Com o claro objetivo de ressignificar a morte como uma jornada final que não tem de ser trágica, as doulas de fim de vida dedicam-se a acompanhar quem precisa de lidar com o fim e trabalham para mudar a forma como se encaram os processos de luto e a inevitabilidade da morte. Se a morte é a única certeza que o ser humano tem quando nasce, porque é que se tem tanto medo dela? Em entrevista ao JPN, Ana Catarina, fundadora da rede nacional de Doulas do Fim da Vida em Portugal, reflete sobre esta e outras questões.
Ana Catarina é enfermeira de cuidados paliativos há mais de 20 anos. Profissionalmente ligada à área oncológica, a fundadora da Doulas do Fim da Vida sentiu a necessidade de criar esta comunidade formativa “muito por aquilo que via no âmbito profissional”, na forma “muito distante, muito fria, muito desumanizada” como viu muitas pessoas a serem acompanhadas no seu processo de doença ou de morte.
Para Ana Catarina, as escolas de enfermagem dão aos profissionais “conhecimentos técnicos” que são importantes, “mas toda a parte de desenvolvimento humano, da relação, da empatia, da compaixão, da escuta ativa, não são desenvolvidas.” Contudo, “a pessoa sentir-se ouvida, acompanhada na sua vulnerabilidade, é mesmo muito importante”, considera.
É nesse campo que entram as doulas e “todos” podem sê-lo, segundo a enfermeira, sejam profissionais de saúde ou de outra área qualquer.
A palavra “doula” é de origem grega e designa a “mulher que serve”, que acompanha, de forma não clínica, outra pessoa, seja num processo de nascimento ou de morte. Neste caso, são designadas como doulas de fim de vida.
“É alguém que conhece e compreende a fisiologia do processo do final da vida e morte (…), que respeita e assegura as necessidades básicas da pessoa que está nesta etapa da vida e, acima de tudo, respeita as opções desta e da sua família, apoiando nas decisões informadas e conscientes”, lê-se no site da comunidade.
A doula da morte tem uma formação que, entre outras coisas, promove conhecimentos sobre “os sinais e sintomas de fim de vida”, menos conhecidos para a generalidade das pessoas.
“Toda a gente sabe o que se passa no nascimento. Mas no fim da vida, é tudo um grande sofrimento. As pessoas não sabem o que é que se passa e existem sinais e sintomas que são naturais, porque a morte é um acontecimento natural”, explica a doula.
Ana Catarina explica que há vários sinais que uma pessoa pode demonstrar quando se aproxima o seu fim de vida. À cabeça, a doula coloca a perda notória de “energia”.
“É como se nascêssemos com 100% de energia e, à medida que a vida vai passando, perdemos a energia. Isto, no fim de vida, faz com que os nossos órgãos reduzam a sua capacidade de metabolizar, por exemplo, a alimentação ou a hidratação”, exemplifica Ana Catarina.
“Vamos ficando mais adormecidos. E isto é tudo oscilante: há alturas em que queremos comer mais, outras não temos tanta vontade de comer; há alturas em que temos mais sono, outras em que queremos estar mais despertos. Vamos ficando mais introspetivos, também”, enumera, para concluir: “Vamos fazendo um luto do mundo e de tudo aquilo que nos envolve: gostávamos de ler, vamos deixar de o fazer ou fazê-lo menos; gostávamos de socializar e, de repente, deixamos de o fazer. É como se estivéssemos progressivamente a despedir-nos de tudo aquilo que nos rodeia. E é importante respeitar este espaço.”
Doulas querem “trazer paz onde existe culpa”
Como profissional de saúde, Ana Catarina admite que, nos hospitais, o acompanhamento personalizado dos doentes por parte dos médicos e enfermeiros é complicado de se fazer: “Reconheço isso. Tenho mais do que um doente, mais as famílias que estão ao meu cuidado, com as quais me preocupo. Não consigo estar em total presença com uma pessoa, exclusivamente.”
O trabalho da doula passa por providenciar essa “presença mais dedicada”, “estar ao lado da pessoa e acompanhá-la na fase de vida em que ela está, sem querer bater com a mão nas costas e dizer: ‘vai correr tudo bem’. Não, não está tudo bem. Mas ela sente-se acompanhada.”
A morte é, muitas vezes, associada à dor, e segundo Ana Catarina, mesmo quando a pessoa que está a passar por esse processo está muito serena e tranquila, “os medos e preconceitos associados ao fim de vida fazem com que tudo seja um grande sofrimento”. Daqui surge a necessidade de acompanhar, quer quem esteja numa fase de fim de vida, quer a sua família, para “trazer serenidade, beleza e tranquilidade” ao processo, através de mecanismos que vão desde a escuta até a “terapias complementares, como reflexologia, e aromaterapia”.
A morte é inevitável e disso todos sabem. Mas se antes de ela acontecer o tema é tabu, segundo Ana Catarina, é também depois da morte que muitas famílias procuram o seu acompanhamento para “revisitar aquele espaço e trazer mais alguma tranquilidade e serenidade.” Nos seus acompanhamentos, Ana testemunhou vários casos de “pessoas que acham sempre que deviam ter feito mais ou podiam ter feito diferente”. As doulas procuram “trazer paz, onde às vezes existe culpa.”
Mas, regra geral, quem procura uma doula de fim de vida, explica a enfermeira, é “alguém que tem consciência” de que a morte está por perto “e que é algo natural”. A essas pessoas ou famílias, as doulas procuram fornecer “ferramentas como: o que é que podem dizer ao outro, como é que podem estar mais presentes, como é que podem tocar, o que é que podem fazer.” “Basta, às vezes, estar em silêncio, só ao lado da pessoa”, remata.
“Nós não queremos que o outro parta, estamos a sofrer, estamos a fazer o nosso processo de luto e, então, tentamos evitar que o outro faça a sua passagem, querendo que coma, querendo que beba água, querendo que se levante, que tenha mais energia, mesmo que já não a tenha. Isto traz mais sofrimento à pessoa que está a fazer a sua passagem”, adverte a doula.
A morte como uma oportunidade de vida
Em todos os seus anos de experiência, quer enquanto enfermeira, quer enquanto doula, Ana Catarina testemunhou vários casos daquilo que popularmente se conhece por “ânsia da morte”. Este termo quer descrever a fase em que uma pessoa hospitalizada tem melhorias significativas de repente e, no dia a seguir, ao contrário do que seria expectável dada a melhoria do seu estado de saúde, morre.
Segundo a doula, este é um acontecimento muito recorrente nos hospitais. Na sua interpretação, esse fenómeno decorre de um processo somático: “A pessoa está totalmente dependente, está quase adormecida, já não corre, não bebe, não fala. [Mas] o sistema nervoso está a trabalhar e está a resolver, às vezes, muitas questões que não foram resolvidas ao longo da vida, naquele momento. E, às vezes, depois desta introspeção, é como se a vida lhe desse uma nova oportunidade para dizer alguma coisa ou fazer alguma coisa.”
É também por isso que Ana Catarina acredita que “falar da morte é falar da vida”. “É falar sobre as escolhas que nós fizemos, sobre as relações que temos, se realmente queremos ter este trabalho, se realmente somos felizes ou queremos fazer outra coisa diferente. É uma oportunidade para repensarmos a nossa vida, de nos trazer mais à vida, de reviver as nossas relações e todas as emoções”, refere a enfermeira.
A morte, diz, não tem que ser vista como uma coisa violenta: “é como uma folha no outono que cai da árvore. É tão natural quanto isto”, observa.
“Nós somos ciclos completos e esquecemos que o somos. Os povos que vivem numa relação próxima com a natureza já sabem isto de uma forma muito visceral, muito natural. E nós, com a industrialização, com o conforto, parece que nos esquecemos disto. E isso sim, traz-nos muito sofrimento”, acrescenta.
O luto como movimento natural
Para muitas pessoas, o medo da morte não está associado à sua própria partida, mas sim ao fim de vida daqueles que lhe são próximos. Isso acontece, acredita a doula, porque “vivemos através dos outros”.
“Eu sou filha porque os meus pais existem. Se os meus pais morrerem, continuo a ser filha, mas uma filha diferente, porque os meus pais já não estão cá. Há uma fragmentação da minha identidade enquanto filha. Não é só o outro que parte, quem está a acompanhar também faz os seus processos de passagem e de luto. E é natural que haja um momento de medo. De repente, deixamos de ser quem éramos e não sabemos aquilo que vamos ser”, afirma.
O processo do luto não é uma coisa que acontece só quando alguém morre e daí surge a necessidade de aprender a lidar com ele em todas as suas vertentes.
Segundo Ana Catarina, “o luto é um movimento que faz parte da vida, de todos os processos de passagem. Desde as separações, mudanças de emprego, mudanças de casa. O próprio nascimento é um movimento de luto, porque a criança sai do mundo uterino, onde não respirava sozinha, era nutrida ali dentro. De repente, sai cá para fora, tem corpo e pensa: “o que é isto?”. Isto acontece ao longo de toda a nossa existência. Toda a nossa vida implica lutos.”
Quase tão certa como a morte é a dor que esta pode causar, apesar de todos sabermos que ela vai inevitavelmente acontecer: “É muito doloroso, mas vamos criando novas formas de estar que já não vão ser aquelas que eram antes. O tempo que isso demora não sabemos, mas temos, nós próprios, de reconhecer que estamos a viver um processo de luto”, aconselha.
“Há momentos em que estamos mais felizes e depois, de repente, há um cheiro que nos lembra daquela pessoa e voltamos a ficar tristes, porque a saudade bate. Pode vir a culpa, podem vir as memórias, o disse ou não disse, pode vir muita coisa. E o que é que é importante? É reconhecer que no luto não existem etapas fixas: agora estou a viver a tristeza, depois vou viver a zanga, depois a negação. Não há uma lógica. Às vezes, vivemos tudo no mesmo momento”, salienta a doula.
É preciso “naturalizar a vulnerabilidade”
Para Ana Catarina, falar da morte “não é deixar de sentir, é naturalizar o sentir, os lutos, a vulnerabilidade. Isto aproxima as pessoas, porque todos passamos por isto.”
“A morte está muito medicalizada e as pessoas morrem muito nos hospitais, mas não tem de ser assim”, refere a enfermeira, natural de Castelo Branco, mas há mais de duas décadas a viver em Lisboa. Ana acrescenta que “não são só os profissionais de saúde que têm que estar próximo das pessoas que estão a morrer, é toda a comunidade, a família, os amigos, que devem saber estar e aprender a acompanhar a pessoa nas fases mais vulneráveis”.
Para a doula, e tal como acontece em algumas culturas orientais e africanas, a morte deve ser “um movimento da vida onde não há resistência, não há distanásia, não há encarniçamento terapêutico, que é muito ligado à medicina curativa”. A filosofia de “curar a todo o custo, lutar contra a doença, lutar contra a morte, é muito violenta, é uma cultura da violência. E não falamos da morte, do envelhecimento ou de qualquer processo de vulnerabilidade. Queremos afastar-nos do sofrimento, mas, no fundo, estamos a trazer a nós próprios esse mesmo sofrimento”, discorre a profissional.
A forma como falamos da morte é importante. Pode aproximar-nos ou afastar-nos dela. E abordá-la de forma natural “não é romantizar, não é tornar as coisas cor de rosa, mas sim encarar a realidade com beleza, com suavidade, com tranquilidade, com amor. O amor não é um exclusivo da felicidade, não é exclusivo de quando as coisas estão bem, o amor é tudo”, remata a enfermeira.
Em Portugal, morre-se muito em contexto hospitalar – é assim em quase 60% dos óbitos de doentes não oncológicos, de acordo com um estudo de 2021 -, apesar de muitos expressarem a sua preferência por morrerem em casa. “Às vezes, um hospital também é um espaço de guerra que não ajuda. Vamos para um hospital e as pessoas andam a correr de um lado para o outro. Não conhecemos as pessoas. Há aquela insegurança, dá-nos muita instabilidade. Portanto, criar uma relação de confiança, relaxa. Às vezes, os objetos da pessoa ou algum cheiro que seja reconhecido pela pessoa, ajudam. São pequenas coisas que fazem toda a diferença, mesmo num hospital”, refere a doula.
Temas como a inevitabilidade da morte ou a aceitação do luto são, ainda, tópicos muito complexos de serem naturalizados, seja por medo ou tabu, mas mesmo assim, a doula de fim de vida afirma que o principal conselho a dar a alguém que esteja a passar por um processo destes é lembrar-se que “às vezes, achamos que somos uns extraterrestres, que estamos a viver estes processos sozinhos. Mas não, todos vivemos isto, faz parte da nossa natureza. Por isso, é importante lembrar que não estamos sozinhos”.
Editado por Filipa Silva