Num universo em que há um número reduzido de profissionais de saúde, turnos longos e horas “extra”, os médicos dizem ser difícil ter tempo para dormir. O JPN falou com médicos, enfermeiros e uma especialista do sono, a propósito do Dia Mundial do Sono, que se celebrou na sexta-feira passada (15), para perceber as dificuldades que enfrentam e o que é o 'jet lag social'.
Carla Carneiro chegou a fazer turnos de 24 horas, pelo menos, uma vez por semana, no hospital. De manhã, recorda, quando as pessoas estavam a passar o turno, estavam pálidas, com os olhos encovados e tinham dificuldade em lembrar-se dos doentes que viram durante o turno. Mesmo que descansasse após o turno, acordava cansada. João Faustino, que está no último ano de internato de Medicina Interna no Hospital de Aveiro, teve um acidente após fazer o turno da noite. Também ele, diz continuar sonolento, depois de descansar. A enfermeira Elisa Clara, de 59 anos, não faz noites há dez anos, mas diz que a qualidade de sono não é a melhor e que continua a acordar cansada. Já Ana Sousa admite usar “suplementos e vitamínicos para ajudar na regulação do sono”.
“Estas pessoas que não tenham uma regularidade, que não trabalhem nos ditos empregos tradicionais durante o dia, se não dormirem durante a semana, e dormirem ao fim de semana para compensar, a isso chama-se o ‘jet lag social‘”, explicou a especialista do sono, Ana Rita Álvaro, ao JPN.
Os horários dos profissionais de saúde não lhes permitem descansar devidamente e, mesmo quando têm folga, descansar não é suficiente para reporem o sono. “Paga-se sempre uma fatura. Muitas vezes, essa fatura é social, mas, fisicamente, é muito pesada”, disse Carla Carneiro.
Ser médico pode ser uma verdadeira montanha-russa: “Há todo um comportamento social que é completamente alterado”
Ao JPN, João Faustino, de 30 anos, contou que já teve um acidente depois de um turno da noite. “Para quem faz uma viagem de carro de 60 km para vir trabalhar, depois de sair da noite… Já tive um acidente”, recordou o médico interno, revelando que continuam a acontecer “aqueles microssonos que são sempre perigosos”.
Já trabalhou também nos hospitais de S. João e de Santa Maria da Feira e, por norma, faz três ou quatro noites por mês. “Mal saio de noite, tento ir para casa”, sublinhou, acrescentando que perante o excesso de trabalho, consegue dormir facilmente, vencido pelo cansaço. “O resto do dia é passado sonolento, mas vou aguentando”, referiu. “Digamos que é um mal comum a todos os médicos que fazem noites”, acrescentou.
Também Carla Carneiro trabalha em Medicina Interna no Hospital de Aveiro. Ao contrário de João, desde que foi mãe há três anos e está a amamentar, não faz noites. Mas já fez.
Fazia turnos de 12 ou 24 horas, dependendo da falta de recursos humanos. Como é médica especialista, fazia o turno de 24 horas, pelo menos, uma vez por semana. “Só fazemos [noites] em contexto de urgência. É barulho a toda a hora”, começou por referir, em conversa com o JPN. Exausta, a médica na maior parte das vezes chegava a casa, deitava-se e “ficava por adormecer”.
No caso da médica, “mesmo que até dormisse umas quatro ou cinco horas seguidas [depois do turno], depois da hora em que acordava, não estava propriamente confortável”. “Não é um sono reparador, porque é fora do teu horário”, concluiu.
Ao JPN, explicou que o maior problema para o fenómeno do ‘jet lag social’, que se trata de um distúrbio do sono que acontece quando se verifica um desalinhamento entre o relógio biológico e social – ou seja, quando os horários de sono não coincidem nos dias de trabalho e dias de descanso -, é os médicos não terem uma rotina. “A tua rotina é completamente diferente todas as semanas, só que não é uma rotina”, garantiu, acrescentando que “nem se faz só noites, nem se faz só dias”. Além disso, “não é só o fazer noite, é fazer noites em dias diferentes”.
“De manhã, quando as pessoas estão a passar o turno, estão pálidas, os olhos encovados, desconfortáveis, têm dificuldade em lembrar-se dos doentes que viram durante o turno. Por isso, é que já usamos uma prancheta onde escrevemos as coisas mais importantes de cada doente”, contou, apontando o número excessivo de horas como o principal fator que potencia o desgaste dos profissionais.
“Está na tua hora de sair, tens um doente que te descompensou ou porque estavas à espera das análises do laboratório. Aquela responsabilidade é tua. Vais ficar mais horas. Isso paga sempre uma fatura. Muitas vezes, essa fatura é social, mas, fisicamente, é muito pesada”, sublinhou.
Dá ainda como exemplo os médicos que estão em formação: “Não é só as horas extra. É todo o trabalho que têm: a sobrecarga de trabalhos para apresentar, de artigos para publicar, a apresentação dos doentes, a investigação dos doentes. Tudo isso faz com que eles durmam muito menos horas“. “Há todo um comportamento social que é completamente alterado”, referiu.
Falta de profissionais, turnos da noite seguidos: um cocktail perfeito para o burnout
A privação de sono entre os enfermeiros é “generalizada e tem vindo a agravar-se”, afirmou ao JPN Guadalupe Simões, dirigente nacional do Sindicato dos Enfermeiros.
“O que acontecia habitualmente é que a seguir a um turno noturno, temos um dia de descanso. Mas este dia de descanso também é utilizado para fazer coisas que, durante os outros dias, não podíamos fazer. Por exemplo, ter que ir às compras, ou ter que ir a uma repartição pública”, recordou a enfermeira que, antes de se dedicar a tempo inteiro ao sindicato, trabalhou no Hospital de Faro.
Sendo a enfermagem “maioritariamente feminina e jovem”, quando as enfermeiras têm filhos “têm direito, por exemplo, a não fazer noites”, realçou Guadalupe Simões. Isto “obriga a que os outros enfermeiros suportem fazer esses turnos noturnos. Portanto, temos situações em que os turnos da noite e da tarde recaem praticamente sobre os mesmos enfermeiros, portanto, sobre enfermeiros mais velhos. E isso tem, efetivamente, consequências para a saúde desses enfermeiros”, afirmou.
Para a sindicalista há uma carência de enfermeiros no SNS que obriga muitos dos profissionais a fazer mais vezes noites seguidas, com consequências graves, em termos da gestão da vida privada e da saúde. Esta é uma das razões, considera, pelas quais nota que, “na sua maioria, [os enfermeiros] estão numa situação de burnout”.
“A qualidade e recuperação de sono depois de uma noite não é a mesma, é difícil lidar com as noites”, confessou ao JPN, Ana Sousa, de 35 anos, enfermeira no Hospital de S. João. A profissional refere que o seu horário “normal” são noites, mas, sempre que consegue, evita cumpri-lo.
Sempre que chega a casa, depois de um turno da noite, reduz a luminosidade da casa e usa tampões nos ouvidos para conseguir dormir. “É bastante desafiante”, rematou.
Já Elisa Clara, de 59 anos, logo que teve idade, pediu para deixar as noites. Enfermeira há 35 anos, já não faz noites há dez anos. “Apesar de já não fazer noites há anos, sinto que a minha qualidade de sono não é boa, continuo a acordar exausta”, disse ao JPN. “Posso dormir seis, sete ou oito horas, mas acordo exausta”, acrescentou.
No entanto, admite que sempre foi assim. “Sentia exaustão no corpo, mas não conseguia dormir. Tinha dificuldades em conciliar o sono”, disse, recordando os tempos em que trabalhou na urgência geral e urgência de obstetrícia do S. João. “Consegui fazer mestrado, trabalhar por turnos e conseguia ficar 48 horas sem dormir e depois não conseguir dormir”, contou.
“Acabamos por não ter o descanso suficiente, porque dormimos um dia de noite, mas depois o outro já não dormimos”, disse, apontando para a dificuldade da recuperação de sono, propícia ao ‘jet lag social’.
“Reposição de horas de sono não existe”, diz especialista do sono
A especialista do sono, Ana Rita Álvaro, afirmou que a privação do sono nos profissionais de saúde resulta de uma “imposição social”. Isto é, os médicos e enfermeiros privam-se de dormir, porque vivem “numa sociedade que não dorme e que se habituou a ter sempre os serviços disponíveis”, esclareceu, referindo que “em Portugal, o sono é muito negligenciado”.
A investigadora de Neurociências no Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra destaca que a privação de sono e o facto de poderem trabalhar durante a semana a qualquer hora – manhã, tarde ou noite – “gera, naturalmente, uma grande instabilidade na rotina“, dando conta de que o ser humano é um “animal de hábitos”.
“É evidente que os turnos dos médicos de 12 a 24 horas são para o melhor funcionamento e facilitar o acompanhamento do serviço. Mas é evidente que isso não é benéfico para os profissionais”, disse, apontando que um dos problemas prende-se com os turnos de trabalho em ambiente de urgência. Reduzir o horário de trabalho seria uma opção, no entanto, caso não o possam fazer, “terem essa consciência de ter algumas ferramentas que permitam relaxar um pouco e bem são fundamentais”.
Além disso, a investigadora sublinhou que a “reposição de horas de sono não existe”. “O número de horas de sono que não dormimos, não conseguimos recuperar”, disse a especialista. Ao não se conseguir recuperar o número de horas que não se dormiu, acumulam-se horas de privação de sono.
Ana Rita Álvaro explicou ainda que mesmo que os profissionais tentem “recuperar” nos dias livres, dormindo, por exemplo, dez horas, esta tentativa “traz em si outra desregulação ao organismo”, o que pode levar ao aparecimento do ‘jet lag social’.
O que fazer?
O primeiro passo é reconhecer a importância do sono. Para tal, destacou a importância de uma boa prática da higiene do sono: “Em casa não estarem expostos a luzes intensas, fecharem as janelas do quarto, terem um ambiente relaxado, temperatura adequada, poderem fazer algum exercício de meditação, beberem uma bebida que relaxe, não fazerem exercício físico intenso próximo das horas de dormir”.
Ao JPN, afirmou ainda que as consequências a curto prazo podem passar pela “instabilidade emocional, irritabilidade, algumas dores de cabeça, menos tolerância, alguma descontração e falta de memória”. A investigadora insistiu também no impacto que pode ter a longo prazo do ponto de vista cognitivo, como o “desenvolvimento e agravamento de doenças crónicas e graves, hipertensão ou doenças cardiovasculares” e, inclusive, “obesidade, diabetes, doenças do foro psiquiátrico, como depressão e doenças neurodegenerativas”.
“O facto de dormirem mal ou pouco e terem que continuar a trabalhar, traz o aparecimento de perturbações emocionais, como o burnout, o excesso de trabalho, as depressões”, alertou. Mas, para a especialista, uma coisa é clara: “não dormir não é uma fatalidade que não tenha solução”, concluiu.
Editado por Inês Pinto Pereira