Marcados pelo caráter interventivo, ritmos vibrantes e uma grande celebração de culturas, os Francisco, el Hombre têm vindo a crescer ao longo da sua década de vida, estando ainda a explorar a plateia europeia. Em entrevista ao JPN, os irmãos fundadores, Mateo e Sebastián Piracés-Ugarte, contam que, ao longo da carreira, tiveram medo, ameaças e represálias. Mas a sua missão é mais forte: incitar "paz, alegria, coexistência".

Francisco, el Hombre começou como uma banda de fusão mexicano-brasileira, mas com o passar do tempo assumiu a missão de conhecer e explorar culturas, aprendendo com elas adotando-as. Surgiu em 2013 pela mão dos irmãos Sebastián e Mateo Piracés-Ugarte – mexicanos mas naturalizados na cidade de Campinas, São Paulo, no Brasil. 

Ao longo da jornada, juntaram-se mais três músicos que, com os irmãos, compõem a banda, atualmente. Juliana Strassacapa, também conhecida pelo projeto a solo “LAZÚLI”, dá voz ao grupo e toca percussão; Mateo também canta e encarrega-se da guitarra clássica (ou violão); Sebastián, também conhecido por Sebastianismos no âmbito do seu projeto a solo, exerce as mesmas funções e, da percussão, assume a bateria; Andrei Kozyreff fica na guitarra e Helena Papini no baixo.

Denotam-se pelo caráter interventivo e líricas preocupadas com questões sociais, ativismo e política. Criaram nome na América Latina, através de muito investimento pessoal e dos contactos que foram fazendo. Em 2017, foram inclusivamente indicados para um Grammy Latino por melhor canção em língua portuguesa, com “Triste, Louca ou Má”. Agora estão, aos poucos, a espalhar a sua mensagem na Europa.

Apesar de cantarem em línguas latinas, maioritariamente espanhol e brasileiro, acreditam que a música, em si, é o único meio de comunicação que precisam. No ano em que completam 10 anos, estão a celebrar com um tour, que tem passagem marcada no Hard Club, no Porto, esta quarta-feira (31). Em Portugal, fazem ainda mais três paragens – duas pelo aniversário, em Lisboa e Coimbra, e mais tarde no Festival Avante.

Em entrevista ao JPN, Sebastián e Mateo Piracés-Ugarte relembram uma década de experiências –  umas boas, outras piores, relacionadas com momentos de medo e censura pelo discurso político. Pode ouvir na íntegra a entrevista em áudio ou ler a versão editada na transcrição abaixo.

JPN – Este ano celebram dez anos de banda – é, aliás, a razão pela qual estão a fazer a tour pela Europa. Comecemos por um balanço: quem eram os Francisco, el Hombre quando surgiram em 2013?

Sebastián Piracés-Ugarte (S) – Éramos um grupo de gente sonhadora, com vontade de descobrir limites, de abrir as asas e ver até onde a estrada da vida poderia nos levar. Com medo de seguir um caminho encaixotado. A gente decidiu traçar o nosso próprio caminho e ver o que aconteceria. Sempre acreditando que movimento gera movimento. A gente pode não saber aonde essa estrada vai dar, mas [vai] entregando tudo, sempre, e trabalhando duas, três vezes mais do que o máximo. Sempre confiamos que isso nos levaria a algum lugar. Dez anos depois, levou a essa entrevista aqui, no Porto, do outro lado do oceano.

Mateo Piracés-Ugarte (M) – Mas a gente não tinha muito o objetivo de fazer uma banda com uma carreira de dez anos, no caso, ou mais. Começámos uma viagem pela América Latina, tocando, passando chapéu na rua, passando o chapéu em hostels em troca de hospedagem, em restaurantes em troca de comida. Realmente era uma viagem entre amizades, onde cada um de nós tinha nossa própria depressão e motivo para a música nos resgatar dessa depressão. [Criou-se] essa família para nos resgatar dessa falta de propósito. Encontramo-lo com a banda. 

JPN – E como é que se conheceram?

S – Graças à música. A história pode ser muito complexa mas, resumindo, foi a música e a urgência de a viver que nos juntou.

JPN – E como é que cada um dos membros contribui para construir a identidade de Francisco, el Hombre? Qual é o papel de cada um?

S – Você está ligada a Power Rangers? Sabe como cada Power Ranger tem sua cor, tem seu superpoder? Tal qual, juntos formamos um Megazord – que é Francisco, el Hombre. Não é o projeto de uma pessoa, é um coletivo muito orgânico. Cada um tem seus talentos, suas especialidades. Quando nos perguntam como é que a gente compõe: pode ser que um membro traga tudo já pronto; mas, normalmente, uma pessoa traz uma frase que provoca algo em outra pessoa. E o desejo de realizar algo a partir disso faz com que nós cinco, juntos, formemos esse Megazord. Umas pessoas tendem a fazer mais uma coisa ou outra, mas no final das contas a matemática é: cada um entrega[-se a] 100%.

M – Um membro é um organismo vivo. Assim, se fosse um corpo humano, acho que o Seb era o coração; a Ju [Juliana Strassacapa], a alma; eu, as pernas; a Lena [Helena Papini], os braços e o Andrei [Andrei Kozyreff] é o sangue.

S – Como você pode perceber pela descrição do Mateo, seria um ser humano acéfalo, porque não tem cabeça. (risos) Nunca foi bem pensada!

JPN – E quem são os Francisco, el Hombre agora? Já falaram daquilo que eram quando surgiram, mas qual é a vossa identidade atual? Como é que cresceram?

S – Acho que, hoje, somos pessoas adultas. Oficialmente, começámos jovens. Hoje em dia, a gente tem rugas, cabelos brancos que estão começando a surgir, entrando numa nova fase de vida. E os dez anos vêm como um sinónimo de maturidade. E a maturidade é uma coisa que assustava quando a gente era mais novo e agora, na verdade, vem como um bom vinho. Acho que a gente ‘tá na nossa melhor fase.

A gente sempre foi muito de fazer festa, de ser o coração da festa. Continuamos sendo, mas agora a gente equilibra isso com aquilo que também nos dá prazer: aproveitar o sol, aproveitar para conhecer pessoas. A gente é um coletivo que vive muito intensamente – não aquela vida destrutiva do rock star, como já foi no começo da banda. Mas uma vida muito saudável, de acordar cedo. [Por exemplo] hoje a gente caminhou 16 quilómetros pela cidade para agora poder tomar um vinho, vir para cá, conversar com você e torcer para que tenha uma boa festa hoje à noite para nos receber.

M – Acho que a gente percebeu que quer ser rock star, mas não um que morreu aos 27 [anos] – rockstar que vai morrer aos 99 e sendo rock star até aos 99. Essa maturidade faz com que se consiga fazer com que a banda seja algo que nos une, é aquilo que todos querem fazer, a intersecção das vontades de todos. No começo, [a banda] era nossa única válvula de escape – de viajar, de criar, de compor, de ser artista. Hoje, a gente foca naquilo que deixa todos bem felizes, bem contentes. A intersecção das vontades de todos, é a banda.

Foi em 2018 que a banda traçou rota inaugural pela Europa, tendo passado pelo Porto, na Casa da Música (imagens acima). A plateia, definida na América Latina, tem vindo a estender-se. Fotos: Pedro Oliveira

JPN – Os dez anos acabam por ser o primeiro grande marco da vossa história. Nesse sentido, além da tour, uma coisa que fizeram foi regravar a canção “Como Una Flor”. Porque é que decidiram fazer isso?

S – Eu estudei História na faculdade, apesar de poucas pessoas saberem disso. E uma coisa que aprendi na faculdade é que o único jeito de você fazer história é falando sobre ela e contando ela. Então, um desafio que tinha para mim, era chegar nos dez anos da banda (que são dez anos; não são dez dias, não são dez horas), e ter a certeza que esse marco existe, pelo menos para a gente. Uma forma de assinalar esse marco era regravando as músicas que carregam todos os aprendizados nossos, dos últimos anos vivendo na estrada. 

A “Como Una Flor” – a gente tocava ela passando o chapéu na praça há dez anos atrás, e soava de outra forma. Quando a gente gravou, finalmente, pela primeira vez (que era uma música velha naquela época, para a gente, em 2016), ela soava de um jeito. Anos e anos depois, soa de outro, porque nosso show é um organismo vivo. A gente pode tocar as mesmas músicas hoje e amanhã, mas serão completamente diferentes, porque o show trata-se da troca do público com a banda. A “Como Una Flor”, hoje, é o resultado de dez anos de vivência, crescimento e de experiência.

Para comemorar os dez anos de banda, a gente decidiu gravar uma coletânea. Vamos lançar, em breve, todos os grandes hits da Francisco, el Hombre ao longo desses últimos dez anos, como um marco histórico para nós e para quem nos acompanha.

M – Somos uma banda muito estradeira, muito marcados pelo show que a gente faz. As versões que gravámos das 16 músicas que estão nesse álbum são as versões que pensaríamos para fazer no show – são músicas longas, têm a sua troca com o público. Usamos os mesmos recursos sem pensar naquele fonograma pop que cabe em três minutos e tal. É sobre a pessoa dar play na música e se sentir num show da Francisco, el Hombre de cabo a rabo. E da gente se lembrar para sempre, porque a música é um marco atemporal.

JPN – O vosso trabalho, no geral, tem uma vertente muito interventiva. Não só para questões mais sociais como a “Triste, Louca ou Má” (neste caso, feministas), como políticas, como a “Bolso Nada”, por exemplo. O que é que vos inspira no momento da composição? Quais são os assuntos que querem abordar através da vossa música?

S –  A depender do contexto que a gente está vivendo, tem coisas que aparecem mais urgentes do que outras. A gente começou como uma banda que queria cantar sobre a nossa cultura e sobre as diversas culturas que se encontram na estrada. Por exemplo “La Pachanga” é um grande estudo de ritmos musicais da América Latina. Porém, os últimos dez anos no Brasil foram muito intensos em termos políticos, e foram se agravando até o final do ano passado. A gente foi percebendo que nossas urgências foram mudando. Porque não podia não cantar [algo que não fosse] aquilo a gente estava vendo e vivendo no dia a dia.

Tal qual disse Nina Simone, o artista tem a responsabilidade de cantar sobre o seu próprio tempo. Acredito que quando a gente tem o privilégio de ter o microfone e sobe em cima do palco e vai cantar sobre alguma coisa  – e se estamos vendo tanta injustiça acontecendo -, é uma responsabilidade social nossa falar sobre isso. O caminho da Francisco, el Hombre, que começou politicamente escolhendo estudar as nossas raízes, acabou transitando para defender os direitos que a gente acredita que tinham que ser defendidos nos últimos anos.

Esse ano, pela primeira vez em muitos anos, depois de tanta luta e esforço, a gente decidiu que quer finalmente celebrar. Porque também é um momento muito importante de se ter nesse processo todo. Então, esse ano, [fazemos] celebração pelos dez anos da banda, claro, mas [sobretudo] pelos tantos anos de luta e pela primeira vitória que a gente tem tantos anos que foram essas eleições [presidenciais brasileiras de 2022].

M – A alegria é uma forma de resistência, acho que no continente latino-americano existe muito isso – a denúncia festiva, o sorrir para não chorar. Então é isso, tem que celebrar cada passo.

JPN – Sobre o caráter interventivo e, sobretudo, alinhado com a vertente política: já alguma vez vos trouxe desvantagens ou consequências?

M – Com certeza. Você bota a cara a tapa, toma tapa em algum momento. Quando nos perguntam isso, sempre gosto de começar respondendo de que com certeza tem consequências, com certeza tomamos tapas. Mas a alegria de ver pessoas que se identificam com o que você está falando e que querem participar naquilo que você está fazendo é muito maior do que os tapas que foram recebidos. Sempre vale a pena você dizer o que acha, deitar para fora o que pensa com abertura para as críticas – e assim mudar. Porque as coisas que vieram a partir disso, os apoios que vieram, são muito maiores. Mas com certeza tivemos consequências – censuras, cancelamentos de shows, polícia chegando com bala de borracha no fim do show para o nosso público e ameaças. Eu estou sofrendo um processo agora por uma participação que a gente teve no 1 de maio do ano passado.

S – A lista é extensa. Processos judiciais? Check. Ameaças à integridade física? Check.  Ameaças institucionais por parte de instituições governamentais? Check. Ataques virtuais e de hacker? Check. Ataques cibernéticos que vêm de pessoas físicas e de pessoas jurídicas? Check. Sem contar a imensurável censura que vem do famoso shadow ban da internet. A gente não fala muito sobre isso porque não é legal ou produtivo ficar estimulando o medo. A real é que os últimos anos foram fodas. Nos últimos anos a gente teve medo. Já teve ocasião de eu colocar o pé fora da minha casa e receber ameaças; da gente chegar com um pedido de ordem de prisão por conta de presunções inventadas…. Não é nada fácil. Quem vê de fora, às vezes não vê isso e também não é do nosso interesse ficar comunicando isso. Por isso que a gente está tão feliz de poder celebrar esse ano. Pela primeira vez em anos a gente está leve. Me dá até vontade de chorar, mas pela primeira vez em não sei quantos anos, vou num show sem medo de receber represália física ou jurídica – o que deveria ser uma coisa natural da democracia.

M –  Acho que a coisa que mais me deu medo foi depois que, em Floripa, a polícia chegou atirando com bala de borracha, bomba de gás lacrimogênio, gritando “aqui é Bolsonaro, porra!” – a polícia dizendo isso. Me deu medo, até mais pelo nosso público – porque querendo ou não, muitas cidades que a gente tocou são redutos bolsonaristas. A gente tocava, lotava e se em cada dez pessoas uma não tinha votado no Bolsonaro, todas as pessoas que não votaram estavam ali – então o local recebia ameaça. Isso é horrível. Você colar num show onde quer ter uma catarse coletiva, sorrir, ser feliz, [e em vez disso ficar] com o medo do que pode acontecer ali.

S – Ao mesmo tempo, tem uma coisa muito importante destacar e quero deixar isso bem claro nessa entrevista. Quando nos perguntam sobre quais músicas a gente toca no nosso repertório, tem uma específica que não tocamos mais a partir dessa tour: que é “Bolso Nada”. Porquê? Porque enterramos. Acabou. Esse sobrenome tem que ser enterrado e apenas lembrado como sinónimo do fascismo brasileiro, nada mais. Como uma coisa passada. Não queremos mais dar ibope, visibilidade, mencionar esse sobrenome tão nefasto.

É também um pouco da nossa missão – não ser conhecido como a banda do contra e sim como a banda que propõe a coexistência de vários mundos. – Sebastián Piracés-Ugarte

JPN – Por causa das ameaças, já sentiram que tinham de parar? Alguma vez tiveram um medo tão grande que sentiram que tinham de mudar a forma como interagem em palco ou com o público, em geral?

S – Sim. A gente também entende onde está para fazer o show, [mas] sem deixar de dizer o que acha.

M – Sempre fizemos isso, mas nos vários momentos em que a gente teve receio a mais por algum motivo específico, entendíamos de que maneira [se podia] fazer aquilo que [se] queria, como podia adaptar o que a gente quer falar – para não deixar de falar, mas para não atiçar aquilo que dava medo. Então rolou, com certeza. Teve lugares que nos proibiram de cantar alguma música ou outra – não necessariamente “proibiram”, mas pediram para não tocar por medo de alguma represália.

JPN – Isso acontece mais no contexto da América Latina e do Brasil?

S – Sim. Mas também tem a questão de que não se trata de levantar a bandeira para chamar atenção. Se trata da missão. Criar um mundo melhor, baseado nas coisas que a gente acredita: igualdade, paz, alegria, coexistência. Por exemplo, em lugares que a gente toca, [como] festivais,  tem um monte de gente que é completa e radicalmente contrária à mensagem que a gente tem. Nesse tipo de cenário, nossa mensagem tem que entrar de uma outra forma, não pode e não quer causar atrito. A gente não está aqui para simplesmente aparecer como as pessoas que são do contra, muito pelo contrário. Quando a gente entende que está num ambiente desfavorável, coloca a nossa criatividade para usar a música, a arte, para quebrar as barreiras dentro da cabeça e trazer para o nosso lado. 

JPN – Acreditam que a música, a arte, é um veículo eficiente para passar mensagens?

S- Com certeza. No fundo, todo mundo quer um mundo de paz, de oportunidades, de igualdades, todo mundo quer receber afeto, carinho. Lembro que uma vez a gente tocou numa praça pública gigantesca para pessoas que pensam de vários jeitos diferentes. Uma das coisas que a gente propôs [foi] todo o público se abraçar. Agora soa meio cafona, mas na rua, na hora do show, fazia sentido. (risos) No final conseguimos milhares de pessoas se abraçando. Só de bater o olhar você sabe que tem pessoas que pensam de jeito muito diferente, mas no momento que se encosta, percebe que outro ser humano também é um ser humano. Aí você se relembra “não concordo, mas não odeio”. Isso é um passo muito básico no Brasil dos últimos anos: entender que não concordar não quer dizer odiar nem desejar o mal da pessoa. É também um pouco da nossa missão – não ser conhecido como a banda do contra e sim como a banda que propõe a coexistência de vários mundos. Como disse o Exército Zapatista: “é um mundo de muitos mundos”.

M -Parece que a gente sempre soube o que tinha que fazer. Honestamente, estava sempre muito inseguro se o que estava fazendo era a melhor coisa, o melhor caminho. Tem momentos que a gente ia nesse lado de vários momentos, de conseguir fazer todo mundo se abraçar, todo mundo entrar. Pelo amor e alegria as pessoas se sentiam próxima uma da outra. Teve outros que a gente sentiu que tem que ser mais combativa, porque às vezes é a nossa combatividade que instiga as pessoas a não terem medo de dizer o que pensam. Só que em todos esses passos pensávamos: será que é a melhor maneira de ajudar? Não tanto pensando na nossa integridade, mas na função que a música tem dentro esse papel. Parece algo super seguro, quando a gente às vezes fala ou escreve, mas na verdade é um passo de muita insegurança, muita dúvida, muito teste.

A alegria é uma forma de resistência. Acho que no continente latino-americano existe muito isso – a denúncia festiva, o sorrir para não chorar. –  Mateo Piracés-Ugarte

JPN – Creem que as vossas músicas têm um público mais específico ou querem que a mensagem seja abrangente?

S – Gosto que chegue a todo mundo. A música é uma coisa de todos. [A nossa] missão é poder apresentar a nossa mensagem para todo mundo. Somos uma banda que começou tocando na praça, e na praça todo mundo passa. Jovem, idoso, passa esquerda, direita, passa trabalhador e morador de rua. No final das contas, o melhor dos shows é o que se constrói quando todo mundo [se] junta, abraça e celebra que está fazendo parte desse mundo junto.

JPN – A vossa música é marcada por uma fusão de culturas, nomeadamente a mexicana e a brasileira, as vossas raízes? Onde é que essas duas culturas, tanto em termos de sonoridade como mensagem, se encontram? Ou, por outro lado, como é que se distinguem?

M – A gente começa com uma banda mexicano-brasileira, mas pode dizer que é uma banda latino-americana, porque nas nossas raízes tem Chile, México, Brasil, Argentina. Na nossa história sempre procuramos estudar as raízes da música latino-americana, que são a fusão da cultura afro, indígena e europeia. Nossa missão é esse liquidificador. (risos)

Pensando especificamente no que você perguntou, um lugar onde o México e o Brasil se encontram é na América Latina. Se você parar e pensar, o México é na América do Norte, mas se assemelha muito mais ao Brasil, que está muito longe, do que com o Canadá, que também tá na América do Norte. O significado disso surge pela história, pela maneira como fomos obrigados a resistir nos últimos 500 anos. Continentes feitos de diversas culturas, povos, histórias, cada um com a sua origem, com a sua crença, com seus simbolismos, foram colocados dentro de uma [determinada] forma de existir, uma forma de colonização análoga. E isso em vários pontos nos une: nas nossas dificuldades, alegrias, resistências e logros.

Uma coisa que começamos a perceber viajando pelo continente é que, por mais que as origens sejam totalmente diferentes, tem muita coisa que é semelhante na maneira de como a gente dá um jeito de fazer a coisa acontecer.  Isso é importante ressaltar, porque o nosso continente latino americano, nesses 500 anos de história, foi dividir para dominar. A partir do momento que a gente olha para o lado, que cria as  nossas trocas musicais, culturais e económicas, há um fortalecimento inevitável desse continente. A potência é ilimitada e muito forte. A gente vê isso no no funk, no reggaeton, que estão culturalmente dominando o mundo por essa união que rolou.

JPN – Ao longo da vossa carreira também se foram cruzando com outros artistas como Rubel ou Onda Vaga. De que forma é que essas colaborações vos marcaram e influenciaram o nosso trabalho?

S – A gente adora trocar experiência. Cada grupo artístico tem sua estrada, experiência, e poder colaborar, juntar nossas histórias, é fazer uma ponte cultural. É unir laços, criar público em outro lugar e criar público para uma banda de outro lugar no nosso, também. Essas colaborações, na maior parte das vezes, também têm trocas afetivas. Em termos de experiência de vida, é sensacional, porque o que a gente sente é que a nossa família vai crescendo, a nossa rede de amizades vai crescendo. 

M- Ser músico é muito difícil, é difícil ter banda. Cada vez que a gente troca, aprende muito. Diferentes maneiras da gente lidar com a nossas dificuldades, sejam de relação, sejam de composição, sejam económicas. A gente precisa se unir nesse sentido. Não é à toa que sindicatos existem.

JPN – Com o contacto cultural acaba por haver também uma fusão de linguagens e de línguas. Sentem que isso dificulta a comunicação?

S – Não é a dificuldade da língua, porque todo mundo ‘tá falando inglês, né?

JPN – Mas vocês cantam maioritariamente em brasileiro e espanhol.

S – Exato. Acho que o buraco é mais em baixo. A gente fala diferentes línguas e acredita-se que a dificuldade de comunicação vem por causa da linguagem. Mas acho que isso tem muito mais a ver com o imperialismo cultural norte americano. A gente fala línguas latinas. Brasileiro, mexicano, chileno, argentino, espanhol, castelhano, enfim. A verdade é que as línguas são muito próximas, muito parecidas, a compreensão é realmente muito próxima. Então a gente gosta de brincar que a língua oficial da banda é o portunhol.

O povo que nos segue e também aprecia muito isso, porque, querendo ou não, ao ressaltar as outras línguas latinas, você acaba fortalecendo uma cultura local,  ao invés de continuar fortalecendo a onda imperialista cultural norte americana.

JPN  – Tendo em conta essa proximidade que têm com a América Latina, como é que fizeram o salto para Europa?

S – A gente tinha muito interesse, particularmente porque temos essa vontade de viajar. Entendemos que a música não é a coisa que mais vai nos remunerar ao longo da vida. Sendo muito sincero, se quiséssemos tirar dinheiro, estávamos estudando qualquer outra coisa, menos música. Mas a música pode trazer experiências. Isso não tem um valor. Apreciamos muito poder viajar, aprender e descobrir cada lugar. Tínhamos muita vontade de vir desvendar a Europa, esse continente tão antigo, com tanta mistura de cultura, com uma história muito fascinante.

Há alguns anos [em 2018, quando a banda fez a primeira tour europeia] a gente decidiu gastar todo nosso dinheiro e vir para cá uma vez. E o resultado foi maravilhoso!

M – Gastar todo nosso dinheiro, não. Gastar mais do que todo o nosso dinheiro! (risos)

S – Depois disso a gente voltou, e voltou, e voltou. As porteiras se abriram, agora a Europa que nos aguente! (risos)

JPN – E como é que são recebidos pela plateia europeia?

M – Sensacional, é muito legal. Acho que é um lugar que está acostumado a ver culturas diferentes. O voo que a gente tomaria no Brasil para ir para o show, de três horas, aqui você cruza quatro fronteiras e está num novo lugar, com outro idioma. Existe esse costume de ouvir coisas de fora e a gente traz uma proposta de fora. Recebem-nos de braços abertos, com muito interesse, muito carinhoso, sempre. No ano passado a gente tocou num festival na Alemanha. Era o primeiro show que a gente tocava num lugar onde ninguém entendia nenhum dos idiomas que falamos. Ninguém conhecia a banda, nenhuma música. E foi muito legal! Qualquer coisa conectava!

Somos uma banda que começou fazendo shows pequenos, que teve muitos anos de guerrilha. E agora, no Brasil, a gente está num lugar muito privilegiado, muito legal, de poder fazer shows grandes, festivais, palcos de estrutura grandiosa. Mas quando vimos pra cá, tem menos público que no Brasil. Tem pessoas que ficam desestimuladas com isso mas a gente é aficionado dessa situação. Como cresceu tocando na rua, adoramos tocar em lugares onde ninguém nos conhece – o lugar tem tudo para dar errado, mas é aí que a criatividade vem e que a gente transforma a noite [em algo] espetacular.

JPN – E como é que são recebidos em Portugal, onde entendem perfeitamente todas as línguas que vocês falam?

M- Sinto uma coisa, tanto aqui quanto na Espanha: maior parte de nosso público, que vem para o show, é brasileira. Acho isso maravilhoso, porque quando a comunidade brasileira no exterior se junta é um sentimento muito gostoso, de muita alegria. Porém, a gente está começando a cultivar agora os públicos locais das nações – um público português, espanhol.

É muito interessante. Tentamos trabalhar, porque a reação, a maneira como se conectam com o assuntos, com músicas, ritmos é totalmente diferente. Ainda não tenho uma conclusão em relação a isso, mas é algo que quero continuar trabalhando nos próximos anos.

S – Eu adoro vir a Portugal, é sempre incrível. É quase o Brasil, mas é diferente e isso me instiga.

 JPN – E o Porto especificamente?

S- A gente tem uma história excelente aqui. O Porto é uma das cidades que eu mais adoro falar sobre. A gente viveu um dos momentos mais icónicos da história da Francisco, el Hombre aqui no Porto, na primeira vez que veio na Casa da Música. O show foi maravilhoso, a Casa da Música é sensacional. Além a arquitetura maravilhosa, a gente foi tratado muito bem pela equipe. Todo mundo cantando, dançando, pulando. Terminou o show. E a gente viu no saguão da Casa da Música pessoas preocupadas, seguranças preocupados, bombeiros. E aí começou a correr o boato de que tinha rolado um terremoto enquanto estávamos tocando. No final das contas, descobriram que na verdade não era um terremoto, mas sim Francisco, el Hombre que botou todo mundo para dançar, para pular – tanto que ligaram para os bombeiros achando que estava tendo terremoto.

Foto: Pedro Oliveira

JPN – Aproveitando o tópico da agenda, um dos próximos espetáculos é no festival Avante. Como surgiu esse convite?

S – Esse convite foi muito recente. É totalmente alinhado com as coisas que a gente vem trabalhando politicamente, nos últimos anos, no Brasil, o que me dá uma sensação ótima. Me faz ter essa sensação de irmandade entre nações. A gente continua representando os ventos da mudança, da esquerda. Estamos muito, muito felizes com esse convite.

M – Uma coisa que a gente percebeu desde essa época da guerrilha, é que fazia muito bem a nós expandir essa família, expandir essa equipe. Acho que esse convite veio justamente de a gente procurar expandir essa família, dentro daquilo que a gente acredita. De pessoas que acreditam [nas mesmas] coisas que nós. O facto de a gente dizer o que pensa, de trabalhar com pessoas que dizem o que pensam, que acreditam em coisas parecidas à nossa foi sempre a escolha mais certeira – porque daí vem mais coisa boa do que coisa ruim.

JPN – Depois do marco dos dez anos, o que podemos esperar do futuro da banda?

M – Temos um disco novo na manga, então podem esperar bastante mais música. Para os dez anos, a gente pausou todos os planos que tinha para conseguir criar esse momento celebratório, porque dez anos tem que celebrar. Mas há vários planos!

S – E a Europa que nos aguarde!