São três as histórias que, apesar de muito diferentes, tratam o mesmo tema: “ser mulher nos dias de hoje”. O programa chega hoje a apenas algumas salas do país e, no Porto, a sessão pode ser vista no Alameda Shop & Spot.
“Um Caroço de Abacate” esteve pré-selecionada para o Óscar de Melhor Curta de Ficção em 2023. Foto: D.R.
Seja a seguir a aventura de uma mulher trans, a explorar o duro quotidiano de uma trabalhadora das limpezas, ou a conhecer uma mãe que tenta conciliar ambições e responsabilidades, o programa “Quem serão estas mulheres?”, que estreia esta quinta-feira em algumas salas de cinema do país, “propõe olhar diferentes possibilidades de ser mulher nos dias de hoje”.
A sessão é composta por três curtas metragens de realizadores portugueses, todas premiadas tanto nacional quanto internacionalmente: “Um Caroço de Abacate“, de Ary Zara; “As Sacrificadas”, de Aurélie Oliveira Pernet; e “By Flávio”, de Pedro Cabeleira. A distribuição é da No Comboio, distribuidora de cinema independente, que se define “sem barreiras de género ou formato e com um catálogo diverso”.
Além dos prémios acumulados pelas três curtas, é de destacar que uma delas, “Um Caroço de Abacate”, foi pré-selecionada para os Óscares na categoria de Curta Metragem de Ficção em 2023, tendo estado perto de seguir os passos de “Ice Merchants”, o representante português na corrida aos prémios da Academia em 2022.
A história que conta gira em torno do encontro entre Larissa (Gaya de Medeiros), uma mulher trans, e Cláudio (Ivo Canelas), homem cisgénero, numa noite em Lisboa. Juntos, embarcam numa experiência que os aproxima através da descoberta mútua e da celebração das suas diferenças.
“É uma história muito simples, livre de violência e de morte, e a pensar em novas possibilidades para pessoas trans”, explicou o Ary Zara à Lusa, em dezembro, reforçando a mensagem de esperança que a curta tenta passar, algo que já exprimiu ser importante para uma comunidade que, defende, quase só se vê representada em narrativas violentas.
Ary foi o primeiro realizador trans a ser pré-selecionado pela Academia na sua categoria. “Não gosto de pioneirismos”, declara numa entrevista por escrito ao JPN, quando questionado sobre o que significou esse reconhecimento. “Talvez eu tenha sido o primeiro, que se pôde assumir como trans, publicamente. Ainda assim, não aprecio este tipo de bandeiras na lua”, explica. Ary Zara foca-se mais no que mudou no seu percurso quando chegou a um lugar que outrora pensou ser “intangível”.
Acrescenta que essa sensação surge das “limitações com que criamos e pensamos no mundo”, comentando também a posição tomada pelo país que, defende, “tem pouco respeito por artistas, arte e cultura, mas muito carinho por troféus e manchetes que exaltam um nacionalismo incompreensível.”
Mas, tal como na sua curta, Ary Zara admite considerar que há esperança. Quanto à falta de histórias trans contadas através de um olhar positivo, o realizador afirma que “é um vazio universal que começa a ser preenchido lentamente à conta de muito esforço, vontade, cansaço e políticas que começam a abrir espaço para que pessoas trans produzam conteúdo narrando o seu ponto de vista.”
Já sobre o contributo de “Um Caroço de Abacate” no conjunto da sessão tripla que agora chega aos cinemas, Ary Zara vê “leveza” no seu filme, sendo que se debruça “em questões de identidade de género sem saltar de cabeça e privilegiando um encontro inusitado”.
Entre os prémios que a curta conseguiu destacam-se os recebidos em França, no festival Clermont-Ferrand, no Canadá (REGARD), México (FICG) e EUA (Outfest Los Angeles LGBTQ+ IFF). Foi também premiado no IndieLisboa.
“As Sacrificadas”, de Aurélie Oliveira Pernet. Foto: D.R.
Já “As Sacrificadas” permite-nos seguir Otília (Tânia Alves), que trabalha nas limpezas de uma piscina municipal e se vê cercada pelo fogo, literal e figurativamente: as chamas que consomem a sua terra trazem ao de cima o desespero que sente, cansada da luta diária de sustentar e cuidar da família.
“Este aspeto metafórico dos incêndios surgiu rapidamente quando escrevi o guião”, conta Aurélie Oliveira Pernet ao JPN. Apesar de ter crescido em França, a realizadora recorda os “verões sufocantes, com a sensação de uma ameaça muito próxima” que viveu desde criança na Beira Baixa.
“A ameaça dos incêndios permite-me, sobretudo, ilustrar o conflito íntimo da personagem principal e falar do tema da carga mental e da saúde mental das cuidadoras informais”, explica Aurélie. Um tema que explora inspirada pelo dia a dia de mulheres da sua família. Uma realidade que está no “centro” do filme por uma razão: “A maioria da/os cuidadora/os informais são mulheres. A nossa sociedade pode funcionar porque elas fazem sacrifícios e quase sempre elas não têm outras soluções. Foi a vontade de homenagear a luta quotidiana destas mulheres que deu origem ao filme”, diz ao JPN.
Neste sentido, Aurélie Oliveira Pernet acrescenta que “cabe a todas as sociedades e a todos os governos encontrar soluções” para que as cuidadoras informais tenham mais dignidade. Às mulheres que se encontram em situações semelhantes à de Otília em “As Sacrificadas”, a realizadora deixa uma mensagem: “Não estão sozinhas”.
A curta de Aurélie Oliveira Pernet estreou mundialmente no Curtas Vila do Conde e, além de ter sido reconhecida em festivais portugueses como o Porto Femme, venceu também lá fora, destacando-se no Festival Ibérico de Cinema de Badajoz com três prémios (Melhor Curta-Metragem, Melhor Direção, Melhor Interpretação Feminina).
Finalmente, “By Flávio” acompanha Márcia (Ana Vilaça) na sua tentativa de alcançar o seu sonho de vingar no mundo digital enquanto exerce as responsabilidades incontornáveis subjacentes ao papel de mãe. Assistimos, assim, aos obstáculos que as mulheres encontram ao conciliar duas partes distintas das suas identidades, sem abdicar de nenhum dos lados.
“By Flávio”, de Pedro Cabeleira. Foto: D.R.
Quanto à inspiração para a personagem principal desta história, Márcia, Pedro Cabeleira salienta dois fatores. O primeiro, conta ao JPN, foi a atriz Ana Vilaça: “Esse foi o ponto de partida, porque não haveria Márcia sem a Ana, e é ela que torna a personagem tão única e ao mesmo tempo tão real”. Já o segundo diz respeito a uma imagem que Diogo Figueira, com quem colaborou no argumento, lhes apresentou: a de
“uma mãe que estava a ser fotografada pelo seu filho na praia”.
“Fez-nos perguntar, como seria a vida desta jovem mãe solteira numa pequena cidade? Seria o mundo digital uma forma de escapar a essa realidade? Seria o seu filho Flávio o seu único verdadeiro amigo?”, conta Cabeleira.
Sobre o tema das redes sociais, o realizador admite ao JPN o “desafio” que é retratá-las. “A presença do mundo digital nos dias de hoje implica que se reflita sobre os códigos do cinema”, explica, referindo também que “a sua representação, sobre a qual é quase impossível fugir nas histórias dos dias de hoje, tem de acontecer ao mesmo tempo em que vemos a imagem do filme”. Assim, By Flávio propõe “mostrar as duas realidades que Márcia está a viver, aquela que a rodeia e aquela que está no seu ecrã a abstraí-la do seu redor”.
Estreada na Berlinale, na Alemanha, a curta de Cabeleira acumula seleções para mais de 40 festivais de todo o mundo, tendo já sido premiada no ALCINE 51 – Festival de Cine de Alcalá de Henares (Espanha), bem como no Frames (festival português na Suécia) e também no IndieLisboa, entre outros.
O programa pode ser visto em salas selecionadas de oito cidades do país (Lisboa, Porto, Almada, Coimbra, Braga, Covilhã, Guarda, Leiria e Albufeira). No Porto, o Cinema NOS do centro comercial Alameda Shop & Shop, perto do Estádio do Dragão, é o único local onde a sessão estará disponível.
Para marcar a semana de estreia, estão também agendadas sessões especiais que contarão com presenças dos realizadores, bem como dos atores. A primeira realiza-se esta quinta-feira, pelas 19h00, no Cinema Ideal, em Lisboa.
Editado por Filipa Silva
Artigo atualizado às 14h23 do dia 04 de outubro de 2024 com a inclusão de entrevistas aos realizadores dos três filmes incluídos na sessão “Que Mulheres Serão Estas?”.