Em agosto, recuperamos alguns dos melhores trabalhos realizados no último ano. O jornalista, escritor e historiador continua a fazer visitas guiadas pelo Porto. Encontramos Germano Silva na Livraria Alfarrabista Académica e seguimos viagem até à Cordoaria. Oiça ou leia aqui na íntegra o primeiro episódio de Memórias do Meu Porto.

Transcrição completa do episódio

[Música]

Lara Castro

Produzido por vibrações, o som, segundo o dicionário, é uma sensação auditiva.  

[som ambiente de pássaros e de mar]

Lara Castro

A memória conserva hábitos, lembranças ou experiências.

[som ambiente de relógios de cucu, de bicicleta, de carrinha de gelados e de máquina de escrever]

Lara Castro

Depois de interpretado, o som transmite sensações. Sensações que conduzem à emoção. Aqui exploramos o som que remete para a memória.

[Música]

Lara Castro

Escritor e historiador, é o mais antigo jornalista em Portugal. Do Porto conhece todos os segredos, Germano Silva é um verdadeiro repórter da cidade.

[som ambiente da livraria]

Germano Silva visita regularmente a Livraria Académica. Nádia Neto/JPN

Lara Castro

É no nº 10 da Rua dos Mártires da Liberdade que fica a Livraria Académica. Uma casa, onde há mais de 100 anos quem vive são os livro.  E é há 70 anos que Germano Silva conhece cada recanto.

[Registo áudio – Germano Silva]

Sentamos aqui e conversamos aqui. Entrar numa livraria, para mim é como entrar numa perfumaria.

[som ambiente de uma perfumaria]

[Registo áudio – Germano Silva]

Quer dizer, é o cheiro. Aquele cheiro do livro. Há alguns livros que têm um cheiro mais característico. Alguns pela humidade, porque estiveram em sítios húmidos, que têm humidade. É exatamente como quando se entra numa perfumaria, ou numa drogaria, ou numa mercearia de especiarias, onde a gente sente os cheiros logo das coisas e vai logo direto aos sítios. Especialmente, os livros mais antigos, o papel era um papel que canta.

[som ambiente de papel de livro]

[Registo áudio – Germano Silva]

Os sons também da própria livraria, não é?  Entrar um senhor a andar aí a ver as coisas e de repente começa a ir assim. [som ambiente do livro a abrir e a fechar] Achou graça a alguma coisa, foi? Não, é uma traça. Ah, mas não me mate a traça. senão deixa de haver livros raros. Portanto, quer dizer, tudo isto faz parte do ambiente da cultura das livrarias. 

[Música]

[Registo áudio – Germano Silva]

Isto é uma livraria, é um alfarrabista. Um alfarrabista que vende livros usados. Compra e vende livros usados, também vende livros novos, naturalmente. Portanto, é um dos locais que frequento há muito tempo. A memória mais presente foi quando comecei a tentar conhecer a história do Porto. Era um incipiente aprendiz de repórter, ainda, e um dia um chefe de redação disse-me: ‘Olha, que tu para seres um bom repórter da cidade, tens de conhecer a cidade’.

[som ambiente da livraria]

Lara Castro

“As ruas do porto” de Joaquim Costa, foi o primeiro livro que encontrou na livraria. É esse o segredo para saber a origem do nome das ruas.

[som ambiente de rua]

[Registo áudio – Germano Silva]

Esta rua mudou de nome várias vezes. Esta era a Rua dos Mártires da Liberdade, que era uma rua que ia para Braga, não é? Chamou-se primeiro a Estrada de Braga, depois Rua da Sovela, depois teve o nome de uma data, 13 de maio, que foi uma revolução. Marcos da Liberdade, em homenagem aos liberais enforcados na Praça Nova, em 1828, pelo D.Miguel.

[Registo áudio – Lara Castro]

A Praça Nova que é agora?

[Registo áudio – Germano Silva]

A Praça da Liberdade.

[Música]

Germano Silva observa a montra da Livraria. Nádia Neto/JPN

Lara Castro

Pela praça Carlos Alberto, caminhamos em direção à Cordoaria. São 500 metros onde se fala do Porto sem travão.

[som ambiente de rua]

[Registo áudio – Germano Silva]

Olha, uma coisa muito característica do Porto era esta cancela. Porque as casas eram altas e para arejar tinham que abrir a porta e, de portão, ficava esta cancela. E algumas tinham aqui um buraquinho  que era para o gato passar. Se não eles não tinham, não havia ar-condicionado. 

[Música e som ambiente de rua]

[Registo áudio – Germano Silva]

Nasci no seio de uma família muito pobre. O meu pai era guarda-fredo dos elétricos, ganhava muito mal. A minha mãe estava em casa a tomar conta dos filhos, de maneira que aos 11 anos tive que ir trabalhar. Fui trabalhar para um retroseiro, ali na Rua de Santa Catarina, mas depois aquilo exigia que tivesse um fato, uma gravata, uns sapatos e eu não tinha dinheiro para isso. De maneira que abandonei o retroseiro e fui trabalhar para uma fábrica de Lordelo do Ouro. Primeiro estive numa fábrica de fósforos, depois trabalhei numa lanifícios e estive lá dos 11 aos 20 anos.

[Registo áudio – Lara Castro]

E como é que se tornou jornalista?

[Registo áudio – Germano Silva]

É uma história grande e complicada, quer dizer.

[som ambiente de rua]

Lara Castro

Mas já lá vamos. Estamos no Carmo, o autor de vários livros sobre a cidade do Porto, aponta para mais um segredo da cidade.

[Registo áudio – Germano Silva]

É uma coisa curiosa que fui eu que revelei isto num pequeno guia que fiz,  que escrevi sobre o Porto, porque isto era a residência do sacristão, aqui da Igreja do Carmo. Isto, parece que não, parece assim, mas é um apartamento muito interessante. Eles chamam casa escondida, mas não é a casa escondida. É a casa mais estreita, que era a casa mais estreita do Porto.

[Música e som ambiente de rua]

Lara Castro

Voltamos à história que o levou a tornar-se um dos jornalistas mais conhecidos do Porto. Foi há 73 anos.

[Registo áudio – Germano Silva]

E um dia entrei ali no Piolho [restaurante] e estava lá um amigo da instrução primária que já não via há muitos anos. E ele disse: ‘Então, tu que andas a fazer?’ E eu: ‘Olha, ando a ver se arranjo um emprego, sabe?’. E ele disse: ‘Anda comigo’. E levou-me ali ao Hospital de Santo António. Pronto, fui para lá. Primeiro para os serviços administrativos. Depois fui fazer serviço de escriturário no serviço de urgência, no banco. E iam lá os jornalistas buscar as notícias. De maneira que, dizia lá a um do ‘Jornal de Notícias’ : ‘Vocês tem aqui umas histórias, andam só à procura da perna partida, mas há aqui histórias’. E comecei-lhe a contar e ele achou aquilo interessante. Um dia ganhou um prémio e disse que queria distribuir comigo. E eu disse: ‘Não, tu é que fizeste’. E eu pedi-lhe para me arranjar um cartão para ver a bola. Julguei que eles tinham um cartões para ir ver a bola. Mas ele disse que era uma coisa personalizada. No entanto, falou lá como chefe da Secção Desportiva e ele disse que podia ir para lá colaborar. E fui para lá colaborar. E depois um dia, o diretor chamou-me e convidou-me para a secção do Grande Porto: ‘Nós precisamos de gente ali no Grande Porto e o Germano já está ambientado’. E aceitei e fiquei.

[Registo áudio – Lara Castro]

E isso foi com que idade?

[Registo áudio – Germano Silva]

Tinha 20 anos.

[Música e som ambiente de rua]

Lara Castro

Chegámos ao fim do roteiro: a Cordoaria.

[Registo áudio – Germano Silva]

Este espaço foi, de facto, emblemático. Porque foi quando a D. Teres, em 1120, deu a cidade do Porto ao Bispo, que D. Hugo.  Disse a ele e para os seus sucessores. E no século 14, a cidade, os homens da cidade, da Câmara, fizeram um acordo com o Bispo, que ele passasse este sítio da Cordoaria para a cidade. O Bispo consentiu. Mas com uma condição: que nunca se faça feira, nem cordoaria, nem igreja, nem matadouro. Houve tudo, menos matadouro. A memória mais grata que tenho aqui é que o meu pai e a minha mãe são da mesma terra, lá de S. Martinho de Recezinhos, mas o meu pai veio para o Porto em 1926 fazer a tropa, veio para aqui. E a minha mãe veio para aqui para ser criada de servir. E um dia a empregada, cozinheira, desafiou a minha mãe a vir aqui à Cordoaria ouvir um concerto da banda do Regimento 18. O coreto que está ali não estava, estava ali naquele sítio, eles depois mudaram-no para aqui em 2001. E, então, a minha mãe diz que veio ver o concerto. E olhou para o lado e viu o Manuel, que era lá da terra dela, ele tinha vindo a tropa. E eles depois namoraram e casaram-se, foram casar lá à aldeia. Mas também por ter sido, exatamente, um sítio onde se fizeram manifestações, de regozijos, de protestos, de coisas. Portanto, é um sítio emblemático. 

[Música e som ambiente de rua]

Lara Castro

São muitas as histórias que Germano conhece do seu Porto.

[Registo áudio – Germano Silva]

O Porto, para mim, é a cidade da liberdade. É a cidade onde houve a primeira revolução pela liberdade, onde sempre se lutou pela liberdade.

[Música e som ambiente de rua]

Lara Castro

É também a cidade que há de guardar na memória: Germano Silva.

[Registo áudio – Germano Silva]

Estas são as memórias do meu Porto. De um Porto que eu estimo muito, que eu gosto muito. Porque foi aqui que eu me fiz, que estudei, que me fiz profissionalmente, que constituí família. Foi aqui, o Porto foi a minha cidade. Não foi onde eu nasci, mas é de facto a minha cidade preferida. Eu viajei muito. Viajei como jornalista. Só à China eu fui 15 vezes. Três vezes ao Tibete. Fiz a Rota da Seda. Andei nas minorias. Mas se me perguntarem qual é o sítio, sempre que viajava, sempre que ia, olhava para trás para não me esquecer do telhado alto. Voltar para casa. Aqui a casa é que é o meu ideal.

[Música e som ambiente de rua]

Lara Castro

Foi o primeiro episódio de Memórias do meu Porto. Uma entrevista de Lara Castro e Nádia Neto a Germano Silva, o jornalista mais antigo de Portugal. Vai a jpn.up.pt e consulta a galeria de fotografias ou lê a transcrição desta entrevista. Até ao próximo episódio onde cada som ecoa as memórias da cidade.

“Aqui a casa é que é o meu ideal.”, afirma quando questionado sobre o valor da cidade. Nádia Neto/JPN

Editado por Filipa Silva