Ksenia Ashrafullina é russa, vive em Portugal há dez anos e recusa calar-se relativamente à invasão russa da Ucrânia. Afirma-se como opositora do regime de Putin e acredita numa "maravilhosa Rússia do futuro".

Ksenia Ashrafullina acredita que a Ucrânia já ganhou esta guerra do ponto de vista moral e comunicacional. Foto: DR

Nesta sexta-feira (24) assinala-se um ano desde o início da guerra na Ucrânia. Nesta data simbólica, Ksenia Ashrafullina, uma das ativistas russas mais vocais em Portugal contra a guerra e contra o governo de Vladimir Putin, mostra-se disposta a continuar a lutar pela paz e pelo restabelecimento da democracia russa.

A “senhora ativista”, como é apelidada, vive em Lisboa há dez anos e considera que, devido à nossa própria luta pela liberdade, Portugal “é perfeito para ativistas russos”. Em conversa com o JPN, Ksenia admite que a sua perceção atual da guerra não é a mesma que tinha há um ano atrás e que “agora, só a vitória militar pode acabar com esta guerra“. Em entrevista, Ksenia reforça, ainda, que vai continuar a mostrar a sua solidariedade para com o povo ucraniano e a lutar contra a resignação da comunidade russa.

JPN- Quais eram as suas perspetivas sobre a invasão há um ano atrás e quais são as suas perspetivas atualmente face ao conflito que perdura?

Ksenia Ashrafullina (KA)- Eu acho que ninguém esperava que Putin começasse realmente esta guerra. Foi uma surpresa e um choque. Nas primeiras semanas, eu pensava ingenuamente que, perante tanta tragédia e estupidez, alguém próximo de Putin ia acabar com ele de alguma forma. Depois, analisando de forma racional, percebi que, durante estas décadas, ele tem construído várias camadas de proteção pessoal à sua volta e controla muito a sua segurança. Por isso, é improvável que isso aconteça. Eu ponderei este fim para o Putin porque o sistema era de tal forma ditatorial, que era impossível haver oposição dentro do âmbito legal. Na Rússia, a oposição tem três saídas: envenenamento, prisão ou ir para fora do país. Esta última foi a minha situação.

Na Rússia, a oposição tem três saídas: envenenamento, prisão ou ir para fora do país. Esta última foi a minha situação.

Há um ano, não era claro se a Ucrânia ia ter recursos suficientes para defender-se. Quando os ucranianos começaram a angariar fundos para as armas, há um ano, parecia de loucos. Eu não queria fazer nenhuma doação para armamento. E, agora, depois de um ano, vejo que é algo necessário. Putin continua a mandar mais homens e mais armas para a destruição total de tudo o que encontra no terreno. Agora, só a vitória militar pode acabar com esta guerra. A Ucrânia já tem a vitória moral. Eles conseguiram, durante este ano, convencer o mundo inteiro a apoiá-los e a partilhar armas. Este foi o grande sucesso dos ucranianos: esta comunicação, a guerra de comunicação. Eles ganharam esta guerra até agora.

JPN- Então não descarta a possibilidade de golpe de estado?

KA- Continua a existir uma pequena probabilidade de que aconteça algo a Putin. Porque, um ano depois, o círculo mais próximo dele, apercebeu-se de que não é com ele que eles vão salvar os seus capitais e as próprias vidas. Mas é uma probabilidade muito pequena. Estou a especular. Mas a verdade é que, ao longo da história da Rússia, estes golpes, estas surpresas foram acontecendo. Portanto, pode acontecer, mas, obviamente, a probabilidade é muito baixa.

JPN- Enquanto ativista, qual é a mensagem a passar neste momento em que se marca um ano desde o início da guerra?

KA- Que nós estávamos e continuamos a estar do lado da Ucrânia. E tenho de repetir isto vezes sem fim. Sendo eu e outros ativistas russos, há sempre algumas suspeitas. E nós temos mesmo de ser mais fortes na comunicação da nossa postura. Os ucranianos estão a defender os direitos humanos e o caminho europeu, que está baseado no respeito e na proposta dos direitos humanos. Não só pela Ucrânia, mas também pela Rússia e pela Bielorússia. A Ucrânia agora está muito mais próxima de retificar o próprio caminho histórico, ficando do lado europeu, do lado do respeito pelo ser humano. Nós não nos vemos como algo distante e diferente da Europa. Os sonhos que temos para o futuro dos russos e dos bielorussos passam pelos fundamentos da União Europeia baseados nos direitos humanos. E agora, tal como está o mundo e tal como está a geografia mais próxima, é a União Europeia que defende esta unidade de todos.

JPN- Quais são os objetivos da sua ação como ativista?

KA- Agora, o objetivo é que acabe a guerra e que caia o regime de Putin. Depois disto (porque vai ter de acontecer de qualquer forma), aquilo que me preocupa é como se vai reconstruir e quais são as guerras internas que se seguirão. Mas isto é um futuro que vai ser decidido depois de acabar o genocídio.

Outra coisa importante que tentamos fazer é parar a oligarquia russa nas fronteiras. Roman Abramovich tornou-se cidadão português e é uma das pessoas mais importantes da gestão dos fundos corruptos do Putin. Um grande objetivo do ativismo é não deixar que esta cleptocracia se estabeleça em Portugal através das famílias, das empresas, das offshores. Já pararam com os vistos gold. Claro que estes vistos também são para pessoas que ganham dinheiro de forma lícita- os developers, os engenheiros de sucesso… portanto não são todos maus. Mas Portugal decidiu parar este programa (talvez pela crise de habitação, mais do que pela guerra), e eu achei bem. Vieram para Portugal várias pessoas que constam na lista de 7 mil corruptos feita por Navalny. E essas pessoas estão de maneira direta e indireta a prolongar a guerra.

O objetivo é que acabe a guerra e que caia o regime de Putin.

Um terceiro objetivo é estabelecer laços com os bielorussos e com os ucranianos, sendo sempre muito claros quanto à nossa posição de apoio para com eles. Também importa organizar e educar a nossa própria comunidade russa em Portugal, para que consigam lidar melhor com o ódio de ucranianos. É normal… eles estão a ser bombardeados. A única postura que podemos ter é continuar a apoiar a Ucrânia, mesmo quando podemos ser alvo de alguma expressão de ódio. Mas isso é muito raro, aconteceu-me só uma vez. Mas quando isso acontece, nós percebemos, temos empatia e continuamos a apoiar. Como ativista, tento inspirar a comunidade russa a falar, a partilhar a sua experiência com os média locais. As pessoas russas continuam a ter muito medo. Muitas vezes é irracional, porque já saíram da Rússia, mas não querem falar, não querem dar o nome. E nós estamos a tentar ajudar as pessoas a lidarem com os medos e a participarem de forma mais ativa.

JPN- E quais são os principais meios que usa para levar a cabo este ativismo?

KA- Uma ferramenta é a presença mediática. Nós temos de ajudar a formar a opinião nos países onde estamos. Eu estou em Portugal e falo português. Na verdade, dirijo-me a todos os países onde se fala português. Mas até agora tem sido uma ação mais limitada a Portugal. Nesta situação, Portugal é importantíssimo por vários motivos: faz parte da União Europeia, o líder da Organização das Nações Unidas é português, os ministros portugueses fazem parte da tomada de decisão a nível europeu e, também, porque faz parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Portanto, eu tento incentivar a formação de uma visão correta dentro destes organismos através da língua portuguesa e através das pessoas, dos políticos e das instituições portuguesas. Outros fazem isso noutras línguas noutros países.

JPN- Como é que vê a Rússia no futuro?

KA- Há sempre vários cenários. Num cenário pós Putin, há a possibilidade de se estabelecer uma guerra entre as máfias da polícia secreta e dos militares. Nesta luta por poder, procurariam algum apoio popular, o que poderia originar a reencarnação da ditadura. De facto, Putin limpou todas as possibilidades de existir um potencial líder. Também há a possibilidade de alguns partidos de pendor mais nacionalista tentarem tomar o lugar de Putin. Estes são cenários mais pessimistas.

O cenário otimista seria a libertação dos presos políticos, a organização de eleições com participação livre da oposição e a reposição da liberdade de imprensa. Voltar a respeitar a constituição, que já existe, e não é assim tão má, só que não tem sido respeitada. Era a renovação democrática, diria eu. Libertar Navalny, Yashin e tantos outros, para que possam recomeçar as suas campanhas. Claro que os resultados dessas eleições seriam imprevisíveis. Iria depender muito do trabalho mediático, porque as cabeças dos russos estão um caos absoluto. Eu gostava de acreditar nesta maravilhosa Rússia do futuro, mas, sendo realista, acho que vamos passar por um período escuro de luta pelo poder entre os grupos e partidos pouco democráticos.

Não me quero calar. Quero que isto acabe.

JPN- Tendo nacionalidade russa e sendo uma das ativistas mais vocais contra a guerra e contra Putin, alguma vez temeu pela sua segurança ou sentiu hostilidade por parte de compatriotas seus?

KA- O facto de eu não estar preocupada com a possibilidade de alguém me estar a perseguir, não quer dizer que eu não esteja a ser perseguida. Eu tento não pensar nisso, até porque não sou a primeira pessoa na lista. Há vozes muito mais fortes no panorama internacional. Toda a equipa de Navalny revela informações de corrupção todos os dias. Por isso, tento racionalizar um bocadinho o meu papel e pensar no que passa pelas cabeças dos serviços secretos. Para eles, Portugal é um país pequeno, pouco importante e longe de poder mudar o mundo. Digo eu. Mas pode ser só a minha perceção. Até hoje, não recebi nenhuma ameaça e embora às vezes pense que pode acontecer-me alguma coisa, continuo, não me quero calar. Quero que isto acabe.

JPN- Mas também não se vê voltar à Rússia tão cedo, não é?

KA- Não convém. (Risos)

JPN- Apesar da sua posição assumida contra a guerra, já sentiu na pele algum tipo de “russofobia”?

KA- Em Portugal, não. Portugal não tem muita ligação histórica com a Rússia. Não há ódios históricos, como em países de leste, tais como a República Checa, na Polónia, os países bálticos… Esses têm razão para não gostar da União Soviética. Em Portugal, acho que é o contrário – a maioria das pessoas quer apoiar.

Acho que, há um ano atrás, aquela história dos nossos dados partilhados pelo Medina, vacinou as pessoas em Portugal. Todos ficaram a saber que existe perseguição, que existe Alexei Navalny… E depois desta história começou a guerra. Os portugueses assumiram que têm aqui opositores e que os apoiam. Portanto, Portugal é um caso único onde a opinião pública já estava preparada para nos acolher. Mesmo por parte de ucranianos estabelecidos em Portugal recebemos mensagens a agradecer o apoio. Eu diria que Portugal é perfeito para ativistas russos porque há muita empatia. Afinal, Portugal viveu em ditadura e muitas pessoas continuam a viver orgulhosamente o mito e os valores da Revolução do 25 de Abril. Acho que isto leva as pessoas a ver a oposição russa de forma mais humana.

JPN- Alexei Navalny é uma inspiração para si?

KA- Claro que sim. Eu conheci-o pessoalmente e é uma inspiração pela maneira como comunica. Nunca diz coisas vagas, é sempre muito concreto e assume erros quando os comete. Parece algo banal, mas a maioria das pessoas não consegue assumir os próprios erros e ele tem essa capacidade. Não só Navalny, como toda a equipa dele, conseguiram mobilizar pessoas num país apático e sem futuro. E eu e muitas outras pessoas somos aquilo que somos também porque ele nos inspirou a não ficarmos calados.

Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro