Ala Nunu, realizadora de animação de origem polaca, percorreu a Europa para estudar esta forma de arte - mas foi em Portugal que encontrou o potencial para ajudar "indústrias não tão instituídas" a crescer. Atualmente, reside no Porto e é uma das caras da COLA Animation. À conversa com o JPN, fala sobre o seu processo criativo, a colaboração em "Ice Merchants" e a sua próxima curta “Telsche”.
Ala Nunu Leszyńska tem 29 anos e é realizadora de animação independente. É natural da Polónia, mas o percurso profissional trouxe-a até Portugal – mais concretamente até ao Porto, onde atualmente reside. Integra a COLA Animation e foi uma das caras por detrás do desenvolvimento da curta-metragem que levou a animação portuguesa além-fronteiras: “Ice Merchants”.
O seu trajeto formativo levou-a a percorrer a Europa, tendo a chance de conhecer as extensões e formatos desta arte no panorama internacional. Estudou na Polónia, na Universidade de Belas-Artes de Poznań, em Inglaterra, no Royal College of Arts, onde conheceu João Gonzalez, e em França, na Escola de Cinema de Animação La Poudrière.
Chegou a Portugal em 2006, para participar nos BANG Awards, em Torres Vedras, e foi nesta viagem que conheceu o produtor da COLA Animation (COLA), Bruno Caetano. Durante alguns anos mantiveram contacto, e as suas colaborações evoluíram desde anúncios do Minipreço para “Ice Merchants”, o filme de João Gonzalez que acabou por chegar à cerimónia dos Óscares este ano, onde Ala Nunu também marcou presença.
No seu portfólio constam trabalhos como “De Herinacio. On the Hedgehog (2015)”, “Ahead (2020)” (uma coprodução com a COLA), “Long Live Belarus” (2021) e inúmeras outras colaborações com instituições como o Instituto Britânico de Cinema, o Museu de História Natural de Londres ou a revista literária e cultural estadunidense “The Atlantic”. Apresentou “Telsche”, a sua obra mais recente, no Festival Internacional de Animação Chilemonos, no Chile, que decorreu de 22 a 27 de maio; mais tarde, vai apresentá-la no Festival de Cinema de Animação de Annecy, em França, em junho. Para além disso, vai marcar presença em festivais como o ANIMAPHIX International Animated Film Festival, a realizar-se em outubro.
Em conversa com o JPN, Ala Nunu conta que entrar no universo da animação foi “o melhor erro” que lhe podia ter acontecido. Fala ainda sobre a experiência na COLA, o background artístico, as diferenças entre Portugal e Europa no que concerne à animação e abre a cortina para projetos futuros. Com uma animação “louca”, como a descreve, cores vivas e personagens fora do comum, procura sempre descobrir até “onde é que consegue ir com aquilo que lhe dá na cabeça fazer”.
JPN – O que te fez começar nesta área em primeiro lugar?
Ala Nunu (AN) – Na verdade, comecei a trabalhar em animação por acaso. Sonhava, desde que me lembro, com ir para uma universidade polaca para estudar design gráfico, mas na Polónia é muito difícil entrar. Tens de fazer exames durante uma semana inteira, conseguir desenhar um ser humano, de forma realista, num pedaço de papel de 100cm por 70cm em seis horas, e coisas desse género. Treinei durante anos e anos. Quando finalmente fiz o exame, era tão mecânica no que estava a fazer que reprovei. Mas, pela piada, inscrevi-me em animação na minha cidade natal. Acabei por não entrar em design gráfico mas sim no curso de animação – e esse foi o melhor erro que me aconteceu. Aparentemente, é exatamente aquilo que eu queria fazer.
JPN – Tens um desenho muito próprio e utilizas cores muito vivas. De onde é que isso surgiu?
AN – Muito disso vem do meu pensamento, de até onde é que eu consigo ir com aquilo que me dá na cabeça fazer. Por exemplo, no meu filme “Ahead”, o objetivo principal era experimentar o máximo que conseguisse só porque me apetecia fazê-lo, [com vista a] tentar perceber o porquê de o querer fazer – e por aí adiante.
Enquanto realizadora de animação, gosto de abordar coisas de forma mais experimental. Acredito que, quando se constrói o mundo em imagens, se usa uma linguagem diferente da das palavras – a que estamos acostumados. Por isso não é preciso, necessariamente, ceder às barreiras que vêm com a semântica das palavras comuns. Tento combinar a ideia de usar o que sinto que é certo através de imagens e depois questionar o porquê de achar que aquilo é certo através de palavras reais, de certa forma como uma tradução. Por isso acaba por ser uma comunicação entre os dois.
Muito disso vem do meu pensamento, de até onde é que consigo ir com aquilo que me dá na cabeça fazer.
JPN – Acerca do processo criativo e da própria produção: quais são os primeiros passos e que parte consideras ser a mais interessante?
AN – A primeira coisa é [desenvolver] a ideia, algo que te entusiasme e que te faça querer explorá-la – e [escolher] algo que saibas que não te vais fartar em dois meses. Animação é um processo loucamente longo, portanto gastas a maior parte dos teus anos a falar sobre o mesmo tema, vezes e vezes sem conta, a tentar arranjar a melhor abordagem.
Depois precisas de tentar comunicar a ideia a outras pessoas. Fazer filmes é uma forma de comunicação e comunicação não funciona sem a audiência. Tens de averiguar se queres comunicar com um público mais abrangente ou com um grupo específico de pessoas. Por exemplo, tenho noção de que os meus filmes não são para todos.
Depois é que vem a parte técnica: como descobrir o produtor, com quem vais ser capaz de trabalhar e garantir que o projeto vai ter o carinho que necessita. Infelizmente, frequentemente surge o problema do dinheiro. É necessário fazer candidaturas a financiamentos.
JPN – Como funciona essa parte?
Na Europa, somos bastante sortudos. Temos financiamentos ótimos mas têm todos requisitos diferentes. O português é, na minha opinião, muito bom. Podes conseguir até 120 mil euros para uma curta-metragem, de uma só vez. Em comparação, em França [por exemplo], tens vários pequenos financiamentos. Recebes 15 mil ali, outros 20 mil aqui, depois mais 30 mil – e no total até podes ter uma quantidade superior, mas na prática vais ter de gastar muito mais tempo para aplicar [o dinheiro] a cada financiamento específico.
Quando te vais candidatar, tens de ter a certeza que consegues responder às primeiras questões: para quem é o filme, sobre o que é; depois, tens de perceber porque é que és tu a contar essa história. A parte mais importante é efetivamente comunicá-lo à dita audiência.
Na fase do financiamento, a audiência é o comité. Tens de [tentar] entender se são pessoas que já têm experiência em animação ou se deves escrever tudo de uma forma adequada a todos. Depois tens de desenvolver o estilo visual do projeto, descrever as personagens, se elas existirem, e descobrir a técnica que queres utilizar, escrever o guião e, no caso de Portugal, ter um minuto de storyboard.
Fazer filmes é uma forma de comunicação e a comunicação não funciona sem audiência.
JPN – Estás envolvida no processo de desenvolvimento das histórias que contas ou costumas animar apenas?
AN – Atualmente, sou uma das co-colaboradoras/criadoras da cooperativa COLA Animation. Nesta estrutura particular que criámos, que não é uma empresa normal onde temos chefes, meio que escolhemos aquilo que queremos explorar e o papel que queremos desempenhar em cada projeto. Por isso faço um pouco de tudo.
De momento, faço parte de muitos projetos e tenho uma função diferente em todos. Por exemplo, no “Ice Merchants” pediram-me que fosse metade da equipa de animação, juntamente com o João [Gonzalez], e foi muito divertido. Mas ao mesmo tempo não era apenas uma técnica, senti-me mais como uma atriz que está a ser dirigida e pude representar todas as personagens e a mim mesma dentro delas.
JPN – A COLA tem uma estrutura fluída e os membros desempenham várias funções, portanto.
Por causa da estrutura da COLA, que é muito fluída e regida por tarefas, acabo por poder produzir [de tudo] um pouco, do qual desfruto bastante. Uma das principais razões para querer fazer parte da COLA e desenvolver as coisas desta maneira é porque estou sempre a ver pessoas a fazerem coisas online. Depois falo com o Bruno [Caetano] e digo-lhe “já ouviste falar sobre esta pessoa? Posso contactá-la? Posso perguntar se querem ser uma coprodução pequena? Vamos falar com eles”.
Se não tivermos financiamento do Estado, muitas vezes, no fim do ano, temos sobras de projetos e podemos decidir juntos onde onde queremos investir. Desta forma, conseguimos [por exemplo] trabalhar com a Sofia El Khyari no seu filme “L’Ombre des Papillons”, que estreou no Locarno, e foi todo autofinanciado. Tínhamos um pouco de dinheiro de lado e eu tinha algum tempo disponível.
JPN – Para além da questão do financiamento de que falavas, quais é que são as principais diferenças na animação em Portugal (comparando ao resto da Europa)?
AN – O que eu adoro na indústria em Portugal é que estamos agora a criá-la. Posso apoiar realizadores e técnicos portugueses brilhantes a desenvolver as indústrias não tão instituídas. Isso quer dizer que [as indústrias] não são tão rígidas, logo podemos construí-las da forma que achamos que condiz com a independência dos artistas. [Um exemplo disso é] a COLA – não é uma empresa, é uma cooperativa, o que nos permite tentar implementar certas coisas que as pessoas achariam impossíveis de aplicar numa estrutura empresarial.
Por exemplo, tentamos usar open budgets. Quando há sobras de projetos não ficamos com elas – tentamos dividir entre os melhores técnicos para o trabalho. Acho que isso vem da abertura das pessoas, conhecer e pensar imediatamente “o que é que podemos fazer a seguir? Como é que podemos tornar as coisas possíveis?”.
O que eu adoro na indústria [ de animação] em Portugal é que estamos agora a criá-la.
JPN – Mas achas que há apoio suficiente em Portugal, ainda assim, para fazer cinema?
AN – No que toca ao financiamento, em Portugal é incrível. Acredito que é um dos melhores financiamentos que conheço na Europa.
No que toca à distribuição, adoro o que está a acontecer depois do sucesso de “Ice Merchants”, em que curtas-metragens estão a passar nos cinemas do país. As pessoas começam a perceber que há uma coisa chamada “curtas de animação”, e estão, na verdade, a começar a ficar entusiasmadas com isso. Os cinemas estão a começar a organizar exibições de curtas independentemente de Óscares, etc., apenas porque as pessoas estão a começar a saber o que se anda a passar.
O que é complicado, mas acho que ainda não tenho background para falar inteiramente disso, é o status dos freelancers em Portugal, que está agora a mudar. Pelo que percebo a ideia é ser mais estável em caso de outro COVID-19, mas na prática, para nós, o sistema vai-nos atrasar um bocado com isso.
Sobre as diferenças entre Portugal e a Polónia, na Polónia não celebramos muito o nosso sucesso. Isso vem de uma certa suspeita, de inveja mas aqui… (risos) o João [Gonzalez] até está numas palavras cruzadas! Acho que o facto do nome dele aparecer numas palavras cruzadas é uma celebração tão querida! Mesmo depois do seu primeiro filme ele já apareceu numa das perguntas do “Quem Quer Ser Milionário”! E isso é incrível.
Também adoro como instituições como a Gulbenkian apoiam o estudo no estrangeiro. E, ao mesmo tempo, a forma como as universidades em Portugal se estão a desenvolver e a questionar aos profissionais da indústria “como é que [as coisas] funcionam?” ou “o que precisam dos alunos? Como é que podemos fornecer isso? Podem ajudar-nos?”. Sinto que [nós, artistas] podemos fazer coisas e que elas estão a ser apreciadas. Isso é muito bom.
JPN – E na COLA, como funciona?
Por muito que queiramos ter toda a gente na folha de pagamento, o nosso modelo é: queremos fazer curtas e projetos com amor, mas também temos de pagar as nossas contas, por isso temos comissões de todo o mundo e fazemos projetos de publicidade, que são de pouca duração e nos permitem agendar coisas pelo meio.
Felizmente, temos um ótimo diretor de finanças, António Selas, e ele trata bem disso. Porém, por exemplo, mesmo quando se tratou da nossa viagem aos EUA por causa dos Óscares, tivemos muita sorte por sermos apoiados [por fora], nomeadamente pelo Ministério da Cultura e a Cidade do Porto.
As pessoas começam a perceber que há uma coisa chamada curtas de animação, e estão, na verdade, a começar a ficar entusiasmadas com isso.
JPN – Como foi trabalhar na produção de “Ice Merchants”?
AN – Foi incrível! Na verdade, a produção começou durante a Covid-19. Foi muito bom ter este projeto para o qual estávamos todos ansiosos por trabalhar diariamente. Nessa altura, eu estava em França, o João estava no Porto, o Bruno [Caetano] estava em Lisboa e esse era um esqueleto da equipa. O João era o realizador, o diretor artístico, o designer de personagens, o compositor, tudo! (risos) O Bruno era o produtor e eu era a animadora. Foi um prazer, por ser uma equipa tão pequena na fase em que se decidia como é que as coisas se iam desenvolver – todos nos sentimos muito respeitados no processo.
Honestamente, sinto que nos tornamos grandes amigos no caminho e aprendemos a gerir conflitos entre nós. Resultou em mais respeito mútuo entre todos, portanto foi ótimo.
“Ice Merchants” é o passo seguro para que as pessoas percebam que a animação não é só para crianças.
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JPN – Achas que o trabalho com a COLA tem vindo a aumentar e dar mais exposição à tua arte?
AN – Claro. Especialmente devido aos prémios e aos Óscares, as pessoas começam a notar – e é entusiasmante, como disse anteriormente, por exemplo com a distribuição de “Ice Merchants” nos cinemas e agora nas plataformas VOD nas televisões portuguesas. É tão entusiasmante que o público geral esteja interessado no que é animação e no que são curtas de animação. “Ice Merchants” é o passo seguro para que as pessoas percebam que a animação não é só para crianças.
JPN – Quais são as tuas ambições para o futuro?
AN – Passei os últimos anos a ajudar outras pessoas a tornar as suas ideias realidade. Ainda o quero fazer, adoro conectar pessoas, trabalhar para pessoas e colaborar com elas, especialmente. Contudo, gostaria de me desenvolver mais enquanto realizadora. É uma coisa bastante assustadora, que ambiciono há anos, porque [quando] fiz o “Ahead” e percebi que é assustador teres de te mostrar ao mundo exterior. Então, pu-lo na minha gaveta por um ano e pensei em nunca o lançar.
JPN – O filme [“Ahead”] acabou por ser muito pessoal.
AN – Fiquei surpreendida com, apesar de [inicialmente] não o querer, ter acabado com uma história absurdamente pessoal. Era muito correspondente àquele momento na minha vida. Agora sou muito grata. Embora não fizesse esse filme hoje, é muito interessante olhar para trás e perceber o que estava na minha mente naquele momento.
JPN – O teu novo filme, “Telsche”, vai estrear no festival de Annecy. O que podemos esperar dele?
AN – Não sei, estou só a deixar-me levar… Na verdade, é uma história que pude desenvolver com base num guião que a Sophie Colfer, minha querida amiga, escreveu. Ela é uma pessoa com quem eu andava a colaborar informalmente há anos. Sempre que fazia um projeto partilhava as minhas ideias com ela…então cada projeto que fazia era sempre marcado pela presença dela. Mas esta é a nossa primeira colaboração oficial, e estou tão feliz por poder fazer a visão dela ganhar vida! Mal posso esperar por fazer mais coisas!
Artigo editado por Ângela Rodrigues Pereira