A falta de prioridade política e da restrição orçamental contribuíram, segundo os especialistas ouvidos pelo JPN, para o estado atual do setor. O JPN procurou perceber o estado dos caminhos de ferro em Portugal, numa altura de mudança de ciclo político.
O estado atual do setor ferroviário resulta de “décadas e décadas de desinvestimento“, nomeadamente da falta de prioridade política e da restrição orçamental existente durante e após os anos da troika em Portugal. É essa a opinião de Rui Calçada, diretor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, e de alguns especialistas ouvidos pelo JPN para avaliar o estado do setor, numa altura de mudança de ciclo político.
O Bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando de Almeida Santos, considera também que a falta de dinheiro, durante o período da troika, contribuiu para o atraso do setor ferroviário português em relação aos restantes países da Europa. Considera também, no entanto, que “não existe um planeamento faseado daquilo que queremos fazer“. “É verdade que não havia dinheiro [durante o período da Troika], mas não é menos verdade que fizemos demasiadas coisas na época de 2000 a 2010, para depois não termos nada para fazer. Obviamente que nenhuma indústria se aguenta com ciclos de picos positivos ou negativos deste tempo“, acrescentou.
A falta de dinheiro para investir na ferrovia é um problema também apontado por Sérgio Fernandes, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Setor Ferroviário. Apesar de o país ter ultrapassado a crise, a ferrovia continua, segundo o sindicalista, a não ter a dotação orçamental necessária para o seu desenvolvimento. Para além da falta de investimento, aponta outros problemas, como o desgaste do material circulante e os atrasos na execução das obras da infraestrutura.
Rui Calçada, que tem um grande currículo no estudo de soluções para a ferrovia, admite, tendo por base o estudo do Boston Consulting Group, publicado em 2017, que Portugal parte de um “ponto muito baixo” no que diz respeito ao desempenho ferroviário. O estudo coloca o país nas últimas posições, apenas à frente da Roménia e da Bulgária.
Uma CP frágil a renascer da dívida
Os constantes atrasos e supressões na Comboios de Portugal (CP) estão, segundo o “Relatório da Qualidade do Serviço CP e Satisfação do Cliente – 2022″, por vezes, associados a avarias nos comboios da empresa pública, que não renova a sua frota há 24 anos. Dada a falta de compensação do Estado pela prestação do serviço público, a transportadora acumulou durante vários anos dívida, deixando de parte qualquer investimento estrutural que visasse a melhoria e expansão dos serviços.
No final do ano passado, depois de ter anunciado a compra de 117 automotoras para o serviço urbano e regional, o Executivo de António Costa deu “por concluída a operação de saneamento financeiro da CP” – ou seja, perdoou a dívida histórica da transportadora ao Estado -, retirando-a da asfixia financeira.
No despacho, podia ler-se também que “a CP será compensada pelas devidas subcompensações das obrigações de serviço público entre os anos de 2002 e 2019“, tal como estava previsto no Orçamento do Estado para 2023.
Sérgio Fernandes entende que “o Estado não fez mais do que a sua obrigação“, já que a CP “estava castrada no seu poder de decisão por causa de decisões políticas, tanto de governos do PS como do PSD”.
O diretor da FEUP partilha a mesma opinião, dizendo que os problemas na CP resultam não só da crise, mas também do facto de todos os projetos ligados à ferrovia “não caírem bem dentro do ciclo político”. Segundo Rui Calçada, a ferrovia não tem sido prioridade para os anteriores executivos, ao contrário da rodovia. “Os políticos gostam de mostrar obra feita, e, portanto, a rodovia permite, de alguma maneira, apresentar resultados“, concluiu.
O académico felicitou também o pagamento do passivo da empresa pública e alertou para a necessidade de “deixar a CP recuperar e instalar-se como o player mais importante da área de operação em Portugal”, já que é a única que “garante o serviço público”, compromisso que os “privados não têm, nem têm que ter”.
Rui Calçada afirmou ainda que não deve haver nenhum pudor em favorecer a CP, à semelhança do que diz ter acontecido noutros países europeus em relação aos operadores públicos. “Os espanhóis também o fazem com a RENFE, os franceses com a SNCF e os alemães com a Deutsche Bahn. Portanto, não vejo porque não se há-de ter uma empresa pública forte“, disse.
CP vai deixar de ser a única operadora no transporte ferroviário de passageiros
Nesse processo, a operadora vai ter concorrência, já que, em 2029, a B-Rail, primeiro operador ferroviário privado português, vai começar a operar na linha do Norte, que liga o Porto a Lisboa.
Apesar de considerar que a CP deve ser favorecida, Rui Calçada defende, à semelhança do que aconteceu em outros países, nomeadamente em Espanha, a entrada de privados no mercado português. Segundo o diretor da FEUP, a entrada de privados permitiu “a diversificação dos serviços, atraiu cada vez mais passageiros para a linha e ninguém perdeu cota. Todos os operadores aumentaram. Ou seja, a competição no próprio eixo fez com que atraísse cada vez mais pessoas para a linha“, acrescentou.
Uma visão que não é partilhada pelo sindicalista Sérgio Fernandes, que considera que “o privado atua onde tem lucro ou onde tem compensações da parte do Estado para operar”. O sindicato aponta o dedo ao Estado pela concessão dada à Fertagus – e consequente prolongamento da mesma – para operar em exclusivo no percurso entre Roma-Areeiro e Setúbal – que detém desde 1998 -, já que considera que a empresa olha apenas para o lucro e “não tem problemas de deixar a população de determinadas áreas sem serviço“.
“Desde sempre o Estado pagou à Fertagus as compensações. Eram compensações por quilómetro muito superiores àquilo que devia pagar à CP – que não pagava – e à Fertagus nunca falhou. Portanto, se eventualmente a Fertagus ou outra empresa qualquer tiver uma baixa de clientes, seja por que motivo for, o Estado vai compensar essa perda de receita. No caso da CP, entra para a dívida“, explicou.
Problemas com a infraestrutura são a maior causa de atrasos
Segundo o relatório da qualidade de serviço da CP, em 2022, 37% dos atrasos foram causados pelas obras na via. Em Portugal, a concessão e manutenção das vias são da responsabilidade da Infraestruturas de Portugal.
Neste momento, existem dois planos de investimento para a ferrovia: Ferrovia 2020 e o Programa Nacional de Investimentos (PNI) 2030 relativo aos Transportes e Mobilidade. Recentemente, em resultado do atraso nos prazos de execução, vários projetos incluídos no primeiro pacote de investimentos passaram para o PNI 2030.
O vice-presidente do Conselho de Administração da IP, Carlos Fernandes, admitiu há um ano, numa entrevista ao podcast “Sobre Carris” do jornal “Público”, que “o calendário do Ferrovia 2020 não foi ambicioso, foi um tiro no pé”, já que previa projetos que, segundo o próprio, iam além daquilo que a Infraestruturas de Portugal era capaz de concretizar. Segundo um barómetro, publicado no mesmo jornal, o atraso acumulado nesse quadro comunitário é de 33.017 dias.
Para além dos problemas associados às linhas, os passageiros queixam-se de problemas de conforto nas estações e apeadeiros que, em alguns casos, priorizam a beleza em detrimento do conforto dos utilizadores. Um dos exemplos é a Gare do Oriente, em Lisboa, que tem sido diversas vezes alvo de crítica por não proteger os passageiros do vento e da chuva.
Em fevereiro, na sequência de renovações e novas construções incluídas no projeto da alta velocidade, foi apresentado um projeto de renovação da estação: vão ser acrescentadas três linhas às oito já existentes e vão ser reforçadas as proteções contra a chuva e o vento.
Trabalhadores queixam-se dos baixos salários e da insalubridade dos espaços de trabalho
Ao JPN, Sérgio Fernandes disse que o problema da falta de manutenção das estações afeta também os trabalhadores da CP e denunciou a insalubridade dos espaços destinados aos trabalhadores da empresa. Os problemas, segundo o revisor, vão “desde infiltrações de água até à infestação de baratas“, algo que já denunciaram à CP, que diz aos trabalhadores já ter informado a IP sobre a situação.
O descontentamento dos funcionários está também relacionado com os salários, que o sindicalista diz não serem atrativos, principalmente tendo em conta os horários praticados. “Todos os dias, os horários são diferentes. Todos os dias”, revelou o também trabalhador da CP, acrescentando que, face ao desfasamento de horários, os trabalhadores veem-se obrigados a pernoitar fora de casa. Esse esforço é compensado pela empresa, mas “os valores em si não são compensatórios para a perda que o trabalhador tem, nomeadamente ao nível da relação pessoal com a família”, disse.
O sindicato fala ainda de uma normalização do trabalho extraordinário motivado pela falta de trabalhadores para garantir o serviço de passageiros. O JPN questionou a CP sobre os problemas relacionados com os trabalhadores e a operação, mas, até ao momento de publicação destes artigo, não obteve resposta.
Alta velocidade em bitola ibérica é uma decisão “muito inteligente”
Quando se fala sobre ferrovia, mais especificamente sobre a linha de alta velocidade, uma das questões que surge com regularidade é se esta deve ser construída em bitola ibérica ou europeia.
Rui Calçada considera “muito inteligente a decisão de fazer a bitola ibérica nesta fase“, já que o “transporte [de passageiros] é eficiente quando vai ao centro da cidade”, algo que não seria possível se tivesse sido adotada a métrica europeia, que obrigaria à construção de novas estações em locais de menor acessibilidade. O mesmo é defendido por Fernando de Almeida Santos, que relembra que “a linha já está toda preparada para migrar para a bitola europeia“.
A decisão colide, no entanto, com as intenções da Comissão Europeia. Contactada pelo JPN, Anna Wartberger, porta-voz do Comissariado Europeu dos Transportes, disse que Portugal “poderá iniciar a construção da nova linha ferroviária Porto – Lisboa com bitola ibérica (1.668 mm) e posterior transição para a bitola europeia até dezembro de 2030“, colidindo com o prazo para a execução da própria linha, que deverá terminar após essa data. O JPN tentou falar com o Ministério das Infraestruturas, mas não teve sucesso.
O modelo de parceria público-privada é também visto com bons olhos pelo diretor da FEUP e pelo bastonário, já que anteveem que a vontade de retirar dividendos da exploração da linha vai fazer com que o período de construção seja mais curto.
Editado por Inês Pinto Pereira