Rui Rio era o presidente da Câmara do Porto na altura do Euro 2004 e mantém as críticas que fez do ponto de vista financeiro há duas décadas. Este é o último de três artigos com base em entrevistas a personalidades que estiveram ligadas à competição no Porto, que o JPN preparou para assinalar os 20 anos sobre a organização de um dos maiores eventos da história do país.

Rui Rio esteve à conversa com o JPN sobre o Euro 2004. Foto: José Correia

Rui Rio era presidente da Câmara do Porto na altura em que se jogou o Euro 2004. Recorda, no entanto, que quando tomou posse, em janeiro de 2002, a decisão relativamente à organização do Europeu já estava tomada. “Não era presidente da Câmara do Porto quando tudo foi decidido. As coisas já estavam decididas. Atabalhoadamente decididas, mas decididas“, disse em entrevista ao JPN.

O antigo candidato a primeiro-ministro nunca escondeu as críticas ao investimento económico feito na organização da competição e alertou para as consequências económicas que tal investimento traria para o país e para as autarquias. Vinte anos mais tarde, mantém-nas.

“A minha primeira reação foi como português, como deputado. Era completamente contra, porque sentia que Portugal não tinha arcabouço económico e financeiro para abarcar uma realização daquelas. Foi uma megalomania brutal para um país tão pequenino fazer dez estádios de futebol novos e modernos. O Estado deu muito dinheiro para isso. Teoricamente deu 20% para cada estádio. Depois as câmaras endividaram-se desastradamente por uma coisa daquelas”, explicou.

O antecessor de Luís Montenegro na liderança do Partido Social Democrata (PSD) lamenta que as pessoas não tenham consciência de que a realização do Euro foi um “erro”, mesmo já tendo passado duas décadas. “Ainda hoje não há, volvidos 20 anos, uma consciência clara do erro que se cometeu. Dos dez estádios que se construíram, metade estão abandonados. O dinheiro público que foi desbaratado nisso, que agora não serve para nada. Mesmo assim não se olha para aquilo como um exemplo do que não se deve fazer. Devíamos aprender com os nossos erros”, afirmou. O economista relembra ainda que a realização do Euro foi “uma das decisões profundamente erradas que Portugal tomou no pré-Troika“.

Para além dos dez estádios, foram também construídas várias infraestruturas para a competição. Rio recorda as “obras a andar sem estarem licenciadas e com a própria Câmara metida nelas” e a “pressão” pela qual passou “para construir no Porto hotéis para o Euro 2004”. “E eu com uma dificuldade enorme em entender isso. Estamos em 2002 e querem fazer rapidamente um hotel para o 2004. Mas o Euro são duas ou três semanas. E depois o hotel? Eram coisas absolutamente irracionais“, disse.

O antigo autarca falou ainda sobre a “histeria coletiva” que existia em torno do Campeonato da Europa, da qual não era fã. “Na altura, a seguir à descoberta do caminho marítimo para a Índia, o Euro 2004 era a coisa mais importante que podia acontecer em Portugal. É muito difícil lutar contra essa irracionalidade. Digamos que o futebol é a coisa mais importante das que não têm importância nenhuma“, referiu.

Os conflitos com o FC Porto e Pinto da Costa

O antigo presidente da Câmara do Porto, que defendeu sempre a ideia de que a política e o futebol deveriam manter-se separados, acredita que a sua posição relativamente à realização do Campeonato da Europa em Portugal foi importante para “virar uma página” na relação entre as duas áreas.

“Quando ganhei as eleições, tinha do outro lado um adversário do Partido Socialista [Fernando Gomes], que era totalmente a favor do Euro, do futebol e disso tudo. Tanto era que, neste momento, ainda é o administrador financeiro da SAD do Porto. A minha perceção é que foi a minha ação relativamente ao Europeu que acabou por virar uma página na relação entre o futebol e a política. Antes de chegar à Câmara do Porto, a promiscuidade era total. Era uma pouca vergonha. Aquela minha posição foi um abanão muito grande, que levou a que tudo serenasse”, contou.

Ao longos dos anos, o FC Porto e Rui Rio tiveram algumas divergências de opinião. O ex-presidente do FC Porto, Pinto da Costa, afirmou inclusive, numa entrevista ao “Bancada” em 2021, que “esta guerra” foi um “escândalo internacional” e “pôs em causa o Euro 2004“. O ex-presidente da Câmara do Porto afirmou que “para explicar estas declarações, provavelmente teria de ir a um nível um bocado baixo”.

Os problemas que tinha, segundo o próprio, estavam apenas relacionados com o “excesso de meios que a Câmara dava ao futebol” e com a “aberração urbanística e as ilegalidades” em torno da construção do Estádio do Dragão. “O que estava ali em causa eram questões de fundo, de lógicas de investimento público, de afetação das finanças públicas. Era a prepotência de um poder fáctico, que é o futebol, sobre aquilo que é o poder democraticamente eleito, em que muitos, a começar por esse [Pinto da Costa], se julgavam os donos disto tudo“, explicou.

Ainda assim, Rio deixou claro que “nunca foi uma guerra com o FC Porto” e reforçou a importância do clube para a Invicta. “É um clube que tem 100 anos de idade e é um marco na cidade. Tem milhares de sócios que são pessoas iguais às outras, são portugueses. Portanto, nunca é, nem nunca podia ser, uma guerra com o clube. Isso era um disparate. Isso era o que faziam parecer para me tentar atacar”, disse.

Em resultado das divergências entre o ex-presidente da autarquia do Porto e o clube, Rui Rio foi “proibido” de entrar no Estádio do Dragão durante muito tempo. No entanto, a sua presença no jogo inaugural do Euro foi autorizada. Depois dessa partida, Rio não voltou lá.

Segundo Rui Rio, as pessoas tendem a viver o futebol de uma forma muito intensa e usam os jogos como momentos para “exacerbar as emoções” e, por isso, entende que a política não pode entrar nestes “populismos” e tem de ter uma maior racionalidade. “O futebol é, acima de tudo, emoção. Tem muito pouca racionalidade. Mas a política tem de ser o contrário“, acrescentou.

No entanto, o antigo candidato a primeiro-ministro teme que a situação política esteja a regredir para o que era antigamente. “Hoje, as coisas já se degradaram outra vez. O discurso mais populista, menos estruturado, a olhar mais para o presente e menos para o futuro é algo que coincide muito com a lógica do futebol. Se for ver hoje aqueles conselhos que os clubes criam para juntar individualidades, está outra vez cheio de políticos. A política caminhou para o populismo e é evidente que há uma simbiose. Mas era bom que não houvesse”, disse.

Nem tudo foi mau

Apesar de lamentar todo o dinheiro que foi investido, o economista realça que o ambiente vivido, aquando do Euro 2004, era “agradável e positivo”. “Se o investimento tivesse sido menos de metade, já teria uma opinião diferente. Era um ambiente de festa saudável e sempre achei que havia condições para ser como foi. Isso foi a parte positiva”, disse.

Outro aspeto proveitoso apontado por Rui Rio foi a visibilidade que a competição trouxe a Portugal, ainda que tenha surgido numa altura em que, segundo o próprio, o país não estava preparado. “Na altura, ainda não tínhamos as estruturas preparadas para nos lançarmos fortemente no turismo. Foi só nesse ano que se criou a Sociedade de Reabilitação Urbana da Baixa do Porto. Portanto, não tínhamos ainda condições para receber os turistas. Mas não deixou de ser uma grande promoção de Portugal. É uma página que fica na história. Recebemos um Euro, começou aqui no Porto. É algo que gostamos todos de dizer”, afirmou.

Na altura, vivia-se um clima de algum receio ao nível da segurança, devido aos ataques terroristas de Nova Iorque e Madrid. Rui Rio recorda que temeu que um evento semelhante pudesse acontecer no dia antes do início da competição. 

“Havia um jantar de receção ao Euro no dia 11 de junho, oferecido pela Câmara do Porto. De manhã, foram presas aqui, por aviso dos serviços secretos de Inglaterra, uma série de pessoas mais do que suspeitas. Fui avisado disso e tinha de decidir se fazia ou não o jantar. Não podia explicar a ninguém, que era o mais engraçado – engraçado que não tem graça nenhuma. Tinha havido o 11 de setembro, o 11 de março, aqui era 11 de junho. Batia tudo certinho”, contou.

O então presidente da Câmara do Porto decidiu avançar com o jantar, mas com cuidados redobrados: “As pessoas entraram por trás, em vez da frente. Os telhados estavam cheios de atiradores, a Marinha andava no Rio Douro, etc.“, disse. Rui Rio acredita que se tivesse cancelado o jantar, como “tinha feito tanta contestação ao Euro”, a decisão seria vista como um boicote à organização.

Apesar de não ser o maior fã do desporto rei, Rio disse que existiram alguns momentos na história do futebol nacional que o marcaram. “O Mundial de 66, por exemplo. O famoso jogo de Portugal com a Coreia do Norte que toda a gente ouve falar. Eu não ouço falar, vi o jogo com oito anos. Não percebia quase nada de futebol, mas é uma coisa que me ficou marcada”, contou. Relativamente ao Euro 2004, o momento do guarda-redes Ricardo contra a Inglaterra é o que recorda com mais afinidade. “O episódio do Ricardo, que ainda por cima tinha sido do Boavista, que era o meu clube, marcou-me. Acho uma coisa fantástica. Ele defende, pega na bola, vai e marca. É uma coisa fantástica”, contou.

Já se sabe que Portugal vai voltar a receber uma grande competição de seleções, em 2030, desta vez um Mundial, organizado em conjunto com Espanha e Marrocos. Para esta prova, Rui Rio tem uma visão muito mais otimista face à que tinha para o Euro 2004.

“A robustez do país face àquilo que era preciso construir era nenhuma. Hoje é diferente, porque temos os estádios construídos e os dos três principais clubes nacionais têm uma utilização plena. As infraestruturas estão construídas, por isso aqui já admito que o benefício que vamos tirar justifica o custo que vamos ter. Há um maior equilíbrio. O futebol português hoje tem muito mais força e prestígio. A própria Federação parece-me que tem hoje outro know-how, outra capacidade de gestão”, concluiu.

Editado por Inês Pinto Pereira