O novo ciclo de programação do cinema Batalha apresenta a primeira edição d’A Minha História de Cinema, dedicada a “diferentes formas de produção de cinema, através de experiências e filmes que marcam a vida e até práticas profissionais de cada uma”, lê-se no site. No seguimento da iniciativa, Manthia Diawara, escritor e cineasta natural do Mali, apresentou, ontem (14), um dos seus filmes documentais mais recentes.

“A Letter From Yene” (2022) foca-se, de forma muito acentuada, no ambientalismo e noutras questões pertinentes que afastam africanos de ocidentais. A maior parte da pesquisa do realizador incide no campo dos estudos culturais negros e isso transparece no seu cinema.

Durante a palestra, moderada pelo curador Jürgen Bock, que acompanhou a exibição do documentário, Diawara falou sobre as inspirações e filosofias que ajudam a explicar o rumo e significado do seu trabalho – quer enquanto produtor, escritor, teórico ou professor. Nesse sentido, menciona recorrentemente o poeta Èdouard Glissant como uma das suas maiores referências.

Entre muitos autores mencionados, a influência da ideologia de Glissant foi, aliás principal o tema de conversa. “Escritores afro-americanos ensinaram-me a pensar. Glissant libertou-me“, evidencia o convidado do cinema Batalha, claramente movido. 

“A Letter From Yene”: A descoberta do “eu”

O documentário apresentado na sessão, repleta de conhecimento e (re)descoberta, foi lançado em 2022. Foca-se nas questões ambientais, especificamente no Senegal. 

Diawara adquiriu uma casa em Yene, no Senegal, em 2010, e desde então que ficou mais alertado para certas questões, admitindo-se como um ativista ambiental no seu filme. Numa vila de pescadores, o peixe é cada vez mais escasso e os habitantes viram-se forçados a apanhar pedras, criadas pela erosão do mar, que tem vindo a desgastar a paisagem. Estas pedras são vendidas e, mais tarde, acabarão como decoração na fachada de uma casa de um ocidental rico – ou, neste caso, de Manthia Diawara. 

Neste filme, assume-se como narrador, sendo os únicos sons presentes o da sua voz e do ambiente que o rodeia. À interessante faixa de sons, a lente acompanha os senegaleses, através de muitos movimentos bruscos, como se nós próprios, desprovidos de experiência, estivéssemos a agarrar na máquina fotográfica.

Mas esta realização aparece ao público de forma chocante – sobretudo, talvez, para aqueles que não estejam familiarizados com o seu trabalho -, uma vez que nos parece algo muito simples, tremido e pouco elaborado. Não obstante, através destas características de gravação, Diawara surpreende-nos, de vez em quando, com uma câmara estável e uma fotografia que nos prende o olhar no ecrã.

Mostra cores claras e frias, como o mar. É, aliás, à volta de um mar frio e revoltado que o documentário gira. Mas não revoltado de uma maneira que seja visível a olho nu. Os humanos maltrataram-no e, portanto, ele retribui, deixando na costa pilhas de lixo por eles criada.

Manthia Diawara clarifica uma questão muito pertinente: ele, ainda que oriundo do Mali, comporta-se como um ocidental. Comprou uma casa de férias no Senegal, contribuindo para a degradação da vila. Utiliza na sua casa as pedras que os senegaleses apanham na praia – um trabalho que, desde o início, classificam como pouco digno e não merecedor de respeito.

Se este documentário é uma redescoberta do eu, deve-se à mudança de atitude de Diawara, que tem vindo todos os dias a tentar mudar para melhor, a tentar ajudar a terra, o mar e o seu povo que sente que esqueceu. E paira a questão: será que dele restam apenas os traços africanos, tendo deixado para trás a memória de um povo?

Glissant, no seu criticismo à arte, lembra que “apenas a vida é importante”

Para Manthia Diawara, Glissant e a sua crítica à arte constituem uma grande influência no seu trabalho. Aos seus olhos, o escritor oferece uma filosofia quase perfeita em relação à vida. “Nada é real, nada é verdade, nada importa. Apenas a vida é importante”, aponta. Um fator que também se sente na película. 

Escritores afro-americanos ensinaram-me a pensar. Glissant libertou-me.

Glissant ansiava que as pessoas pudessem aceder à arte de uma maneira mais fresca, sem a expectativa criada pela perspetiva de outrem. De entre a diversidade de conceitos explorados, Diawara salienta a ideia do abismo como lugar onde podemos recuperar a nossa humanidade, e da opacidade como a fonte de diversidade. 

O realizador explica ainda que, para Glissant, a arte não oferece imediatismo pois “não é uma solução imediata – senão tornar-se ia numa ideologia”, e todas as ideologias falham.

A mensagem de Èdouard Glissant (ainda que haja mais do que uma e todas importantes) é clara: certificarmo-nos de que as nossas histórias estão presentes nas histórias dos outros, e vice-versa. Adicionalmente, Manthia Diawara reforçou a ideia de que a arte tem as suas formas de invocar o imaginário e que nos ajuda a ouvir o eco de todas as vozes

É através da forma como se constrói a nação que se constrói a cultura.

Se “é através da forma como se constrói a nação que se constrói a cultura”, outra das afirmações poderosas feitas pelo realizador do Mali, então é evidente no seu trabalho, intrinsecamente ligado com os estudos africanos, a necessidade de deixar um legado que homenageie aqueles que, ao longo de toda a história da humanidade, foram marginalizados.

Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira