A subida da inflação está a piorar a situação financeira de muitas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS). O peso nas despesas dos salários dos trabalhadores está acima do recomendado e a Segurança Social não fez uma atualização adequada das contribuições, alertam as organizações contactadas pelo JPN.

Dificuldades financeiras das IPSS têm sido resolvidas à custa do trabalhado extraordinário dos colaboradores. Foto: Matthias Zomer/Pexels

O aumento da inflação atingiu Portugal e está a deixar rasto. Para além de afetar diretamente as famílias portuguesas, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) também estão a enfrentar os seus próprios desafios. Algumas temem o encerramento, como é o exemplo da delegação norte da Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras – Raríssimas.

Outras, como a delegação do Porto da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) e o Abrigo Nossa Senhora da Esperança (ANSE), com quem o JPN contactou, lutam para manter as portas abertas.

Teresa Guimarães, presidente da Direção da APPACDM do Porto, explica que o ano de 2022 foi marcado por “contas muito negativas”. O aumento dos custos da eletricidade, da alimentação, do gás, da água, dos fornecimentos e dos serviços externos foram um dos principais fatores para o desgaste monetário da associação sem fins lucrativos, que apoia pessoas com atraso de desenvolvimento, deficiência intelectual ou incapacidade, de todas as idades.

Só em combustíveis e alimentação o acréscimo foi ao todo de “90 mil euros a mais do que o esperado”, revela a dirigente da instituição fundada em 1969.

Contudo, em primeiro lugar na lista de despesas, está a renumeração dos funcionários. A instituição conta com 180 colaboradores, número que “não pode ser cortado”, pois a IPSS apoia quase 500 pessoas.

Consequentemente, o maior desafio que a instituição enfrenta é o aumento do ordenado mínimo: “apesar da nossa confederação dizer que os encargos com os funcionários não deveriam ultrapassar os 65% do orçamento geral da IPSS, o nosso atinge os 80%”.

Teresa Guimarães sublinha que gostaria “as pessoas recebessem muito mais”. Contudo, o aumento do salário mínimo “está a causar tensão” entre os trabalhadores pois “a restante tabela [salarial] não sobe na mesma proporção”, algo que provoca “muita desmotivação nos nossos trabalhadores”, de acordo com a dirigente.

Funcionários sujeitos a “condições precárias”

À semelhança da APPCDM, António Figueiredo, diretor geral da ANSE, explica que a maior despesa da instituição é a renumeração dos 80 funcionários, “representando 70% dos custos da associação”. Desta forma, as dificuldades financeiras não são maioritariamente causadas pela inflação, mas pela “subida dos ordenados mínimos em Portugal”.

Destinada inicialmente para alojar senhoras doentes e socialmente desprotegidas, a ANSE evoluiu ao longo da sua existência, dando origem a um lar de idosos (residência sénior), com capacidade para 92 utentes, que se mantém em atividade.

Em média, o custo mensal de cada utente ronda os 2150€.  António Figueiredo garante que quem cobra menos é “porque não tem o número de funcionários exigidos pela Segurança Social” ou “não providencia as condições adequadas”. O dirigente acrescenta ainda que a reforma do utente muitas vezes não chega “para cobrir o custo real da mensalidade”. Assim, é necessário um auxílio das próprias famílias (o valor mais significativo), e um apoio da Segurança Social.

Deste modo, as limitações de financiamento impedem a contratação de novos colaboradores, o que faz com que “vários funcionários estejam a trabalhar em condições precárias. Muitas vezes trabalham turnos ininterruptos de 12 horas”, acrescenta António Figueiredo.

“Obviamente que esse excesso de trabalho terá consequências – já é uma profissão desgastante a todos os níveis possíveis, mas isto agrava mais esse desgaste”, sustenta o dirigente. Apesar de não ser legal, foi a maneira que muitas organizações encontraram para “reduzir um terço da sua equipa”, medida esta que só poderá ser remediada se o Estado “atualizar os valores das comparticipações” pagas pela Segurança Social, defende o diretor.

Uma sociedade “pouco recetiva a dar”

Para combater estas divergências orçamentais, algumas IPSS têm procurado fontes de financiamento alternativas, de forma a não estar “tão dependentes do financiamento do Estado”, explica Teresa Guimarães

À semelhança da ANSE, “o grosso do orçamento” da APPACDM do Porto provém de um acordo de cooperação com a Segurança Social, complementado por comparticipações familiares, calculadas sobre o rendimento das famílias e, também, por donativos

Contudo, “não é fácil” obter este tipo de contribuições alternativas, “até porque a nossa sociedade ainda está pouco recetiva a dar”, lamenta a diretora da APPACDM do Porto. Nos últimos anos, a IPSS criou uma loja social, um centro de reabilitação e bem-estar e, têm feito parcerias com empresas – atividades que, apesar de serem socialmente úteis, não trazem retorno financeiro.

mãos de idoso segurando uma bengala

Instituições referem dificuldades financeiras resultantes da conjuntura. Foto: Pexels

Para abarcar todas estas valências “seria necessário muitas mais doações, pessoas mais comprometidas a este setor social que nos ajudassem a fazer o nosso trabalho com menos dificuldades financeiras”.

Apesar dos obstáculos, a presidente da Direção nunca ponderou aumentar os pagamentos familiares, porque a inflação também “ se refletiu muito nos orçamentos familiares”.

Na mesma linha, a dirigente afirma que os acordos de cooperação com a Segurança Social na área da deficiência “estão muitos baixos”. Muitos dos utentes precisam de apoio para a higiene, para alimentação e até mesmo para a locomoção, “o que gera mais custos” e “exige um quadro de pessoal mais completo, para que o serviço possa ser prestado como as pessoas merecem”.

As restrições orçamentais impedem assim a organização de evoluir da forma que seria desejável. Pessoalmente, a presidente gostaria de disponibilizar um apoio maior na área da intervenção precoce: “gostaríamos de começar a nossa intervenção imediatamente com estas crianças para elas entrarem na escolaridade bem acompanhadas e fazer uma educação inclusiva bem feita”.

Tendo em conta a situação financeira de Portugal, Teresa Guimarães refere que o sentimento de preocupação “é geral” e que “estão assustados com o que se aproxima.”.

Ao depauperamento das instituições, tem-se acrescentado a pouca vigilância do Estado. No caso dos lares, há muito que não são supervisionados, garante António Figueiredo: “desde a pandemia, nunca mais tivemos uma visita da Segurança Social”. A razão poderá estar na falta de técnicos para dar resposta a tantas instituições. Desta forma, muitas anomalias nestas associações poderão passar despercebidas.

Desde 2020, de acordo com dados do Instituto de Segurança Social (ISS) facultados à agência Lusa, mais de mil lares ilegais foram identificados, mas muitos continuam de portas abertas. Na perspetiva de António Figueiredo, a Segurança Social fecha os olhos porque não vai ter sítio para colocar os idosos desses lares”. Assim, as autoridades “só atuam quando realmente encontram situações de maus-tratos ou más condições”, conclui.

Artigo revisto por Miguel Marques Ribeiro