Foi morta por atropelamento depois de ter apresentado sete queixas e ser classificada como caso de “baixo risco”. Suspeito estava em liberdade condicional, já tendo sido condenado pelo homicídio de uma ex-namorada em 2009 e acusado de um outro caso de violência doméstica em 2020.
Daniela Padrino tinha 36 anos. Foi morta por atropelamento a 6 de junho. Foto: Forever Missed
O Ministério da Administração Interna (MAI) não vai, “pelo menos por agora”, abrir “qualquer inquérito” para clarificar possíveis falhas que tenham ocorrido no caso que levou à morte de Daniela Padrino, refere a entidade em resposta ao JPN.
A cidadã de origem venezuelana foi morta por atropelamento no dia 6 de junho, em São Mamede de Infesta. Antes do homicídio, Daniela terá apresentado pelo menos sete queixas contra o seu ex-namorado, o alegado autor do crime, por violência doméstica.
No dia 24 de maio, após a última queixa apresentada pela vítima, a Polícia de Segurança Pública (PSP) elaborou um Auto de Denúncia relativo às queixas de Daniela que resultou numa classificação de baixo risco. O MAI considera que foram “cumpridos todos os procedimentos protocolados para este tipo de ocorrência”.
Questionado pelo JPN, o MAI acrescenta que não será aberto um inquérito “enquanto não receber a análise exaustiva do caso” e se “revelar necessário clarificar alguma matéria”.
O homicídio de Daniela Padrino
No dia 6 de junho, por volta das 17h00, Daniela Padrino, de 36 anos, natural da Venezuela, foi atropelada por um homem, em São Mamede de Infesta. O alegado autor do crime é João Pedro Oliveira, ex-namorado de Daniela.
Segundo o “JN”, o suspeito terá subido o passeio onde a vítima se encontrava, atropelando-a e, de seguida, terá feito marcha-atrás de forma a passar várias vezes por cima do corpo. O condutor fugiu e foi perseguido até à zona do Hospital de São João, onde foi intercetado e detido pela PSP.
O suspeito, João Pedro Oliveira, encontrava-se em liberdade condicional, desde 2020, decretada a dois terços da pena de 16 anos que estava a cumprir pelo homicídio de uma outra ex-namorada, em 2009. Estava atualmente em Regime Aberto no Exterior, e a ser acompanhado por psicólogo e psiquiatra, avança o “Diário de Coimbra”, cidade de onde é natural o suspeito.
Em 2020, terá ido para Trás-os-Montes e agredido outra mulher, que apresentou queixa ao Ministério Público por violência doméstica. No entanto, devido ao confinamento durante a pandemia Covid-19, a investigação não se concluiu e não houve nenhuma alteração no regime de liberdade condicional de João Oliveira. O Tribunal de Execução das Penas de Coimbra confirmou à SIC a existência de um inquérito referente a esta queixa, mas que não houve qualquer condenação do arguido.
Daniela terá feito pelo menos sete queixas às autoridades
João Oliveira não terá aceitado o término da relação com Daniela Padrino, e a vítima alegava que, desde então, este lhe enviava e-mails de teor ameaçador.
Daniela apresentou sete queixas contra João Oliveira, avançaram o “JN” e o “Correio da Manhã”.
No dia 23 de maio, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) enviou um e-mail para o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto, dirigido à procuradora responsável pela secção de violência doméstica, com uma denúncia do caso e indiciação de que este era urgente. A resposta do Ministério Público chegou 12 dias depois, no dia da morte de Daniela Padrino, atribuindo-lhe um botão de pânico (utilizado para a teleassistência de vítimas de violência doméstica).
O “Correio da Manhã” informa que, nesta denúncia, a AIMA declarava que Daniela “vivia com medo de João”, que “temia pela sua segurança” e que João lhe “continuava a mandar vários e-mails”. Nessa denúncia, lia-se que “apesar de já ter mudado de número de telefone e palavra-passe dos e-mails, sente-se em perigo”.
No dia seguinte, a própria vítima dirigiu-se à esquadra do Bom Pastor e apresentou outra queixa por violência doméstica. Segundo a edição de 14 de junho do “Correio da Manhã”, o agente da PSP que a recebeu, descreveu que Daniela estava “desesperada, desgastada e nervosa”, tendo apresentado vários e-mails enviados pelo suspeito e referindo que acreditava que este a podia matar.
O caso foi classificado como de “baixo risco”
Quando é efetuada uma queixa por violência doméstica, a PSP faz uma avaliação de risco, de forma a que o Ministério Público determine que medidas tomar para a proteção da vítima e/ou coação do agressor.
Contactado pelo JPN, Cristiano Correia, secretário-nacional da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP) e agente da PSP, esclareceu que existe “uma grelha de avaliação de risco”, que é usada “numa fase inicial” e depois “é feita uma reavaliação” por agentes “mais especializados no âmbito da violência doméstica”.
O período entre reavaliações “depende”, variando “conforme o risco” com que é avaliado o caso (baixo, médio ou elevado), esclarece Cristiano Correia.
O JPN consultou a grelha de avaliação de risco para situações de violência doméstica utilizada pela PSP, que inclui 20 questões que podem ser respondidas com “Sim”, “Não” ou “Não se aplica/Desconhecido” e uma secção para declarar as fontes de informação que foram consultadas (“Vítima”, “Terceiros”, “Agressor/a” e “Informação Técnica”). No final do documento, há uma grelha de “cotação final” que, baseada nas respostas dadas às 20 questões, permite fazer a classificação do risco do caso.
Grelha de cotação da avaliação de risco para casos de violência doméstica.
O agente que está a elaborar o Auto tem ainda um espaço para “registar outros fatores que considere de especial risco nesta situação concreta”.
Por fim, deve classificar o risco da situação, tendo em conta a informação recolhida e “a sua experiência profissional”, podendo dar uma classificação diferente da indicada pela tabela de cotação, se assim o entender.
Carla Ferreira, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, explica ao JPN que “para haver uma ação da Justiça, tem de haver informação nos processos” e que “estas denúncias devem ser feitas com o maior número de elementos possíveis”.
Após ter apresentado queixa na esquadra do Bom Pastor, no dia 24 de maio, Daniela Padrino foi avaliada como um caso de “baixo risco”.
Porque estava o suspeito em liberdade condicional?
João Pedro Oliveira, o alegado autor do homicídio de Daniela Padrino, encontrava-se em liberdade condicional desde 2020. Esta decisão foi tomada pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra. João Oliveira tinha cumprido dez dos 16 anos a que foi condenado por ter assassinado uma ex-namorada, com 23 facadas, em 2009.
André Lamas Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, explica ao JPN que “liberdade condicional [para penas superiores a seis anos] é concedida em três momentos: a metade, a dois terços e a cinco sextos da pena”, porque “o Estado entende que entre cumprir os 16 anos de prisão e ir depois para uma liberdade plena, sem nenhum tipo de adaptação, é preferível a pessoa cumprir menos um pouco, esses tais cinco sextos. E depois, esse tempo que fica em liberdade condicional é uma liberdade condicional vigiada”, o que permite que “a pessoa tenha o acompanhamento da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais”, explica.
O professor acrescenta que “há dados que apontam para um elevado grau de reincidência em determinados crimes, e [o crime de violência doméstica] é um deles”. Na sua opinião, “se não houvesse esse período de adaptação à liberdade plena, [a taxa de reincidência] seria ainda maior”.
Em 2020, João Pedro Oliveira foi acusado de violência doméstica, em Trás-os-Montes, mas não lhe foi revogada a liberdade condicional. André Lamas Leite explica que “se, durante o período de liberdade condicional, o agente cometer um crime, é preciso que se aguarde para saber se vai ser condenado com decisão transitada em julgado. Portanto, tem que haver o processo todo até ao final. Inclusivamente, se houver recursos, só quando não for mais passível de recurso é que a decisão é transitada em julgado. Tem que se esperar esse tempo todo.”
Ao analisar a situação, o professor de Direito considera que “o que podia ter acontecido é que, ao abrigo desta segunda queixa, o Ministério Público podia ter aplicado algumas medidas de coação, como a obrigação de não se aproximar da vítima, ou de não ter armas, por exemplo” ou “até a prisão preventiva, porque [a violência doméstica] é considerada criminalidade grave”. André Lamas Leite considera que “pode ter havido uma má avaliação do risco” neste caso.
O “JN” avança que, no caso da queixa em Vila Real, foi aberto um inquérito, mas que, devido ao confinamento durante a Covid-19, não foi avante.
Um procedimento com baixo “grau de cientificidade”
Sobre a avaliação do caso de Daniela como de “baixo risco” e os critérios deste tipo de avaliação, André Lamas Leite considera que “não há um grande grau de cientificidade desta grelha [de avaliação]”, e que esta “necessita de ser reformulada”.
Na opinião do professor, “não devia ser só a polícia a fazer esta avaliação. Deveria ser feita também, por exemplo, por psicólogos”.
O docente aponta ao JPN outras falhas que deteta nos procedimentos deste tipo de casos, como a “falta de magistrados no Ministério Público”, uma vez que “se têm aposentado bastantes e não têm entrado o número suficiente de Procuradores da República”.
Acrescenta que, em “determinadas comarcas mais pequenas, não existe a SEIVD, a Secção Especializada e Integrada de Violência Doméstica, em que os procuradores do Ministério Público trabalham em rede, e estão especializados, só trabalham com violência doméstica e não trabalham com outro tipo de crimes”, tendo assim “uma articulação maior com os magistrados”, o que permite “um trabalho mais profícuo”. Recorde-se que, neste caso, há várias comarcas envolvidas: o suspeito foi condenado por um primeiro crime cometido em Castelo Branco, foi alvo de uma queixa em 2020 em Vila Real e é agora suspeito de homicídio em São Mamede de Infesta, Matosinhos.
Outro dos problemas que menciona é que “apesar de já haver uma maior sensibilização quanto a violência doméstica, por vezes, ainda ocorre aquele estereótipo de que a violência doméstica é um assunto interno das relações de intimidade e que não é uma coisa em que o Estado deve intervir. Não é verdade. O crime é público.”
Segundo o “Correio da Manhã”, o suspeito foi presente a juiz no dia 8 de junho, no Tribunal de Instrução Criminal do Porto e ficou em prisão preventiva.
O corpo da vítima já saiu do Instituto de Medicina Legal, e as cinzas seguirão para os EUA, onde reside a família, que criou um website em memória de Daniela onde já várias pessoas deixaram o seu tributo.
Editado por Filipa Silva