Aliando a arte da representação à cidadania inclusiva, nasceu, em dezembro do ano passado, uma companhia de teatro que reúne pessoas em situação de sem-abrigo e exclusão social. O grupo ensaia na casa D'Artes do Bonfim para levar ao público uma "mensagem de integração". No final deste mês, dia 24, estreiam-se oficialmente com o espetáculo "É!".

Entre abraços e desabafos, na Casa D’Artes do Bonfim, no Porto, os primeiros a chegar aguardam pelos mais atrasados. Apesar da humidade que se vê em algumas paredes, o espaço é acolhedor e inspira os que entram a contar a sua história, sem julgamentos

O JPN foi acompanhar o grupo de teatro “Do Lado de Fora”, que se reuniu para mais um ensaio. O projeto, mais do que um grupo que interpreta arte, neste caso teatro, representa um “movimento de cidadania”, conta o diretor artístico, Rui Spranger. Surgiu no seguimento de um projeto que promove integração social através da arte, focado em pessoas em situação de sem-abrigo ou exclusão social . Mas, agora, é com uma casa para os integrantes.

Na sala, as cadeiras, posicionadas em roda, dão origem a um espaço de partilha de vivências. Em algum momento, “toda a gente acaba por estar do lado de fora”, explica o diretor artístico, razão pela qual o grupo está sempre aberto a novos membros.

A companhia não está restringida a pessoas com limitações económicas, até porque “estar do lado de fora não tem que ser sempre uma coisa material”, diz o encenador. Na verdade, para Sofia Esquível, o elemento mais jovem do grupo, com apenas 21 anos, trata-se de uma abstração do dia a dia. “Isto é o que me mantém sã”, partilha. 

O ensaio prossegue com exercícios de confiança e trabalho em equipa, que deixam uns mais receosos do que outros. No final, porém, todos aprendem e riem das dificuldades em comum. 

“A minha vida foi sempre no crime, andei a roubar durante 15 anos”, conta Emílio Costa, que já faz parte do grupo de teatro desde a sua génese. “Eu levantava o colchão da minha cama e era tudo dinheiro”, descreve, em conversa com JPN. “Hoje não tenho nada, perdi tudo, vivo numa casa compartilhada”, no Bairro do Cerco, confessa, mas descobriu no teatro “uma oportunidade para voltar a ter aquilo que eu tive” – desta vez, “com o meu suor”. 

O ator, que em tempos esteve envolvido no tráfico e chegou mesmo a estar preso, já viveu, como outros, em condição de sem-abrigo. Hoje, através da arte da representação, acredita que pode inspirar as gerações do futuro para que não cometam os mesmos erros que cometeu no passado. “Acho que consegui mudar a minha vida 390º”, explica Emílio. 

O projeto “Do Lado de Fora” é recente. Dia 21 de dezembro do ano passado “saiu para o mundo”, mas é já o resultado de um trabalho maior, que dura há um ano, explica Rui Spranger, encenador da companhia.

O grupo deriva de um conjunto de oficinas de criação artística, promovidas pela Câmara Municipal do Porto, sob a coordenação da Associação Apuro. Foi, aliás, nessas ações que alguns dos membros que compõem a atual companhia se conheceram e começaram a fazer teatro amador. Aí, as suas histórias de vida permitiram montar o espetáculo “É!”, que estreou no Teatro de Campo Alegre, no dia 8 de junho do ano passado. A mesma peça vai agora ser reposta nos dias 24 de março e 1 de abril, com entrada gratuita, no Centro Social das Antas – mas, desta vez, trazida pela companhia “Do lado de Fora”, em estreia oficial.

O teatro inspira “outra forma ver o mundo”

Em entrevista ao JPN, Emílio Costa conta que decidiu integrar a companhia a convite da “Dr.ª Daniela”, técnica do projeto. “Um belo dia, ela perguntou se alguém estava interessado em fazer teatro. Eu pensava que era uma brincadeira”, confessa. Curioso, com 60 anos, perguntou de imediato onde seriam os ensaios, imaginando “algum barraco ao ar livre”, talvez. A resposta foi “Casa D’Artes do Bonfim”, sobre a qual a palavra “artes” soou como “um clique para dizer ‘estou dentro’”, afirma prontamente. 

Se no passado andava “sempre de cabeça baixa”, hoje o ator sente orgulho nas suas conquistas pessoais e mantém a esperança no futuro. “Acho que o teatro está a fazer de mim uma pessoa nova, com outra forma de ver o mundo”, declara com olhos meigos e rugas vincadas. 

Na companhia de teatro portuense, a exclusão social fica “do lado de fora” da porta da Casa D’Artes do Bonfim. O projeto, que Artur Fontes, de 55 anos, integra há sete anos, é uma “muleta” de apoio para “retomar a energia para a semana”, conta. Para o ator, o grupo representa uma “mensagem de integração” na sociedade.

No momento em que, pela primeira vez, surgiram dificuldades económicas, Artur diz ter “acordado para a realidade” – fator que hoje procuram, em conjunto, transmitir no palco. “Há coisas muito mais importantes do que o tipo de vida que eu levava”, reitera.

A Câmara Municipal do Porto já manifestou publicamente o interesse em financiar o projeto, mas a companhia está à espera de uma reunião para efetivar o processo. Para já, a iniciativa conta com o apoio da Junta de Freguesia do Bonfim, que cede o espaço para os ensaios, e recebeu uma ajuda financeira de um mecenas. Em breve, o site oficial da associação Apuro estará disponível, com um destaque dedicado ao grupo inclusivo, “Do Lado de Fora”. 

Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira