Vê-mo-lo há 11 anos na televisão nacional, mas Pedro Mexia, além de comentador político, é poeta, cronista, crítico e também consultor cultural do Presidente da República. Numa entrevista exclusiva, fala sobre a vida em Lisboa, a influência do jornal "O Independente" na vida política e pessoal, a falta renovação do espaço público e da relação com a poesia e a fé.
A literatura sempre lhe foi natural, mas a poesia surgiu como epifania. Pedro Mexia descobriu a arte da lírica numa livraria lisboeta com um livro de T.S. Elliot, aquele que, inclusive, é até hoje o seu poeta preferido. O resto (já) é história: publicou uma dezena de originais de poesia, além de outras dezenas de livros de crónicas, de teatro, diários e traduções. Está há mais de vinte anos no espaço público. Atualmente, é crítico e cronista no semanário Expresso, integra o painel do Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer na SIC Notícias e é co-autor do podcast PBX com Inês Meneses. É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica onde, refere, perdeu “cinco anos de vida”. Ficou com o vocabulário, mas exercer advocacia nunca foi uma opção.
O poeta, crítico, cronista, dramaturgo, crítico literário falou da sua ligação íntima com a cidade de Lisboa, que, diz, “tem o tamanho certo”, abordou a crise na Igreja (antes ainda da revelação dos dados recolhidos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa), do passado ligado à vida política e a admiração profunda que nutre por game changers portugueses como Vasco Pulido Valente, Miguel Esteves Cardoso ou Herman José.
Diz-se possuidor de uma fé que lhe transforma a vida e as ações e não se apressa a fazer ligações entre a poesia e a crença: “Apesar de tudo, é possível uma pessoa aprender a gostar de poesia. Não sei se é possível aprender a acreditar em Deus. Acho que isso não acontece assim.” Percorremos a vida, carreira e obra de Pedro Mexia, mas percorremos também os seus caminhos interiores, os raciocínios, a construção da fé, as referências e a história recente do espaço público português e dos seus protagonistas.
JPN – Estávamos a falar ainda agora sobre Lisboa, nasceu e sempre viveu lá. Que ligação tem com a cidade?
Pedro Mexia (PM) – Toda. Na verdade, eu tenho todas as características e também os defeitos de um lisboeta. Faço parte daquelas pessoas que dizem aquelas coisas do género “não conseguia viver senão em Lisboa”, o que evidentemente não é verdade. Mas é uma cidade que para mim, para além de sempre ter vivido lá e gostar da cidade, é uma cidade que tem o tamanho certo. Eu gosto de cidades grandes, mas não grandes demais e Lisboa é uma cidade grande para a nossa dimensão, mas comparada com uma grande capital europeia é uma cidade pequena. E essas são as duas características que são para mim importantes. Seria muito complicado viver num sítio sem aquelas coisas: cafés, restaurantes, cinemas. Ia dizer bancas de jornais, mas isso já é quase arqueologia, cada vez há menos bancas de jornais. Mas também não é daquelas grandes metrópoles onde é preciso estar duas horas no trânsito para chegar de uma ponta à outra. Lisboa, apesar de tudo, não é assim tão grande e, portanto, tem o tamanho que eu acho interessante numa cidade e tem a oferta que eu acho interessante numa cidade.
JPN – Então tão cedo não pensa sair de Lisboa?
PM – Nunca esteve em causa sair de Lisboa. Quer dizer, saio de Lisboa muito, mas viver fora de Lisboa não. Houve uma altura em que pensei ir estudar para o estrangeiro quando, depois de acabar o curso de Direito, queria fazer um curso que gostasse a seguir.
JPN – Que era…
PM – Que era cinema. E na altura houve hipótese, quer dizer não chegou a haver a hipótese, mas pensei em ir estudar para Inglaterra. Mas foi a única vez em que pensei minimamente a sério viver fora de Lisboa, de resto a questão nunca se pôs, mas não é impossível claro.
JPN – O que é que houve na cidade de Lisboa que moldou o jovem Pedro Mexia?
PM – Não sei, não sou adepto de atribuir às cidades características únicas. É a cidade em que eu nasci e é uma cidade que eu gosto e tem aquelas características que as pessoas falam sempre muito: o clima temperado, a luz, o rio, essas coisas todas, que outras cidades também têm, cada uma a seu modo. Mas não atribuo nenhumas propriedades mágicas, simplesmente é a minha cidade, é o sítio onde me sinto muito bem. Ou seja, mesmo quando eu vou a algum sítio fora — seja em Portugal ou no estrangeiro —, e mesmo que seja um sítio onde gosto de estar, eu fico sempre contente de regressar a Lisboa. Isso acho que define um sítio onde as pessoas gostam de estar: o chegar perto e ver a placa a dizer que estamos quase lá. Depois Lisboa tem um problema que são as pessoas de Lisboa, essa é a parte menos agradável de Lisboa, mas da cidade só tenho bem a dizer.
JPN – Como é que se balança a pressa da cidade, das deadlines, com a tranquilidade e lentidão da poesia?
PM – Há uma questão que distingue muito a poesia de um texto para um jornal. É que os textos para um jornal não só têm uma hora de fecho como há alguém do outro lado à espera. Escrevo quando quiser, se publicar, publico. A poesia tem um universo de pessoas interessadas tão escasso que não há propriamente pessoas à espera. Mesmo essa pergunta do “quando é que publica um livro e poesia?”, se me perguntarem uma vez por ano isso é muito. Enquanto, por exemplo, as reações aos textos do jornal — para não falar na televisão, que é outro mundo — são constantes. E, portanto, vivo bem com esses dois ritmos porque estão nos antípodas um do outro. É como a nossa vida quotidiana e as nossas férias, são lógicas completamente diferentes. Uma coisa é constante e stressante, e tudo mais, e a outra é o que for, não há problema nenhum. Portanto, nunca senti que houvesse qualquer problema por causa do meu ritmo de trabalho, chamemos-lhe profissional, com o ritmo de trabalho, chamemos-lhe literário. São duas modalidades diferentes.
JPN – Falou da tal perfeição que diz que não existe e que isso faz com que lide bem com a pressão. Mas também escreve poesia com essa pressão? Sei que tem tempo para fazer como quiser, mas, ao mesmo tempo, não almeja a perfeição de forma nenhuma?
PM – A perfeição nunca é uma palavra que me ocorra quando estou a escrever. Não escrevo num patamar de escrita onde a palavra perfeição tenha qualquer utilidade.
JPN – Mas queria saber se dedica muito tempo a esse “polimento” do texto ou…
PM – Sim, os poemas podem ser revistos continuamente durante meses e até anos, e os outros textos não, nesse sentido sim, tenho mais tempo. Agora, na verdade, tendo em conta o tipo de poemas que eu escrevo, que são geralmente curtos e contidos na linguagem, eles não são muito alterados, não quer dizer que eu esteja contente com eles, mas estando ou não, a primeira versão e a última não são radicalmente diferentes. Não é aquela coisa de “agora posso cortar quatro estrofes” — nem tenho poemas de quatro estrofes, acho eu, portanto essa questão não se põe devido ao tipo de poemas que escrevo habitualmente, não é um assunto embora, claro, haja muitas emendas.
Eu digo “imaginem” e esse senhor não tinha que imaginar, eu dizia “não sei o que são canários nas minas” e aquele senhor sabia o que eram.
JPN – Disse há um bocado que costuma receber muitas reações tanto ao comentário político como às crónicas do Expresso.
PM – Sim.
JPN – Há alguma que o tenha marcado particularmente?
PM – Sim, há duas a crónicas. Na televisão não muito, porque como é um programa sobre política e as reações são sobre política e as reações sobre política não são muito interessantes. No jornal sim, houve duas pelo menos muito marcantes, uma em particular. Era uma crónica sobre expressões, em que eu falava sobre expressões que tinha ouvido, mas não sabia o que é que queriam dizer. E a certa altura falava sobre uma canção americana que comparava qualquer coisa com canários nas minas. Eu não sabia o que é que queria dizer essa imagem e então fui investigar. Descobri que antes de haver instrumentos para medir a qualidade do ar nas minas, os mineiros lançavam canários que entravam lá e se o ar não fosse respirável os canários morriam. Portanto, os canários nas minas era uma tecnologia, chamemos-lhe assim, exploratória, e eu achei aquilo interessantíssimo e escrevi. Não era assim um tema de que a Humanidade estivesse à espera, mas de vez em quando tem de se escrever sobre coisas mais ligeiras. E recebi um mail de uma pessoa que se identificava e provavelmente era, — não tenho razão nenhuma para crer que não fosse real — uma pessoa que dizia que tinha sido mineiro e que tinha usado canários quando desciam às minas. Alguns morriam e tinha uma espécie de peso na consciência pelos canários que morriam. Era uma carta muito poética, ou um email. Sim, acho que já era email, já foi há muitos anos, ainda podia ser carta, mas acho que não. Essa foi uma delas. E a outra foi muito engraçada, foi um texto sobre a Brigitte Bardot, quando ela fez 80 anos, salvo erro, e eu falo no filme, no primeiro filme conhecido dela que é o “Deus criou a mulher”, em que a entrada da Brigitte Bardot, a primeira cena em que ela aparece, é assim uma das entradas em cena mais impressionantes do cinema. Isto foi nos anos 50, e estamos fartos de saber quem é a Brigitte Bardot e ainda hoje aquilo é muito impressionante — e os costumes mudaram, etc.. Nem imagino o que era ver aquilo na altura. E escreveu-me um senhor, um octogenário, “você não faz ideia o que é chegar ao cinema em 54 ou 55 e ver aquilo, nunca tínhamos visto uma mulher assim na tela, aquilo foi para nós um continente novo” e tal. De vez em quando, há reações que são fantásticas. Geralmente, de pessoas que tiveram experiências ou parecidas com as experiências que o texto relata ou o contrário, aquilo que no texto não é uma experiência pessoal, mas que para elas foi. Eu digo “imaginem” e esse senhor não tinha que imaginar, eu dizia “não sei o que são canários nas minas” e aquele senhor sabia o que eram. E isso eu gosto muito. E a correspondência — digo correspondência porque eu tento sempre ou quase sempre responder — com os leitores das crónicas é muito positiva e quase genericamente interessante, produtiva. A política é desinteressante, é muito raro ser interessante.
JPN – Contou numa entrevista que na altura dos blogs sentiu uma renovação do espaço público e que, na altura da entrevista, já não sentia isso a acontecer. Continua sem sentir?
PM – Não, mas o problema não é das novas gerações. Não é que não haja pessoas nas novas gerações. Acho que, por exemplo, as pessoas novas nos jornais têm 40 anos. Eu sei porque as conheço quase todas.
JPN – Mas o que está a falhar, então?
PM – Não sei. Está a falhar qualquer coisa. Não é possível que não haja ninguém, não vou dizer com 18 anos porque não é provável haver um colunista de jornal com 18 anos, mas não é possível que não haja ninguém com 25 ou 30 anos tão interessante. De vez em quando há umas pessoas com 20 e tal, mas é muito raro. Os colunistas a que chamamos novos começaram a escrever nos jornais na altura em que eu comecei, portanto, hoje têm todos 40 ou 50.
JPN – Não acha que eles, hoje, podem estar noutras plataformas?
PM – Com certeza.
JPN – E há alguém que siga particularmente?
PM – Não, porque eu acompanhei muito intensamente os blogs que me interessavam muito e não acompanhei a mudança dos blogs para as redes sociais. Nunca tive muito interesse pelas redes sociais, sobretudo porque o que me interessava nos blogs era ler textos e nas redes sociais, claro que também tem textos, mas é mais despique, bocas, etc. E há pessoas muito talentosas a fazer isso. Mas nunca tive um interesse muito grande pelas redes sociais, portanto, não sou capaz de avaliar que pessoas interessantes é que há escrever o quê. Só me lembro de um livro. Houve uma altura em que havia muitos livros que nasceram de blogs, eu próprio publiquei alguns. Só me lembro de um livro interessante, que eu tenha conhecimento, que nasceu de textos nas redes sociais que foi um livro do Frederico Lourenço de textos dele no Facebook. Mas se calhar há, não sou capaz de dizer e também não estou a dizer “daí não virá nada de bom”. Agora, nos jornais há esse problema. Os novos, aquilo que são novos que foram escrever nos jornais há 20 anos são as pessoas que eu conheço. É o Rui Tavares, é o João Miguel Tavares, é o Henrique Raposo, é o Daniel Oliveira, etc. Nenhuma dessas pessoas é jovem.
JPN – Mas acha que essa renovação não acontece porque, como o Pedro, as pessoas responsáveis também não estão nas redes sociais?
PM – Não sei. É uma boa pergunta, mas não sei responder. Eu, certamente, hoje em dia não, porque não conheço, mas na altura em que escrevia nos blogs, certamente, recomendei pessoas que eu só conhecia dos blogs a pessoas dos jornais. Sei que, quando a imprensa se mostrou muito interessada nos blogs, houve uma série de pessoas que já escreveu nos jornais, que não era o meu caso, e também estavam nos blogs, que disseram aos diretores de jornais e aos membros de direção “vão buscar aquela pessoa”. Lá está, são todas dessa altura. O Rogério Casanova, etc. Uma série de pessoas que começou nessa altura. Isso não está a acontecer na mesma altura. É verdade, cada vez há menos jornais. Não sei, não sei, não tenho uma explicação para isso. Pode ser imobilismo, pode ser. Certamente não é porque a minha geração seja, entre aspas, melhor do que a seguinte. Não acredito que essas coisas se ponham assim. Nem assim, nem ao contrário. Acho que em todas as gerações há pessoas interessantes.
JPN – Mas gostava de saber se está a perceber que este tempo de renovação é uma exceção ou se é regra e o tempo da renovação só não chegou ainda. Daqui a 10/15 anos, a renovação vai chegar?
PM – Isso com certeza. Isso é como perguntar se a minha geração vai falecer. Posso garantir que sim. Mas eu acho que é estranho que haja essa espécie de bloqueio que eu sinto às vezes que existe e que prejudica algumas pessoas. Aliás, tive essa experiência. Pessoas que tinham uma certa sobranceria em relação aos jornais, depois foram contactados para escrever nos jornais e todas disseram que sim. Agora, é possível, isso acho mesmo que é possível – não querendo ser demasiado pessimista – que antes de falecer a minha geração faleçam os jornais. Vai sempre haver jornais e revistas, sobretudo. Diários generalistas não é garantido. Há um site muito melancólico que se chama Newspaper Death Watch, é um site americano sobre mortes de jornais. E na América morreram centenas de jornais e então eles dizem que já não há praticamente — tirando Nova Iorque, Washington, Los Angeles e tal — nenhuma cidade relevante com mais do que um jornal. O que significa, sobretudo num país onde a opinião política é bipolarizada, que a tendência maioritária tem um jornal e a minoritária não tem, e isso é um empobrecimento do espaço público.
JPN – Mudando de assunto, mas não totalmente, estava a falar da escrita. Queria falar mais sobre a sua obra poética: como é que foi despertado este interesse, inicialmente não pela escrita poética, mas pela literatura e, mais tarde, pela escrita?
PM – Quando uma pessoa se interessa por literatura pode imaginar que chegava lá de qualquer maneira. Mas eu cheguei lá por uma maneira específica que foi o facto de a literatura ser um assunto óbvio na minha casa, a casa dos meus pais. Isto é, o meu pai a escrever nos jornais, trabalhava numa editora, publicou livros, havia livros em casa, vários amigos dele eram escritores, portanto, o mundo do jornalismo, mas sobretudo da literatura, era o meu mundo. Era-me natural desde criança. Sempre convivi com a existência de livros, revistas, jornais, escritores e tudo mais. Não há um momento em que eu descubro a literatura, não há assim aquela epifania. Isso pode ter acontecido, por exemplo, com a descoberta da poesia. Isso aconteceu. Houve um momento, relativamente tardio, aliás, entre os 18 e os 20, não sei bem precisar. Claro que já antes lia poesia, tinha livros de poesia, mas a poesia não era essencial na minha vida e passou a ser num momento determinado. Mas os livros não. Os livros faziam parte do cenário, digamos assim.
JPN – Falou desse momento e agora fiquei a querer saber, também. Como foi a descoberta da poesia?
PM – No caso da poesia, foi a descoberta do poeta que continua a ser o meu poeta preferido: o T.S. Elliott.Foi a descoberta do livro dele, numa livraria, que já não existe, em Lisboa, onde eu entrei e comprei aquilo. Li e senti que a partir daquele momento a poesia e as características, as virtualidades próprias da poesia permitiam exprimir certas ideias, emoções, experiências, de uma forma que o romance, por exemplo, não conseguiria. De uma forma memorável, é sempre a palavra que me ocorre. Ou seja, até pelo facto de nós sabermos, evidentemente, versos de cor e não sabermos passagens de romances de cor. Até pela concisão. Portanto, foi nesse livro, que era “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”, que é apenas um dos poemas, o poema mais longo do primeiro livro do T.S. Elliott, que se chama “Prufrock And Other Observations”. Foi aí que eu senti que a poesia era fundamental e tanto foi assim que continua a ser, hoje, o poeta que eu gosto mais. Claro que, hoje em dia, há muitos outros poetas que eu também gosto, mas senti, por razões que seria longo explicar, que foi aqui, que ele foi o primeiro poeta que me despertou para as possibilidades da poesia e isso foi no fim da adolescência.
JPN – E tem alguma noção de quem são estas pessoas, qual é o perfil social de quem o lê?
PM – Posso-lhe dizer que escrevi em três jornais e o tipo de pessoas que me escrevia em cada um era muito diferente, mas não sou capaz de ser mais específico do que isto porque não quero fazer uma sociologia às três pancadas, mas percebia que os leitores do Diário de Notícias, depois do Público, e depois do Expresso são diferentes, as referências eram diferentes, os assuntos que suscitavam mais cartas ou mais mail eram diferentes. Também pelo facto de no DN ter uma coluna muito mais ligeira e os outros são mais crónicas culturais, chamemos-lhes assim. Mas isso senti muito. Aliás, como senti nas redações: são três redações completamente diferentes. Ao Expresso quase nunca vou, mas o Público e o DN eram — agora não sei — a noite e o dia. Não tinham nada a ver o clima de um e doutro. Num gritava-se noutro não, havia uma série de outras coisas diferentes. E isso era muito engraçado, pensar que um jornal não é só diferente naquilo que publica, mas nos leitores que tem, no ambiente interno, etc. Isso é muito engraçado.
JPN – E quem é que o Pedro gosta de ler?
PM – Quem é que eu leio? Eu leio toda a gente, praticamente. Quer dizer, toda a gente dos jornais que leio. Mas os meus cronistas favoritos que eu li em tempo real, por oposição a ler livros antigos de recolhas de crónicas, foram o Miguel Esteves Cardoso e o Vasco Pulido Valente. Não há comparação. São, de longe, os cronistas que eu gosto mais. Depois há outros, alguns mais novos da minha geração. Mas esses, quando eu comecei a ler os jornais. Eu tive um pico, aliás, que não será nunca superado, com os jornais do tempo d’O Independente, estava eu na faculdade. Acho verdadeiramente impossível voltar a acontecer aquela coisa do “sai hoje”, não é? Os jornais saem todas as semanas, mas eu lembro-me bem dessa ideia de que “sai hoje O Independente” e onde escreveram, além desses dois, o Paulo Portas, o João Bénard da Costa, escrevia muita gente que eu me habituei a admirar e que, em alguns casos, acabei a, como foi o caso do João Bénard, cruzar-me com ele mais diretamente. Mas sim, essas pessoas foram, digamos, a escola d’O Independente. Embora, todos eles já escrevessem antes d’O Independente. Todos esses quatro, mesmo os mais novos, já tinham uma carreira jornalística e foram essas as pessoas que eu li em direto e com as quais me entusiasmava. E acho muito difícil que haja um cronista político melhor do que o Vasco Pulido Valente. Não me parece que tenhamos hoje, por exemplo, ninguém tão bom como o Vasco Pulido Valente. E não há, certamente, ninguém, hoje em dia, capaz de, sozinho, influenciar tanto o estilo de uma geração como o Miguel Esteves Cardoso. O Miguel Esteves Cardoso, no fundo, foi para o jornalismo e para a crónica o que o Herman foi para o humor. Ou seja, há um antes e um depois. E depois nós podemos gostar mais ou menos do que eles fizeram mais tarde, mas o Herman no auge e o MEC no auge são game changers. Mudaram completamente o tipo de piadas, o tipo de escrita, o tipo de desenvoltura. Há um antes e depois. No caso do Herman, isso é muito evidente. Nós tínhamos um humor baseado, mesmo quando era bom, em trocadilhos, quid pro quo, etc. O Herman introduziu (não demais, porque ele sempre foi cuidadoso nisso) um bocadinho o humor absurdo. Houve um lado Monty Python que não havia no humor português tradicional. Não havia nas comédias dos anos 40, mas não havia também no Raul Solnado, etc. E depois, evidentemente, continuou. Claro que depois do MEC vieram pessoas, depois do Herman vieram os Gato Fedorento. Portanto, nenhuma dessas pessoas foi o fim da crónica ou do humor em Portugal e as pessoas que vieram a seguir fizeram coisas diferentes. Mas há um período, por volta dos 20 anos, em que nós estamos super recetivos às coisas que estão a acontecer e, de facto, tendem a ser as coisas que me marcaram para a vida, as coisas que descobri nos anos da faculdade, genericamente.
JPN – Acha que essa perceção de game changer, na altura, foi só para si? Ou em cada geração vai haver sempre alguém que transmite essa sensação e o próprio Pedro Mexia pode ser um game changer para a geração seguinte.
PM – Não, não, não. Talvez porque não conhecia pessoas, por exemplo, do humor. Agora conheço bastante, mas nessa altura não conhecia. Quando descobri o Herman não conhecia ninguém do humor. Portanto, não tenho essa noção do que era na altura, mas sei o que eles dizem hoje e todos dizem que sim. No MEC não tenho dúvidas nenhumas. Conhecia pessoas dos jornais e mesmo pessoas que não gostavam, que tinham relutância em relação a’O Independente, pelo perfil político, pelo tom um pouco juvenil quase irresponsável, mas reconheciam haver ali um talento e que havia ali uma novidade, em particular, no Miguel Esteves Cardoso e, de facto, a verdade é que continuam, ainda hoje, a ser editados os livros dele. Ainda agora saiu mais uma antologia das crónicas d’O Independente, dos princípios dos anos 90. O que acontece com essas pessoas, e o MEC e o Herman têm muita coisa em comum, é que como eles triunfaram naquilo que fizeram, aquilo que eles fizeram já entrou no nosso património comum, portanto, já não é uma novidade espetacular.
JPN – Disse há uns tempos, numa entrevista, que tinha passado muito tempo sem escrever poesia, mas que isso era irrelevante para as pessoas, porque ninguém estava à espera que escrevesse. Mas para si, de certeza que não foi irrelevante, como é que lidou com essa paragem?
PM – Eu estive seis anos sem escrever poesia, mas foi por razões extra literárias, digamos assim. Não teve nada a ver com a poesia, diretamente com a poesia que eu escrevia, mas teve a ver com o facto de eu, de certa forma, ter-me convencido, por algumas razões que na altura me pareceram boas, que a poesia não tinha relação direta com a vida. Era um jogo de palavras, que não tinha relação direta com a vida, coisa que eu sempre acreditei, e continuo a acreditar que tem. Mas durante uns anos achei que não tinha, por razões variadas, portanto, senti que não vou escrever isto, porque isto não é nada, isto são palavras. Há uma figura pública que há anos antes disse uma frase divertida que diz que, para ele, “ouvir versos era como se estivesse no bingo ou no loto em que alguém dizia 34, 22, 36”, para ele os versos soavam-lhe a sons, não conseguia fazer do poema um texto comunicável, eram pessoas a dizer coisas. Como são aqueles desenhos animados em que os pais falam só com um barulho? Não me lembro. É uma daquelas coisas muito conhecidas. Mas agora tive uma branca. Portanto, há pessoas para quem a poesia não é nada, são palavras, não retiram dali nada. Eu tive uma experiência muito interessante, que foi ir falar de poesia numa prisão. Um amigo meu que trabalhava no Ministério da Justiça, que é escritor, e organizava umas sessões de encontros de escritores com presos. E fomos a uma prisão com uma população prisional de barra pesada. E ele pediu para eu falar de poesia. E eles não anunciaram qual era o tema. Sentei-me lá. Não sabiam que eu era, naturalmente. E quando se anunciou que o tema era poesia, havendo um levantamento de rancho, quase uma revolta prisional, não queriam ouvir falar de poesia, que, aliás, achavam pelo ar deles que era um tema muito pouco viril para eles discutirem. E eu falei, depois, com uma total hostilidade da plateia, e depois no fim houve perguntas. Quando houve perguntas, houve um dos presos que fez a seguinte pergunta. Nem foi uma pergunta, neste caso. Disse-me: “não, nós não temos interesse por poesia, porque nós estamos presos, a nossa vida é isto…” E eu estava completamente bloqueado. Disse-me “não tem salvação, tirem-me daqui.” Até que ele disse isto: “Nós estamos presos, e a poesia não nos interessa porque nunca nenhum poeta esteve preso”. E eu disse “oh meu amigo, vamos então lá falar de todos os poetas que estiveram presos por crimes de A a Z.” Porque, evidentemente, há poetas, ladrões, homicidas, violadores, etc. A objeção deles era uma objeção boa. No fundo, era a mesma objeção que me levou a não escrever, que é: isto não tem nada a ver com a minha vida. E no momento em que eles ficaram com a ideia de que pessoas que tinham cometido atos parecidos com os deles, e que, portanto, tiveram uma sorte parecida com a deles, escreveram poemas e escreveram até poemas sobre isso, sobre o crime e sobre a prisão, então perceberam que há poesia sobre a nossa experiência. Portanto, isso eles valorizaram. E eu, essa objeção que eles tinham, é uma objeção absolutamente racional e sensata. É uma boa objeção. Isto é, se eu sentisse, e mais, quando eu senti, numa certa fase, que a poesia não tinha nada a ver com a vida, não vou dizer que me desinteressei da poesia, porque eu nunca deixei de ler poesia. Mas deixei de escrever, achei: “Porquê? Isto é o quê?” Isto não é nada. Isto é o tal 22, 34, 36. Não tem nenhuma relação com nada que se experimente na nossa vida do dia a dia.
JPN – Eu até estava a pensar que seria uma questão quase de fé. Algo como: a pessoa não acredita em Deus não é religiosa, o escritor não acredita na poesia não escreve poesia.
PM – Apesar de tudo, é possível uma pessoa aprender a gostar de poesia. Não sei se é possível aprender a acreditar em Deus. Acho que isso não acontece assim. Acho que é uma coisa que é ou não é. Só é parecido num sentido. É que há pessoas, por exemplo, sobretudo em adultos, que se convertem porque há alguma coisa na vida delas que, digamos, motiva essa conversão. No fundo, é o modelo do São Paulo na Bíblia. Toda a gente sabe que aquelas pessoas que passam por um momento difícil na vida e se convertem em adultos. E às vezes não tinham nenhuma relação com a religião. Aí pode haver uma comparação com a poesia, mas não creio que uma pessoa passe a gostar de poesia aos 40 anos. Não é muito comum. Pode acontecer. Mas não é comum. Até porque há um impulso, para citar o Kundera, há um impulso lírico na juventude que se perde um bocadinho. Há um lado de entusiasmo, por um lado, e inutilidade, por outro, na poesia, que na idade adulta o entusiasmo perde-se e a inutilidade ocupa tempo. É muito mais fácil uma pessoa entusiasmar-se com um poema, genericamente falando, quando leu o Rimbaud aos 20 anos, do que aos 50.
JPN – Estava a dizer que acha que é possível aprender a gostar de poesia. Acha que é possível aprender a escrever poesia? Pergunto porque sei que dá aulas para a pós-graduação em Artes da Escrita na FCSH. Acha que é possível ensinar a escrever?
PM – Lá, em todo o caso, não é só poesia.
A primeira leva de poemas de quase todos os poetas não tem interesse nenhum. São pessoas a imitar. São pessoas a fazer poemas iguais (iguais em pior, naturalmente), aos poetas de que gostavam. E depois, há momento, em que têm aquilo que se costuma chamar na poesia de uma voz própria.
JPN – Sim, mas a escrever de forma geral.
PM – Acho que é possível ensinar a escrever no sentido que é possível estudar o modo como as pessoas que escrevem bem, escrevem. Portanto, é possível e é possível, também, explicar o que é escrever mal e as coisas que não se deve fazer. Mas acho que não se pode ensinar uma pessoa a escrever bem. Isso não acredito. Há coisas que se pode explicar mais do que outras. É mais fácil explicar a uma pessoa ou ensinar uma pessoa a escrever um ensaio do que a escrever um poema. Porque um ensaio tem, apesar de ter uma estrutura, um mecanismo em que a pessoa diz “isto aqui, não sei o quê, tens um argumento, tens que provar não sei o quê.” Portanto, é como escrever um trabalho académico. No fundo, não é muito diferente. E isso toda a gente sabe que se pode ensinar. Aquele famoso livro do Umberto Eco, “Como se faz uma tese em ciências humanas”. Isso pode-se ensinar. Claro que um poema também se pode ensinar… Não sei bem o que é que quer dizer ensinar a escrever um poema. A melhor maneira de ensinar uma pessoa a fazer uma coisa é uma maneira como nós próprios aprendemos quase todas as coisas, que é imitar os outros. Que é como as crianças aprendem as coisas. Portanto, aqui está um poema do Lorca ou do Eugénio de Andrade sobre isto. Escreve-me sobre isto. Isso acontece muito quando os poetas publicaram poemas de grupo novos. Ou mesmo que não se tenham publicado, se descobre depois no espólio dos poetas. A primeira leva de poemas de quase todos os poetas não tem interesse nenhum. São pessoas a imitar. São pessoas a fazer poemas iguais (iguais em pior, naturalmente), aos poetas de que gostavam. E depois, há momento, em que têm aquilo que se costuma chamar na poesia de uma voz própria. E, então, aquilo já não é um imitador do Eugénio de Andrade, nem do Lorca, mas é o poeta tal, o fulano tal. O senhor ou senhora que, se tiver talento, será um poeta diferente daqueles que o antecederam, mesmo que haja marcas visíveis. Ontem estava a falar disso, num lançamento, é muito raro aparecer um poeta que nós consigamos dizer isto não vem de lado nenhum. É raríssimo. Mesmo aqueles na poesia portuguesa em que nós podemos mais ou menos pensar nisso. Por exemplo, é muito difícil de saber onde é que foi o Herberto Helder. É muito diferente de tudo. Mas os outros, não. Mesmo os grandes poetas. Nós conseguimos perceber o que é que eles leram. Conseguimos perceber de onde é que aquilo vem, se é uma tendência geracional, etc. E mesmo o Herberto… o Herberto o que faz é que vai buscar influências que não convergiram em mais nenhum poeta da mesma forma. Sejam poetas românticos, sejam poetas da geração beat, sejam poetas experimentais, poemas étnicos e aquilo tudo. Estão naquele caldeirão de que nasce um objeto que à primeira vista nos parece que nunca lemos nada assim. Mas aconteceu um bocado com o Rimbaud, de certa forma. Assim com alguns poetas muito marcantes. Mas há poetas muito fortes que nós percebemos de onde é que aquilo vem. No sentido em que são poetas que têm uma continuidade, sobretudo nas poesias muito fortes. Como no caso da portuguesa, da espanhola, enfim, de muitas outras. Da inglesa, da americana, da italiana. E nós conseguimos perceber que há, em certos períodos, os poetas escrevem de uma maneira que é a maneira daquele período. E depois os estudiosos investigam porque é que naquele período se escreveu assim. Porque é que alguns poetas querem aproximar a linguagem do quotidiano? Porque é que noutras fases os poetas querem usar uma linguagem completamente diferente do quotidiano? Porque é que uns querem fazer poemas sociais, outros querem fazer poemas metafísicos, etc. Há razões da sociologia literária para explicar isso. Mas em última análise, um poeta tem tanto menos interesse quanto nós percebemos que é um imitador. Isso, em geral não tem muito interesse.
JPN – E não sendo fácil ensinar a escrever, como é que tem sido essa experiência?
PM – No caso das aulas sobre o ensaio, ficou bem claro. Quando o Abel Barros Baptista, que é o coordenador dessa pós-graduação, me convidou, foi bastante claro no convite dele e depois na conversa que eu tive com ele, que não se tratava de ensinar as pessoas a escrever ensaios. É uma espécie de mini, micro, história do ensaio anglo-saxónico contemporâneo. Contemporâneo não, tem os primeiros autores que não são contemporâneos. Falo do Montaigne, que enfim, que é um dos inventores do ensaio tal como nós conhecemos, e depois de três ou quatro escritores dos séculos seguintes até o século XIX, e depois são pessoas do século XX. É a Virgínia Woolf, é o Elliott, etc. E são formas diferentes do ensaio, porque o ensaio não significa a mesma coisa para aquelas pessoas, e depois a ideia é se um ensaio é um artigo de opinião, se um ensaio pode ser ficcional, uma série de outras variantes. Claro que as pessoas depois escrevem um ensaio, porque não há muita maneira de eu avaliar se elas perceberam o que era um ensaio. Mas não é uma cadeira de técnicas para escrever ensaios.
JPN – E são bons ensaios? São bons os alunos?
PM – Eu só fiz dois anos. Até agora sim, aliás, são alunos geralmente com alguma experiência até profissional, em alguns casos no jornalismo, na publicidade, em outras áreas, em que, portanto, têm alguma, além da formação académica, experiência de vida que lhes permite ter ideias. Claro, muitas pessoas fazem, e isso não é uma vantagem, uma desvantagem, mas as pessoas optam por escrever ensaios pessoais. E eu, aliás, nestes dois anos escolhi sempre também falar sobre alguns ensaios pessoais, como o ensaio do Scott Fitzgerald chamado “The Crack Up”, e portanto acabou por haver sempre ensaios sobre dificuldades económicas, questões amorosas ou sexuais, doença mental, morte, etc. Coisas que afetaram as pessoas, que afetam de uma maneira ou de outra, e que são tão ensaios como escrever sobre a Grécia e Sophia de Mello Breyner, chamamos de ensaios às coisas mais diferentes, que podem ser pessoalíssimas ou impessoais.
JPN – Foi o ensinamento que trouxe.
PM – Sim. Respeito aquelas coisas de presunções de inocência e os trânsitos a julgar…
JPN – Não é muito comum.
PM – Não, não é muito respeitado hoje em dia, mas sim, sou muito sensível a isso.
JPN – Foi filiado no CDS durante uns anos, disse numa entrevista que foi uma história um bocado caricata, esta história de se filiar ao CDS…
PM – Basicamente foi o seguinte, eu era muito entusiasta d’O Independente, como já disse, em particular também na parte política do Paulo Portas, e quando ele foi eleito líder do CDS, escrevi-lhe uma carta a dizer que, como leitor d’O Independente, desejava-lhe toda a sorte e tal. Na altura, ainda achei que seria uma boa ideia, depois, se calhar, mais tarde, não tive essa impressão, e ele na altura respondeu-me, conhecemo-nos, e ele perguntou-me se eu me queria filiar, eu não tinha interesse em filiar, acabei por filiar-me, mas não tive nenhuma atividade. Nunca fui militante, nunca fui colar cartaz ou a reuniões. Era uma coisa um pouco… e houve uma certa altura em que escrevi um texto a criticar o Portas e uma pessoa do partido que disse que “não sei o quê, os militantes têm obrigação de…”, e eu imediatamente entreguei o cartão. Não tenho paciência para disciplinas partidárias.
JPN – Acha que foi uma decisão irrefletida? Arrepende-se?
PM – Foi uma pessoa que eu admirava a dizer “gostava muito de o ter connosco”. Pronto, foi simpático. Ele, aliás, escreveu uma ficha, assinou a ficha e disse “se quiser…”. Hoje não o teria feito, mas não aconteceu nada de especial por isso, não foi como fazer direito em que perdi 5 anos de vida. Não tenho perfil para ser membro de um partido.
Há uma velha discussão entre católicos e protestantes, mas os católicos sempre acreditaram que uma fé sem obras, como se costuma dizer, não tem valor.
JPN – À parte da política, sabemos também que a religião é um tema que lhe é caro, acredito que tenha sido um bocado herdado também pela família, mas a partir de que momento é que sentiu que passou dessa quase herança cultural para ser uma coisa já pensada e mais autónoma?
PM – Herdada foi no sentido em que houve decisões e contextos que foram decididos por mim, como acontece a quem nasce numa família com fé e prática religiosa. Não houve propriamente um momento em que eu passasse de uma coisa à outra. Foi uma coisa muito óbvia. Tive, como toda a gente, problemas, e não só no passado, com uma série de aspetos problemáticos da igreja no mundo contemporâneo, do funcionamento da igreja, mas honestamente nunca tive uma crise de fé no sentido próprio. No sentido de achar que “não, nós somos só átomos”, isso nunca me ocorreu. Vi uma famosa frase de uma campanha a favor do ateísmo, em Inglaterra, que tinha uns anúncios de autocarro a dizer “There’s probably no God”. E eu acho que, se estamos a falar em termos de probabilidade, é verdade. Mas não é uma questão de probabilidade. Quer dizer, não é uma coisa racional, não é uma coisa provável a comprovar, mas há pessoas que têm fé e outras que não têm. Eu sempre tive e essa parte sempre foi pacífica para mim, só que depois há evidentemente a transição entre o que é pacífico, ou o que pode ser pacífico, que é ter fé e o que é que isso implica na minha vida todos os dias, na minha vida e na vida dos outros. Isso é muito complicado de explicar.
JPN – Como é que a fé se manifesta no dia a dia? Há alguma forma de se manifestar ou é tudo uma questão só de crença pura e dura?
PM – Claro que sim, claro que se manifesta.
JPN – O que é que o faz acreditar?
PM – Há uma velha discussão entre católicos e protestantes, mas os católicos sempre acreditaram que uma fé sem obras, como se costuma dizer, não tem valor. Mas os protestantes, a tradição é de que a fé basta, que as pessoas se salvem pela fé, por terem fé e não pelas coisas boas que fazem. Mas essa não é a tradição católica. É evidente que uma pessoa que tenha fé, mas cuja vida e cujas ações não sejam transformadas pela fé, é uma fé que tem muito pouco valor, pelo menos humano, não é? Agora, evidentemente que há coisas em que o problema aí está entre aquilo que é absolutamente, digamos que se chama de uma escadinha de dificuldades, porque há coisas que fazem parte da mensagem cristã com as quais toda a gente concorda, genericamente. Há coisas que é quase impossível concordar racionalmente, no sentido de, por exemplo, perdoar os nossos inimigos. Podemos até achar que é bom, mas é irracional. E depois há coisas em que, evidentemente, e já nem estou a falar destas coisas mais recentes, destes desvios mais criminosos, mas a prática da Igreja deu uma ênfase que não está no texto bíblico. Por exemplo, quem lê os Evangelhos, a sexualidade não é o assunto mais importante dos Evangelhos, nem pouco mais ou menos. É que nem pouco mais ou menos. É um assunto totalmente secundário. E a Igreja tornou isso o assunto mais importante da nossa vida. Há um problema sério quando um assunto em que, quando Jesus nos Evangelhos é chamado a julgar uma mulher adúltera que está a ser apedrejada, diz “que atire a primeira pedra quem nunca pecou” e vão-se todos embora. Portanto, perante a imoralidade sexual, aquilo que está documentado na Bíblia em relação à intervenção direta de Jesus é de tolerância, de compreensão, de perdão, etc. Evidentemente que a Igreja não tem optado por esse caminho e que depois de ir a arrebentar as mãos o que arrebentou. Que não é consequência direta, mas não é impunemente que se anda a décadas a dizer que os comportamentos sexuais mais naturais são horripilantes e depois se praticam crimes mais horripilantes do que esses comportamentos sexuais naturais.
JPN – E essas ações com a Igreja, só para terminar, não afetam a relação que têm com a própria religião?
PM – Não.
JPN – Porque não?
PM – Porque são ações humanas.
JPN – Mas o que é que lhe sobra fazer enquanto religioso? Sente que tem algum papel em honrar o bom nome, ou fazer pelo bom nome da igreja?
PM – Mas isso não é de agora. Quer dizer, eu senti sempre a obrigação, acho que todas as pessoas crentes sentem a obrigação dos seus atos serem minimamente semelhantes às suas palavras. Isso não senti mais agora do que antes e também não senti que tenha conseguido isso. Nem ninguém pode dizer que conseguiu, com um grau de exigência tão grande como tem o Cristianismo. Coisas como dar a outra face e essas coisas todas, não são coisas óbvias, não é? Por exemplo, o intenso, esse sim, intensíssimo desprezo da Bíblia pelo dinheiro, por exemplo, é uma coisa difícil. O dinheiro é muito mais o inimigo do cristão na Bíblia do que o sexo. Muito mais. Há montes de referências ao dinheiro absolutamente importantes. As pessoas evidentemente que hoje vivem numa sociedade onde, e até em parte isso é natural, é que o dinheiro tem um peso muito grande e não é por acaso que a Bíblia diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Caramba, isto nem o Bloco de Esquerda diz isto. É uma condenação muito violenta daquilo que o dinheiro tem, que a riqueza tem, que nos destrói enquanto pessoas cristãs, enquanto pessoas boas, se quiser.
Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro
Este trabalho foi originalmente realizado para o jornal O Expoente no âmbito da disciplina de AIJ/Online e Imprensa – 3.º ano