitetura Paisagística.
Entre a comitiva política que marcou presença na inauguração, esteve o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, assim como o presidente da república, Marcelo Rebelo de Sousa, e o presidente da Junta de Freguesia de Belém, Fernando Ribeiro Rosa.
Os brasões em questão representam as 30 capitais de distrito e antigas províncias ultramarinas. Já em 2014, a Câmara de Lisboa tinha previsto a remoção de oito destas figuras, relativas às antigas colónicas, o que gerou polémica entre um grupo de cidadãos. Sete anos mais tarde, uma petição com 5500 subscritores pediu a manutenção da totalidade dos elementos decorativos, incentivando a autarquia a recuar na decisão, segundo a RTP.
Desenhados sob a forma de arranjos florais, desde 1960, os brasões foram agora reconstruídos em calçada portuguesa, um elemento identitário da cultura nacional.
A “glorificação de um Portugal invasor” ou a conservação do património nacional?
A decisão de manter os ornamentos originais da praça lisboeta não agrada a todos os sectores da sociedade portuguesa. A par de um tributo à história de Portugal e ao período dos Descobrimentos, há uma ligação indissociável dos brasões à “glorificação de um Portugal invasor e desumanista [sic]”, afirma Marta Pereira, da SOS Racismo, em declarações prestadas ao JPN. Os símbolos, exibidos na capital em espaço público, constituem um retrato das antigas colónias portuguesas: “Agora que estão desaparecidos, rejeitados pelas forças da natureza, novamente alguém decide por capricho identitário ressuscitar antigos símbolos que glorificam um projeto colonial custeado por crimes contra a humanidade“, refere a representante do movimento.
Contactado pelo JPN, Miguel Cardina, professor na Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais, afirma que a sociedade portuguesa desenvolveu “uma imaginada e, na verdade, nunca existente, relação de irmandade e de igualdade entre um país que coloniza e povos que são colonizados”.
Este “é um monumento de 2023”, declara o professor, autor de vários livros sobre colonialismo. Apesar de ser a recuperação de uma obra de origem antiga, a intervenção inclui “um conjunto de opções estéticas e ideológicas”, pelo que, na opinião do mesmo, se trata “de um monumento colonialista”.
Na disputa entre a história e a memória, Miguel Cardina recorda que “a escravatura é apagada como se não tivesse existido, tendo sido Portugal um pioneiro e ativo propulsor dessa experiência histórica”. O investigador reconhece que o passado “está a ser desnaturalizado”, mas salienta que o exemplo da Praça do Império revela como ainda “há muito caminho a fazer“, na luta contra a visão que “romantiza” o período colonial.
Há opiniões, no entanto, que divergem da destes dois especialistas ouvidos pelo JPN. A Petição Contra o Apagamento dos Brasões realça que esta é a “única praça do mundo que representa o maior dos feitos portugueses”. Os assinantes apelam à compreensão do contexto histórico em que se produziu o monumento e à discussão aprimorada das decisões que afetam o património. A destruição (ainda que parcial) da obra constituiria, nas palavras dos proponentes, uma “manifestação de imaturidade democrática“, já que “apagar uma forma do passado é um ato de barbarismo cultural“.
Quando interrogado sobre o assunto, na visita de inauguração, junto ao Mosteiro dos Jerónimos, Marcelo Rebelo de Sousa, afirma que, já antes, os presidentes Ramalho Eanes, Cavaco Silva e Jorge Sampaio eram a favor dos brasões. Agora, diz o presidente da república, “a solução respeita a ideia que os meus antecessores tinham: na Praça do Império é manter a tradição do império, se eles acharam bem quem sou eu?”.
Para Miguel Cardina, o debate sobre o passado colonial e os seus legados deve estar focado na forma como a história impacta a realidade atual e as suas especificidades: “Compreender o racismo em Portugal é perceber como é que essa história ainda persiste”.
Para o futuro, Marta Pereira, da SOS Racismo, sugere uma revisão contextualizada dos símbolos e valores que modelam a sociedade e reforça que “nenhum modelo social e político tem de se manter estático no tempo”. O país pode, segundo a ativista, escolher entre “crescer e superar a narrativa colonial ou manter-se agarrado a um projeto identitário lusotropicalista”.
Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro