A passagem de automóveis particulares foi proibida no tabuleiro inferior da ponte que liga as zonas ribeirinhas de Vila Nova de Gaia e do Porto. O dia a dia dos moradores passou a dividir-se entre o "passa tudo" quando a polícia não está a ver e as "voltas desgraçadas" de vários quilómetros que é necessário fazer para chegar ao Porto.

À entrada do tabuleiro inferior da Ponte D. Luís, um autocarro da STCP cruza-se com um automóvel particular. O veículo pesado encalha na manobra, impedido de dar a curva por quem vem na direção oposta. O motorista da empresa de transportes mete a cabeça fora da janela e entabula conversa com o outro condutor. Lentamente, o carro recua, até ao ponto em que ao 900 já é possível avançar e seguir viagem.

Este cenário, tantas vezes repetido ao longo de décadas, deveria ter-se tornado uma impossibilidade depois do reinício da circulação entre as margens do Porto e de Vila Nova de Gaia. A ponte centenária, que esteve quase ano e meio fechada para obras de requalificação, que obrigaram a um investimento de cerca de quatro milhões de euros, reabriu a 14 de abril. Desde então, que o limite imposto à circulação de veículos particulares tem estado envolto em polémica.

Para além dos peões, as novas regras só permitem o atravessamento de transportes públicos, táxis e velocípedes. E, no entanto, como o JPN testemunhou, muitos carros particulares continuam a avançar sem oposição sob as arcadas de ferro – ou porque ignoram as novas regras ou porque a necessidade a tal obriga.

“Não estando a polícia passa tudo e mais alguma coisa”, diz a intérprete regional Marta Pires, em declarações ao JPN. Esta versão é corroborada por Miguel Romani, segurança no Cais de Gaia: depois de nos primeiros dias a presença policial ter dissuadido os condutores, neste momento “não há controlo nenhum“.

Os táxis são dos mais beneficiados pelas novas normas porque, ao contrários dos condutores de veículos particulares e de TVDE, podem viajar sem restrições. Estacionado na postura localizada na margem gaiense, o taxista David Neves admite que a regulamentação, a ser efetivamente aplicada, traria “mais que vantagens”. Os muitos visitantes que procuram este lado do rio têm “mais possibilidades de andar a pé”, em vez de andarem a maior parte do tempo “à procura de estacionamento”.

No mesmo sentido, Serafim Sá, também ele taxista, considera positivas as alterações: “No que diz respeito a trabalho, facilita-nos a vida, porque assim temos o tráfego mais limpo”. No entanto, admite que a situação é mais complicada para “os moradores e para quem tem que atravessar a ponte de forma rápida”. É uma situação “ambígua”, conclui.

Para viajar entre os centros históricos de Gaia e do Porto é preciso dar uma “volta desgraçada”

Um metros abaixo da ponte, do lado de Gaia, situa-se o snack-bar café Dom Pipas. A esplanada está repleta de moradores, com opiniões distintas sobre a decisão acordada a meias entre as autarquias do Porto e de Vila Nova de Gaia. “Ao nível de comércio, de negócio, é melhor”, diz o gerente do espaço, Abel Gomes. Até porque “é um perigo no verão” andarem carros na zona ribeirinha.

A maioria dos clientes, porém, pensa de forma diferente. Uma viagem “de quinhentos metros tem que se fazer em quatro ou cinco quilómetros”, explica Victor Fernandes, depois de apontar a varanda por detrás da qual nasceu, a escassos metros dali. “Pelo menos os veículos ligeiros deviam deixar passar”, caso contrário “as pessoas têm que dar uma volta desgraçada”.

Já Rui Armando, outro dos clientes, acrescenta que “a ponte estar aberta ou fechada ao trânsito não interfere com a parte histórica”, pelo que as medidas tomadas causam estranheza. Uma placa no início da Avenida Diogo Leite impede veículos não autorizados de atravessar a marginal. Assim, quem chegasse pela Ponte D. Luís poderia seguir pela Rua do General Torres sem passar pela zona mais turística, onde se concentram os armazéns do vinho do Porto. Ainda “aliviava o trânsito noutras pontes”, acrescenta Victor Fernandes.

Abel Gomes, proprietário do Dom Pipas, estabelecimento localizado em Vila Nova de Gaia. Foto: Miguel Marques Ribeiro

O mesmo se aplica do lado do Porto, onde o movimento de veículos particulares prossegue sem alterações para quem se desloca pela Avenida Gustavo Eiffel e segue pela Rua da Ribeira Negra, mas esbarra no sinal de proibido quando se pretende percorrer os 172 metros do tabuleiro inferior que permitem chegar a Gaia.

Abel Gomes ensaia uma síntese dos diferentes interesses, aparentemente incompatíveis, que estão em jogo: “Como comerciante é positivo. Como morador é negativo”, resume. Para o turismo, “isto agora está melhor. A mim custava-me estar aqui a servir os clientes e logo de manhã ter isto cheio de carros a apitar e a acelerar.”

O gerente do Dom Pipas recorda os tempos em que passou por Londres, onde “se pagam 20 libras” para entrar no centro da cidade. É assim “que acontece em todo o mundo”, acrescenta. “Onde há turismo não há carros.”

Mas “eu entendo os dois lados”, prossegue o empresário. A situação é “muito complicada” e mais ficou para os moradores mais idosos “que mal podem andar”, depois do desvio dos autocarros da zona ribeirinha. Isto, apesar de a câmara municipal ter um serviço de táxi disponível para as pessoas que vivem nesta zona do concelho e têm mobilidade reduzida.

Os moradores ouvidos pelo JPN dizem também não compreender a razão porque ainda não estão a funcionar os pilaretes que regulam o acesso ao casco histórico gaiense e que só deviam ser rebaixados pelos condutores devidamente autorizados, através de um sistema eletrónico.

Garantem que a Câmara já prometeu que vai ativar o sistema em breve, mas para já, enquanto isso não acontece, os prevaricadores têm o melhor de dois mundos: podem atravessar a ponte e seguir pela marginal sem encontrar obstáculo.