O relógio iniciava a contagem decrescente em dez minutos para a hora marcada. No romper da noite de quarta-feira (31), ainda eram poucos os que preenchiam a Sala 2 do Hard Club, mas os números iam crescendo, às pingas e em pequenos grupos, com o avançar dos ponteiros. Às 21 horas, uma sala já composta, com uma pequena multidão, começa a murmurar ansiosamente à espera de Francisco, el Hombre (FeH).

Composta por Juliana Strassacapa (voz e percussão), os irmãos Mateo Piracés-Ugarte (voz e guitarra clássica) e Sebastián Piracés-Ugarte (voz e bateria), Andrei Kozyreff (guitarra) e Helena Papini (baixo), a banda de fusões américo-latinas assinala, este ano, o seu 10.º aniversário. Para celebrar, iniciaram uma tour europeia, sendo o Porto a primeira de três paragens em Portugal.

As colunas aquecem o ambiente enquanto os últimos espectadores preenchem a sala. Com cerca de 15 minutos de atraso, é criado suspense com uma falsa partida, deixando a ecoar na sala a releitura do êxito de Chico Buarque, “Apesar de Você”, na poderosa voz de Juliana Strassacapa. Ainda não se avistavam os membros, mas a plateia já trauteava os versos em coro, a acompanhar as colunas e a balançar os corpos ritmadamente.

Uma breve introdução pré-gravada, alusiva às celebrações dos dez anos, serviu de convite para o grupo, que ao pisar o palco foi recebido com gritos. Um a um, assumiram as posições, vestidos com as cores garridas a que já nos habituaram e, no caso da vocalista, com pinturas de traço indígena no rosto. “Tá Com Dólar, Tá Com Deus” assinala um arranque robusto que lançava ao ar a premonição de uma noite muito mexida e animada.

Ainda que nos primeiros minutos, banda e público já reagem entusiasticamente à música, irradiando energia. “Como Una Flor” dá continuidade ao alinhamento num tom convidativo, apresentando-se numa versão dinâmica e interativa. Este é, aliás, o traço mais característico de FeH – absorver o público numa experiência musical de catarse e comunidade, concedendo uma interpretação única em cada espetáculo. É a presença contagiante e imparável do quinteto em palco, traduzida em cada um dos membros no seu próprio jeito, que marca o passo para quem assiste.

Denota-se uma postura mais madura, ainda que sem perder vitalidade e carga interventiva em português, espanhol e inglês. A festa continuou com “Nada Conterá a Primavera” e “Batida do Amor”, vibrando numa euforia de ritmos latinos e marcada pelas harmonias vocais dos membros, com ênfase em Mateo e Juliana. Nos dois números, os convites contínuos de Mateo para “tirar os pés do chão” foram obedientemente acatados – embora fosse difícil acompanhar a energia absolutamente explosiva que o próprio tem em palco.

Antes de passar ao ato seguinte, Mateo, na sua constante missão de puxar pela plateia, lança o desafio de superar a visita inaugural à cidade Invicta, em 2018 – quando, devido à forte adesão do público, a performance na Casa da Música foi confundida com um terramoto. Nessa nota, “Arrasta” veio para acordar quem ainda não o tivesse feito, com Mateo a liderar uma energética coreografia. “Adoro sovaco”, diz, incitando braços no ar. O pedido é acatado com agrado, com saltos para a esquerda e para a direita sob o comando do vocalista, enquanto os restantes músicos puxavam com a melodia.

O ritmo da noite acalmou um pouco para dar o holofote ao avassalador poder vocal de Juliana, que presenteou os fãs com uma forte introdução de “Loucura”, um hino à fragilidade humana. “Da queda vem a liberdade” foi uma frase acentuada múltiplas vezes com um coro de vozes sentidas.

Aproveitando o abrandamento, introduz-se a balada feminista que valeu a FeH, em 2017, uma indicação ao Grammy Latino por melhor canção em língua portuguesa. “Triste, Louca ou Má” assinala o momento mais emotivo da noite, com Juliana a convidar mulheres e membros da comunidade LGBT para as filas dianteiras. “Esta música tem poder”, diz, completando: “Já saiu há anos e só agora os homens estão a entender”. Na véspera do arranque do Mês do Orgulho LGBTQIA+, versos como “Um homem não te define” e “Você é seu próprio lar” embalam uma comunidade envolvida (alguns elementos do público até se sentaram no chão) na voz hipnotizante da cantora brasileira.

Sebastián anuncia a entrada na reta final sob protestos da audiência e negociações da quantidade de músicas restantes. Com a chamada “Sobe, sobe, resistência!”, o hit “Calor da Rua” acorda os presentes para mais momentos eufóricos de saltos, canto, dança e muito suor. Mateo abre uma roda no público, salta do palco e junta-se aos festejos, que mantiveram o ritmo até “Chama Adrenalina”.

A explosão “Chão Teto Parede” coreografada e liderada por Mateo e Juliana assinala um final vibrante e intenso, que depois de muito movimento deixa Mateo de joelhos, em palco.  A banda sai do palco mas retorna momentos a seguir, acatando um coro consistente de “Mais uma!”. O público começa a trautear “Bolso Nada”, mas Sebastián informa que essa música, marcada pela ativa crítica a Jair Bolsonaro, não voltará a ser tocada. “É p’ra enterrar”, diz o músico, aludindo à mudança do paradigma político brasileiro, advindo das eleições de 2022, que puseram Lula Silva no poder. Em vez disso, o encore foi feito com “Sincero”, que arrancou com provocações acústicas de flamengo, na voz de Sebastián e na guitarra de Mateo, antes de conceder um último momento de alegria.

Quase duas horas passaram a voar, com a sala a esvaziar por volta das 23 horas. “Francisco, el Hombre es pura fiesta!” é a promessa feita ao longo do concerto, e é entregue. A digressão volta agora à estrada, com mais duas datas em Portugal: uma em Coimbra, outra em Lisboa. Em setembro, o quinteto regressa mais vez para participar no Festival Avante.