O número de árbitras de futebol tem crescido em Portugal nos últimos anos. No entanto, a gravidez no desporto continua a ser pouco debatida. O JPN esteve à conversa com duas juízas, com percursos distintos, que apontam a ausência de apoio monetário e de acompanhamento psicológico à maternidade como as principais dificuldades.

O papel da mulher no desporto tem estado em constante crescimento. No caso de Portugal, sobretudo depois da criação da Liga BPI, em 2016/17, o futebol conquistou praticantes do sexo feminino, o que comprova que a tendência de apresentar o futebol como um desporto de homens está a ser quebrada.

Para além das jogadoras, também existem cada vez mais mulheres a desempenhar outras funções desportivas. Entre elas, as que, no papel de juízas, cumprem a responsabilidade de fazer respeitar as regras de jogo e de promover um bom funcionamento da partida.

Portugal conta, neste momento, com 641 árbitras em atividade, 113 das quais a nível nacional, indica fonte oficial da Federação Portuguesa de Futebol, ao JPN. Dentro deste lote, existe um total de dez árbitras internacionais (cinco principais e outras cinco como assistentes).

Isto obriga a que se levantem algumas questões que, de forma natural, envolvem as mulheres. Uma delas é a maternidade, um tema que obriga a equacionar o time-out, ou até mesmo a interrupção das carreiras das profissionais que se tornam também mães.

Será que algo inerente à natureza humana pode tornar-se num “bicho de sete cabeças”, ou é possível desmitificar-se a impossibilidade de gerir carreiras mesmo sendo mãe ou estando grávida?

Rita Vieira e Beatriz Campos são bons exemplos do que é lidar com o processo de gravidez durante a carreira e fazer a gestão de dois momentos e papéis diferentes: ser mãe e árbitra.

Começo a pôr numa balança para ver se o futebol pesa mais do que o meu filho.

Saber gerir em equilíbrio a carreira e a vida familiar

Com o apito na mão desde os 21 anos de idade, Rita Vieira, agora com 30, confessou ao JPN que sempre teve vontade de ser mãe. Apesar da paixão pela arbitragem, Rita assumiu “nunca ter tido a ambição de subir aos patamares nacionais”, também muito fruto da idade já tardia com que começou.

Quando engravidou, há três anos atrás, a árbitra da Associação de Futebol do Porto (AFP) não teve “problema em deixar a atividade de parte”, acreditando que a suspensão do tempo nos relvados foi em prol “de um bem maior”- o seu filho.

Hoje, como mãe e árbitra, Rita Vieira enfrenta um grande desafio: a gestão do tempo. À semana trabalha numa imobiliária e ao fim de semana calça as chuteiras para abraçar o seu “hobby”. Admite “sentir alguma culpa” por passar pouco tempo com a família: “Começo a pôr numa balança para ver se o futebol pesa mais do que o meu filho”.

Já pensou em desistir, mesmo contando com o apoio da família: “Eu penso nisto várias vezes, mas é verdade que todos os fins de semana vou para os jogos”, refere. Confessa que sente dificuldade em gerir todos os compromissos e reconhece que não participa de muitas das atividades que o seu marido tem com o filho.

Beatriz Campos descreve uma história e uma realidade um pouco diferentes. Entrou para o mundo da arbitragem com apenas 17 anos, na altura através da Associação de Futebol de Coimbra, mas acabaria por se mudar para a AFP na época desportiva 2019/20, por já estar a morar na Invicta.

Hoje, com 28 anos, é mãe de duas filhas, árbitra e estudante de medicina. À exceção do seu primeiro ano no ramo, Beatriz atuou sempre nos campeonatos nacionais, primeiro como assistente e depois como árbitra principal. Foi o tempo que precisava para as filhas que a fez recuar e voltar ao distrital, mesmo que ainda a tentassem convencer a ficar um ano mais nas competições nacionais. 

“Voltar pode ser desafiante”, diz, embora admita ter beneficiado da “compreensão dos dirigentes” que lhe permitem fazer jogos apenas aos domingos, o que lhe traz “tempo necessário para o lazer” com as filhas.

Aponta a dificuldade que é gerir o tempo para uma mulher árbitra, considerando que é “mais pesado” do que a realidade sentida pelos homens. A progressão de carreira pode, mesmo assim, estar ao alcance de cada pessoa, dependendo da maneira como faz a autogestão durante a gravidez. No entanto, as condições criadas para a arbitragem feminina não são equitativas: “Tive colegas que para terem filhos desceram de divisão“, afirma Beatriz Campos.

Fonte da AFP refere que, no que concerne às subidas e progressões de carreiras, as árbitras estão “envolvidas num processo classificativo” e que quando suspendem a atividade por motivo de gravidez ficam, automaticamente, “sem classificação”. No fundo, a profissional não sobe, mas também fica livre de descida de categoria. Não existem, por outro lado, apoios monetários às árbitras que se encontrem grávidas: “Os árbitros são compensados pelos jogos que fazem. Se não apitarem, não recebem.”

Já no que diz respeito aos departamentos de psicologia, ainda não existe nenhum departamento específico, mas “há um profissional que trabalha no tópico da psicologia” com árbitras e árbitros que precisem de auxílio. A criação de um gabinete destinado a este ramo “pode, eventualmente, surgir com o nascimento da Academia da AFP, garante a mesma fonte ao JPN.

Corpo São, Mente Sã

Quanto à componente física, as duas árbitras consideram que é um ponto importante para o desempenho das funções. Ainda a lidar com as diferenças corporais da pós-gravidez, Rita Vieira afirma que “a barreira dos 30 trouxe mais algumas dificuldades”. Contudo, a árbitra vai-se mantendo no ativo sem problemas.

A árbitra não-profissional enfrentou também a dificuldade de ter um filho em tempos de pandemia e referiu que tentava aproveitar a mínima oportunidade para se manter ativa, nem que fosse “apenas uma caminhada”.

Confessa ainda que no seu regresso não teve “grande sorte nas provas físicas”, mas contou com a compreensão dos dirigentes da AFP e levou uma época mais tranquila, “sem grandes jogos e sem grandes confusões”.

Rita Vieira não tem conhecimento de nenhum departamento que preste apoio psicológico às árbitras, no seio da sua associação. No entanto, acredita que é necessário que haja alguém que “ouça e compreenda” a sua posição, sobretudo quando esta envolve o nascimento de um filho.

Já Beatriz Campos admite ter sentido algumas dificuldades no que toca à parte física. Teve a sua primeira filha quando a época desportiva 2018/19 ainda estava por iniciar o que a fez atuar apenas por meia época. No entanto, em dezembro de 2018, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) realizou uma simulação de novos testes físicos.

Sem querer assumir que estava grávida, a estudante de medicina decidiu realizar as provas e, embora as tenha terminado, sentiu complicações a nível respiratório, algo que deixou o corpo técnico preocupado e a supor que a árbitra pudesse ter algo mais grave. Só mais tarde acabou por admitir a gravidez, situação que foi bem aceite por todos.

Beatriz Campos já dirigiu vários jogos de campeonatos nacionais. Foto: Anabela Brito Mendes/ Sports and Girls

Durante a segunda gravidez, refere Beatriz, teve um processo mais tranquilo e com maior cuidado, até porque “já sabia como lidar” com a situação.

No entanto, e sobre a questão do foro psíquico, a árbitra de 28 anos também não tem conhecimento de nenhum psicólogo, “quer a nível distrital, quer a nível da Federação”, que possa auxiliar com esse tipo de acompanhamento. “Em termos formais não temos nenhum tipo de acompanhamento“, refere.

Nos polos profissionais da FPF, explica, existem psicólogos para orientar os árbitros “na tomada de decisão” [em campo], mas não para auxiliar as árbitras nas questões da vida pessoal que acabam por ter influência na arbitragem. 

Beatriz Campos diz, contudo, que a presença de mulheres em cargos de direção tem ajudado na mudança do paradigma. Ter “uma diretora mulher” [Ana Brochado, vogal do Conselho de Arbitragem] permite “receber um tipo de tratamento com maior sensibilidade“.

A mudança de mentalidades como mote para progressão do desporto feminino

Apesar da evolução verificada nos últimos anos, a presença das mulheres no desporto continua a ser questionada por muitas pessoas. Rita Vieira afirma que ainda é “muito difícil” chegar a um estádio como árbitra, referindo que a “forma como nos recebem não é a melhor”. Outro problema são as habituais injúrias clichês que recebe enquanto está em campo, ouvindo, por exemplo, dizer-lhe que “o futebol é só para homens”. 

Apesar de tudo, Rita mantem a esperança na melhoria do paradigma, referindo que “o papel da educação é muito importante”, mas receia que a ansiada evolução ainda esteja longe.

A realidade é que, segundo as entrevistadas, e apesar de diversas nuances, algumas das quais nem sempre positivas, o processo não se encontra estagnado. Dos exemplos de Rita Vieira e Beatriz Campos fica uma certeza: deve-se seguir e construir um trajeto, mesmo que este enfrente dificuldades ou que as entidades competentes tardem em conferir à profissão o devido enquadramento.

Artigo editado por Miguel Marques Ribeiro