O 25 de Abril constituiu um momento de viragem nas universidades portuguesas. No rescaldo da revolução, houve saneamentos, reintegrações e um clima de "reunião permanente" para decidir tudo, com os estudantes a poderem intervir, pela primeira vez, de uma forma muito direta no curso dos acontecimentos académicos.

Com o 25 de Abril de 1974, também as universidades portuguesas foram tomadas pelo ambiente revolucionário e pela expectativa de uma nova realidade para o ensino. Os estudantes impuseram-se num panorama académico em desordem. O resultado foi de grandes mudanças no corpo docente e nos métodos de ensino nas faculdades

“A primeira coisa que a gente fez foi demitir o diretor”, recorda o ex-presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, estudante de História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) em 1974.

António Cruz, diretor da FLUP na época, até pelo papel que teve no dia em que a polícia invadiu a faculdade para deter estudantes, foi “saneado”, isto é, foi afastado da academia em virtude do seu alinhamento político. Antes do 25 de Abril de 1974 houve professores “saneados” pelo regime. Depois da queda da ditadura, o processo virou-se ao contrário, visando então quem era próximo do regime.

Para os estudantes, não era difícil perceber – pelo menos, nalguns casos mais evidentes – que simpatias políticas tinham os docentes, como explicou ao JPN o antigo ministro das Finanças, que em 74 dava os primeiros passos como professor na Faculdade de Economia do Porto (FEP), Fernando Teixeira dos Santos.

Os saneamentos foram mais intensos logo após o 25 de Abril, quando as faculdades entraram num regime “autogestionário”. Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas e antigo professor de História na FLUP, explicou, em entrevista ao JPN, que “em assembleia, votava-se o saneado e mandava-se [o nome] para a Junta de Salvação Nacional. Isto foi no primeiro ano, depois é que já havia Constituição [aprovada em 1976]. Portanto, naquela altura, ia para os militares e eles despachavam favoravelmente.

Ana Ferreira, membro do Departamento de História da Faculdade de Letras, classifica os saneamentos como “um processo revolucionário”. “Os estudantes sabiam quais eram os professores que defendiam o Estado Novo, que já tinham tido postos ministeriais ou de secretários de Estado, por aquilo que defendiam dentro das salas de aula, ou seja, eles sabiam aqueles que eram adeptos, de alguma forma, da ditadura”, analisa a docente. Assim, à data, existiam “sobretudo estudantes a fazer política e não propriamente a estudar e a ir às aulas”.

Apesar da sensação inicial de justiça estudantil, a euforia revolucionária pode ter feito algumas vítimas inocentes, num processo facilitado pela falta de legislação. Para Fernando Teixeira dos Santos, “houve situações de saneamento em que os professores não foram saneados por questões estritamente políticas, mas porque, às vezes, por exemplo, eram professores exigentes e, portanto, houve, nalgumas situações, um certo ajuste de contas”.

Os “saneados” pré-25 de Abril

O processo de saneamento de professores não começou com o 25 de Abril. O que mudou radicalmente foram os alvos. Se depois da Revolução, foram afastadas sobretudo figuras ligadas ou simpatizantes do regime, antes disso visou aqueles que não alinhavam pela bitola da ditadura.

Antes da Revolução, o regime afastou “os professores que, por exemplo, fossem simpatizantes do Partido Comunista Português”, explica Ana Ferreira. Estes eram “afastados da Universidade, demitidos, e era proibido que dessem aulas no ensino público em Portugal. Alguns deles iam trabalhar para o ensino privado”, conta.

Segundo a obra “Estado Novo e Universidade: A Perseguição aos Professores”, de Fernando Rosas e Cristina Sizifredo, existiram “três momentos distintos de ofensiva e depuração coletiva contra professores universitários acusados de ‘revelarem espírito de oposição aos princípios da Constituição de 1933′”.

A “ofensiva” de 1935/36 constituiu a “primeira purga política do Estado Novo”, e decorreu da necessidade de consolidar um regime recentemente implementado. “Em 1935, portanto, limpava-se o terreno. Época de ‘mão dura’ contra as últimas agitações”, referem os autores na obra, a propósito do afastamento de figuras eminentes do panorama científico e universitário, como Abel Salazar, professor e cientista da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

Em 1946/47, dá-se uma “grande purga” no seguimento da “conspiração do 10 de abril”, data prevista para a realização de um golpe militar contra o salazarismo que não chegou a ocorrer. Tendo em conta que foi descoberto pela polícia política, o Governo obriga 21 professores universitários a aposentarem-se. “É uma depuração especificamente destinada à Universidade e que visa alguns dos mais prestigiados docentes e investigadores da academia portuguesa, essencialmente pelas suas ideias e posições políticas, posto que a maioria nem sequer desenvolvia atividade nas fileiras da oposição organizada”, segundo o livro.

No mesmo ano, por ter assinado uma carta a protestar contra a prisão de uma aluna da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), Ruy Luís Gomes, catedrático da FCUP, foi afastado das suas funções junto com outros professores assistentes. O matemático viria mais tarde a ser o primeiro reitor da Universidade do Porto após o 25 de Abril de 1974.

Já em 1972/73, em consequência da ocupação da Capela do Rato, em Lisboa, no Dia Mundial da Paz (1 de janeiro), por um “grupo de católicos e não católicos” sob o mote “A Paz é Possível”, seguida de uma greve de fome e de um debate a denunciar a Guerra Colonial e a ligação deste acontecimento à Igreja Católica, o Conselho de Ministros decide demitir “todos os funcionários públicos ou administrativos presentes na vigília”.

FLUP foi buscar “fora” o novo diretor

Alguns dos docentes saneados pelo regime foram reintegrados no pós-revolução. No caso da Universidade do Porto, é paradigmático o caso de Ruy Luís Gomes que se tornou, então, no primeiro reitor da UP em democracia.

Também Óscar Lopes, distinto crítico literário e linguista, encontrou finalmente um lugar na academia onde não tinha conseguido entrar por motivos políticos. Opositor do regime, militante do Partido Comunista Português, o coautor da “História da Literatura Portuguesa” foi preso em duas ocasiões e impedido de dar aulas no ensino liceal por um largo período de tempo em virtude da sua atividade política. Concorreu também, por diversas vezes, sem sucesso, ao lugar de professor na FLUP nos anos 60. Dias depois do 25 de Abril de 1974, foi o escolhido para assumir a direção da Faculdade de Letras.

Carlos Magno, ex-estudante de Filologia Germânica na FLUP, recorda que a faculdade “foi a primeira do país a lembrar-se de ir fora buscar um diretor”. Magno relembra ter sido um dos alunos que  foi ao encontro de Óscar Lopes “na Rua dos Bons Ares” para o convidar para o lugar. Descreve o episódio como “um marco histórico de que devemos ter muito orgulho”, recordando que “a Faculdade de Letras sempre foi um lugar de grande agitação”. 

Após o alvoroço decorrente do ambiente revolucionário, o Conselho Diretivo da FLUP, integrado por cinco professores e cinco alunos, tomou posse a 26 de junho de 1975. Em declarações à revista “Flama”, à altura da sua eleição como diretor da FLUP, Óscar Lopes declarou que “as estruturas democráticas da nova Faculdade de Letras” iam-se “criando pouco a pouco”. 

“Acho admirável que os estudantes, raparigas e rapazes, chamem a si responsabilidades pesadas, discutam vivamente, com entusiasmo transbordante, com generosidade mas também com senso da realidade e do possível, combinando esforços no sentido de fazerem por si, pelas suas próprias mãos, uma Faculdade nova”, disse no mesmo artigo.

Artigo da revista “Flama” sobre a eleição de Óscar Lopes para diretor da FLUP. Foto: DR

A conquista de uma Universidade aberta a todos

Nas Assembleias magnas, não era apenas discutido o saneamento de professores. Fernando Teixeira dos Santos conta que as “mudanças curriculares” relativas aos “planos de estudo” e às “formas de ensino” também foram uma consequência destas reuniões, rompendo com o anterior conceito da universidade usada pelo regime para a propaganda política e ideológica

Segundo Augusto Santos Silva, antes do 25 de Abril de 1974, “os professores não tinham nenhuma espécie de autonomia no ensino, nem o ensino era minimamente plural”, pelo que as assembleias foram responsáveis por uma reestruturação dos “currículos, bibliografias e orientações”.

A antiga ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, que era na altura aluna e, mais tarde, professora da Faculdade de Letras, recorda ao JPN que, em 1974 e 75, “vivia-se numa espécie de reunião permanente” para se “decidir isto, decidir aquilo”, mas que o verdadeiro processo de “democratização” do ensino deveu-se à abertura da universidade a “setores provenientes de outras classes sociais”.

A “massificação da Universidade” foi uma das conquistas de Abril: “A Universidade vai deixar de ser elite para um conjunto muito específico da população, que eram aqueles que tinham capacidade económica para chegar ao Ensino Superior”, explica Ana Ferreira. A historiadora esclarece ainda que “cada vez mais se vai assistir à chegada de pessoas vindas das classes populares, de origens humildes”, uma mudança estrutural que até hoje marca o ensino universitário em Portugal.

No ano letivo de 1970/1971, segundo o livro “Estado Novo e Universidade: A Perseguição aos Professores”, o número de estudantes portugueses ingressados no Ensino Superior correspondia a 49.461, 1,61% da população ativa no país. Em 2023, o ensino superior português tinha 446.028 alunos, de acordo com a Pordata.

Editado por Filipa Silva