Helena Cunha recebeu pelo correio os desenhos dos exercícios de ginástica que teria de fazer nos Jogos de 1960. Aurora Cunha trabalhava a tempo inteiro quando já dava cartas no atletismo. José Garcia começou na canoagem ainda antes de haver uma federação da modalidade. O JPN entrevistou nove atletas, veteranos e jovens, de cinco modalidades para aferir diferenças geracionais na prática desportiva. Concluiu que muita coisa mudou, mas a falta de apoios e de condições para viver em exclusivo do desporto são aspetos que se mantêm em boa parte das modalidades.

Helena Cunha devia ter oito anos quando numa consulta de rotina disse ao pediatra “que queria fazer ginástica, porque queria ir aos Jogos Olímpicos”. Estávamos no início dos anos 50 e Portugal nunca tinha tido uma mulher nos Jogos, mas não foi isso que motivou o pedido da pequena Helena.

“Não sei como, soube que nos Jogos Olímpicos da Antiguidade, os gregos, embora andassem em guerra nas Cidades-Estado, paravam as guerras, porque nos Jogos eram todos amigos. Faziam versos e eram todos amigos. Aquilo encantou-me”, recorda a antiga ginasta olímpica, hoje com 80 anos, em entrevista ao JPN.

O médico intercedeu por ela e aconselhou a família a deixá-la ir para a ginástica. Foi assim que chegou ao Lisboa Ginásio Clube onde viria a encontrar Dália Cunha, juntamente com o treinador e marido Joseph Sammer, “o professor Sammer”, alemão que revolucionou a ginástica artística em Portugal.

As ginastas Dália Cunha, Maria Laura Amorim e Natália Cunha e Silva foram as primeiras atletas olímpicas portuguesas. Participaram nos Jogos de Helsínquia em 1952. Oito anos depois, em Roma, seria a vez da jovem Helena Cunha, então com 16 anos, cumprir o sonho de ir aos Jogos, depois de ter sido praticamente “adotada” pelo casal Dália e Sammer.

Quanto à preparação, nada tinha de parecido à atual. Campeonatos, não havia. Gente para treinar, muito pouca. Mulheres então… Helena Cunha ainda recorda que os “exercícios obrigatórios” que teria de saber fazer para ir aos Jogos vieram por correio e em desenhos com indicações difíceis de decifrar.

Os Jogos foram “uma revelação”. A vários níveis. Aprendeu dicas com a medalhada Larisa Latynina, de quem era fã; conheceu histórias de superação como a de Wilma Rudolph, uma velocista norte-americana negra que ganhou três medalhas de ouro depois de ter tido poliomielite em criança e um historial de luta contra o racismo; e cruzou-se com o pugilista Cassius Clay, que ficaria para a história do desporto e da luta pelos direitos civis como Muhammad Ali. “Se isto não foi marcante…”, diz.

“Vim dos jogos toda contente. Tinha conseguido perceber que todos se podiam dar muito bem e que só os países e os homens crescidos, como eu dizia, é que complicavam”, recorda Helena Cunha. Mas o regresso acabou por ser mais complicado do que isso. Quando chegou, adoeceu. Uma doença que provavelmente trouxe dos jogos.

“Tinha uma hepatite. Apanhei uma hepatite nos Jogos. Coisa que, afinal, costumava acontecer, porque já outras ginastas a contraíram nos Jogos. E isso limitou-me. Nunca mais pude fazer nada”, concluiu.

Aurora Cunha: “Quando gostamos de uma coisa, vamos atrás do sonho”

Natural de Ronfe, vila do concelho de Guimarães, Aurora Cunha nasceu para o atletismo “logo a seguir ao 25 de Abril de 1974”, numa altura em que “não havia condições nem apoios” para a modalidade.

Ela e os colegas treinavam num campo de futebol e na estrada, “porque não havia o trânsito que há hoje”. Nas provas, os prémios eram “secundários”: “máquinas de lavar, jogos de banho”, recorda em entrevista ao JPN. Mas nada que a tivesse afastado dos seus objetivos: “quando nós gostamos de uma coisa, vamos atrás do sonho”.

Dificuldades à parte, Aurora Cunha bateu recordes nacionais, ingressou no FC Porto, e garante que “podia ter sido a primeira” representante do atletismo feminino português nos Jogos Olímpicos, em Moscovo 1980, se não fosse o boicote parcial que o país fez, por razões políticas, a essas Olimpíadas.

Estreou-se quatro anos depois, no extremo oposto da cortina de ferro, em Los Angeles, de onde o país trouxe o seu primeiro ouro olímpico, por Carlos Lopes, na maratona. “Foram os meus primeiros Jogos e os meus melhores jogos. Sou finalista olímpica com o 6.º lugar, com 8.46:37 [nos 3 mil metros]. Fui finalista, foi como se tivesse ganho uma medalha”, afirma.

A atleta, que evoluiu para provas mais longas, ainda participou em mais duas edições dos Jogos: Seul’88 e Barcelona’92. “Infelizmente, foram jogos para esquecer, mas também é bom falarmos daquilo que corre menos bem na nossa carreira”.

Seja como for, a antiga atleta repete a palavra “orgulho” para falar de uma carreira recheada de sacrifícios e vitórias. “Eu dominei o meio-fundo e o fundo em Portugal durante 14 anos. Não é para qualquer atleta. Dos 800 metros à meia-maratona, ser recordista destas distâncias todas. Claro que os recordes são para ser batidos e hoje pertencem à Fernanda Ribeiro. E estão muito bem entregues”, refletiu a campeã do mundo de estrada (15km) em três ocasiões que ainda hoje detém o melhor tempo oficial desta distância.

Mesmo com a falta de condições que enfrentou, Aurora Cunha é perentória: “Hoje posso afirmar que tudo o que sou, tudo o que fiz e o que tenho, porque tenho uma vida estável, mesmo financeiramente, foi graças ao atletismo” e ao facto de se ter, a certa altura, especializado na maratona, distância onde estavam os melhores prémios.

José Garcia: “Viver só da canoagem não era possível de forma alguma”

Quando José Garcia começou na canoagem “não havia federação sequer”. Como Aurora Cunha, também o canoísta, natural da Azurara, em Vila do Conde, se sente “fruto do 25 de Abril”, beneficiário direto de uma sociedade mais aberta à prática desportiva.

Ganhou a primeira prova que fez, em Esposende: “A partir daí foi um amor que nunca mais parou”. Também a canoagem só era possível em paralelo com outras atividades.

“Inicialmente, trabalhava. Trabalhei numa tipografia ao mesmo tempo que estudava e treinava. Depois fui trabalhar para a Câmara Municipal de Vila do Conde e conseguia ter um horário que compatibilizava com os treinos. Mais tarde, fiz a minha licenciatura e exerci a minha profissão de professor. Viver só da canoagem não era possível de forma alguma”, lembra.

José Garcia, hoje com 60 anos, fez parte da primeira comitiva olímpica da canoagem portuguesa. A estreia deu-se em Seul’88.

Depois veio Barcelona’92 onde foi finalista e porta-estandarte de Portugal na cerimónia de encerramento. “Estive a poucos metros do [José] Carreras a cantar ‘Amigos para Sempre’… foi uma coisa indescritível”.

Momentos que ainda hoje o emocionam, mas que na altura não chegaram para lhe garantir estabilidade financeira. Entrou na faculdade, juntamente com a mulher – que também era atleta – já grávida. “Ainda consegui o apuramento para os Jogos Olímpicos de Atlanta [1996], nos EUA, mas aí os resultados já não foram os mesmos. Não era possível. Treinar duas vezes por dia e conciliar trabalho e estudo e a criação de um filho, já não resultava”, recorda.

Mas José Garcia nunca se afastou da canoagem nacional. Passou pela federação e esteve ligado à criação do Centro de Alto Rendimento de Montemor-o-Velho, de onde tem saído muito talento nacional e que deu ao país uma estrutura capaz de acolher grandes provas internacionais. A canoagem e o remo avançaram muito desde então, sendo Fernando Pimenta a figura de proa da modalidade, já com duas medalhas olímpicas no extenso espólio: prata em Londres’12, com Emanuel Silva, e bronze, a solo, em Tóquio’20.

José Azevedo: “Houve um avanço muito grande… na tecnologia, no treino, na nutrição ”

Filho de ciclista, José Azevedo ingressou na modalidade porque era “o desporto que estava mais à mão”, “sem ambição alguma de vir a ser ciclista profissional”. Mas aos 20 anos, já tinha contrato com a Recer Boavista e daí começou uma carreira que cedo se fez internacional e que nunca mais deixou de estar ligada ao ciclismo, mesmo depois de encostar a bicicleta.

Apesar de ter conseguido viver profissionalmente da modalidade desde os 20 anos, o vila-condense, hoje com 50, consegue identificar enormes diferenças neste desporto, mesmo sabendo que fez parte, na sua altura, das equipas com melhores estruturas em Portugal.

Em 1996, José Azevedo foi selecionado para ir aos Jogos de Atlanta, nos EUA, e em 2000, esteve em Sidney, na Austrália. Foi o alcançar de um objetivo que tinha, mas que na hierarquia de prioridades do ciclismo, está longe de ser considerado o topo, “um pouco à semelhança do que acontece no futebol”, compara.

“Logicamente, ser campeão olímpico é muito importante, mas ser campeão do mundo, prova que acontece todos os anos, também é um grande objetivo. Ganhar uma Volta à França também é um grande objetivo. Ganhar um Paris-Roubaix, uma Volta a Itália, também. Há ‘N’ provas muito importantes. E depois o apuramento não é feito por qualificação”, explica ao JPN o atual diretor desportivo da Efapel Cycling.

Há poucas vagas – este ano, por exemplo, Portugal leva dois ciclistas para as provas de estrada – “e é o selecionador que escolhe os atletas a levar”. “Nunca se planifica um ano a pensar nos jogos olímpicos”, conclui.

Certo é que o trabalho do selecionador nacional é cada vez mais difícil. “Estamos numa fase muito positiva. Temos sete corredores nas equipas do World Tour, que é o escalão máximo do ciclismo mundial, e não temos mais por falta de oportunidades, não é por falta de valor”. Do que o país precisa, entende José Azevedo, é de “um projeto internacional”, que é como quem diz uma equipa com potencial e arcabouço financeiro para entrar nos principais escalões do ciclismo mundial.

Manuel Campos: “Não basta investir em bolsas. São precisos planos de longo prazo”

Quando era criança, Manuel Campos “não parava um segundo” e o remédio que os pais encontraram para tanto movimento foi colocá-lo na ginástica. Estava longe de pensar que chegaria a atleta olímpico, mas confessa que “sempre” teve esse “sonho”.

A preparação do ginasta, já retirado da competição, estava a léguas da que a ginasta Helena Cunha fazia na década de 50. “Entre a idade de júnior e de sénior, comecei a treinar duas vezes por dia. Aí, chegava a 25 horas, entre 25 e 30 horas de treino semanais, dependendo da altura competitiva”, recorda.

As maiores dificuldades que tinha “eram ao nível do tempo”. “Sempre fui muito organizado e tentava calendarizar tudo, com os estágios nacionais, internacionais, as competições e tentava ver como conciliar com a minha carreira académica”, diz, sem esquecer “o tempo de descanso e o de divertimento, porque nós somos pessoas, não somos máquinas”.

O agora treinador e professor de ginástica podia ter-se estreado em Atenas em 2004, mas uma lesão grave afastou-o. Podia ter ido a Pequim em 2008, mas falhou o apuramento. Em Londres, 2012, alcançou o desejado objetivo.

“Tive algumas falhas que não me permitiram chegar à final do all-around. Apesar disso, consegui fazer o melhor resultado de sempre no all-around, no caso português, que é o 35.º lugar”, recorda em entrevista ao JPN. Depois desses jogos, colocou um ponto final na carreira.

Hoje vive da ginástica, como técnico e professor, mas nunca conseguiu viver exclusivamente da modalidade como praticante, algo que é transversal a várias gerações de atletas nas mais diversas modalidades. Sem investimento e planos de longo prazo, nada feito, na sua opinião.

Quanto ao futuro da modalidade, apesar de identificar nas gerações mais jovens alguma dificuldade em manter “a concentração” perante tantas “distrações”, há esperança em bons resultados e um nome que sobressai: Filipa Martins, também ela do Porto, e a caminho das suas terceiras Olimpíadas.

“Ela conseguiu colocar o seu nome no código de pontuação, ou seja, ela conseguiu executar um novo elemento que tem o seu nome no código de pontuação, ela conseguiu ir a uma final de aparelho num campeonato do mundo, o que ninguém tinha conseguido – é muito difícil, são os oito melhores. É espetacular, é excecional e é importantíssimo para as novas gerações”, observa Manuel Campos, agora com 42 anos.

Adriano Niz: “Os treinos que se faziam há 20 anos não se comparam aos de hoje”

Também Adriano Niz já deixou a natação de alta competição e tal como Manuel Campos, também o nadador poveiro, hoje com 38 anos, vive da modalidade mas como técnico e empresário, num país onde só “quatro ou cinco” nadadores conseguem viver “exclusivamente” da modalidade enquanto praticantes.

Niz, que esteve nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, reconhece uma grande evolução na natação nos últimos 20 anos. Não na “estrutura”, nem nas infraestruturas, que são praticamente as mesmas, mas no treino.

E é em excelentes resultados na natação que se pensa quando se pensa na natação olímpica portuguesa em Paris. Pela primeira vez, Portugal vai ter em prova um campeão do mundo (Diogo Ribeiro), uma campeã da Europa (Camila Rebelo) e uma medalhada de bronze nos mundiais de águas abertas (Angélica André).

“A natação portuguesa, até hoje, só teve um atleta numa final olímpica. Foi o Alexandre Yokochi na década de 80. Voltar a ter um atleta numa final olímpica é algo que nós, quem gosta de natação, ambiciona e sonha”, conclui Niz, esperançado que esse feito venha a ter lugar na capital francesa.

“Não se vê muito natação na televisão e espero que estas vitórias do Diogo Ribeiro [nos mundiais de Doha] sejam o catapultar da natação para outros patamares”, concluiu.

A próxima geração olímpica

A viagem já vai longa, mas falta uma paragem: Los Angeles’28. É para lá que estão apontadas as baterias de José Bicho (ciclismo), Mariana Cunha (natação) e Sara Duarte (atletismo). São todos jovens, têm 20, 19 e 24 anos, respetivamente, e partilham entre eles o “sonho” olímpico.

Mas se muitos anos os separam de Helena Cunha, José Garcia ou Aurora Cunha, e se todos concedem que têm hoje melhores condições de treino e melhor apoio técnico, isso não significa que não se confrontem com dificuldades que afetam o desempenho desportivo de cada um.

Sara Duarte é especialista nos 10 mil metros. Foi campeã nacional em 2021. Nesta altura, está num processo de transição para a meia-maratona, “com o objetivo de um dia chegar à modalidade rainha”: quer ser especialista na maratona. Enquanto isso, é enfermeira numa unidade de cuidados continuados. “A minha vida é a tentativa de gestão destes dois mundos tão exigentes e tão díspares”, diz ao JPN.

É por isso que, para chegar a Los Angeles, sente que vai ter de “mudar a sua vida profissional”, deixando, por exemplo, os “turnos noturnos” que a desgastam mais fisicamente. “Treinar o dobro”, isto apesar de fazer 12 treinos semanais.

Independentemente das dificuldades, resiste o objetivo central: “Lembro-me de ser pequenina e de ver os grandes atletas a competir e de prometer a mim mesma que um dia estaria lá. É o sonho de qualquer atleta, a entrada no estádio olímpico”, afirma.

Para José Bicho, de 20 anos, o chamamento olímpico apareceu há cerca de dois anos. “Houve alguma coisa que me disse que devia participar nesse sonho olímpico”, conta ao JPN a partir de Reguengos de Monsaraz, no Alentejo, de onde é natural.

Todos os dias, seis dias por semana, faz cerca de 70 quilómetros de bicicleta. O plano varia de dia para dia, mas quando chega o dia de descanso, não dá para mais: “não é ir à praia, apanhar sol, é descansar mesmo”, afirma.

Nesta altura, o jovem já tem um contrato de profissional e corre nas fileiras do Tavira, clube com muita história no ciclismo português. Do que vê no seu escalão, garante que os jovens ciclistas portugueses “sonham cada vez mais alto”, quem sabe inspirados por jovens talentos já de craveira internacional como João Almeida ou António Machado.

Mariana Cunha é a mais jovem dos três, mas foi provavelmente a que ficou mais perto de chegar aos Jogos Olímpicos já este ano. Oito décimas separaram-na do tempo que precisava, mas na cabeça da nadadora do Colégio Efanor, os Jogos de 2028 e 2032 são os grandes objetivos.

Detentora já de dois recordes nacionais absolutos em piscina curta, a atleta queixa-se da falta de apoios. Sobretudo ao nível estatal. Pode não parecer, mas “a natação é um desporto muito caro”, diz.

Como Adriano Niz, também a jovem, natural do Porto, acredita que os sucessos recentes da natação portuguesa vão ser benéficos para a modalidade e tem grandes esperanças para os Jogos de Paris.

“Vão ser uns jogos intensos, uns jogos bons de se ver e penso que Portugal vai ter resultados bastante interessantes. Podemos conseguir resultados históricos para o nosso país”, remata.