Na quinta-feira (24), Penafiel recebeu Marisa Monte num auditório lotado para uma conversa-concerto sobre a sua carreira e relação de amizade e parceria com Arnaldo Antunes, o homenageado do Escritaria este ano.
Carioca, com mais de 35 anos de carreira, Marisa Monte tem na sua trajetória uma amizade duradoura com Arnaldo Antunes, um “parceiro”, “amigo”, um homem “generoso” cujo trabalho tem qualquer coisa de “universal” e de “génio”, nas palavras da cantora brasileira, e que foi o homenageado deste ano do festival Escritaria, que terminou no domingo em Penafiel.
Na noite de quinta-feira (24), o auditório principal do Ponto C, com cerca de 400 lugares, esgotou para vê-la e ouvi-la numa conversa-concerto conduzida por Tito Couto e Valter Hugo Mãe. Marisa que já era fã de Arnaldo Antunes ainda antes de o conhecer pessoalmente, recordou: “A primeira pessoa que eu fui procurar [quando começou a compor] foi o Arnaldo. Cheguei com uma fita e duas músicas para ele escrever a letra. A primeira música que fizemos juntos foi ‘Beija Eu’, que ele fez com o Arto Lindsay também a letra”. Além desta música, que está no segundo álbum de Marisa, “Mais” (1991), Arnaldo também a presenteou com “Volte para o seu lar”.
Arnaldo Antunes abriu o seu “universo autoral” a Marisa Monte e isso foi fundamental para a intérprete e compositora. “O Arnaldo tem uma característica: é muito generoso, tem muitos parceiros, ele gosta de ser transformado pelo outro e de se transformar também”, comentou Marisa Monte.
Sobre a amizade que une muitos compositores brasileiros e a facilidade de escreverem juntos e dividirem o palco, Marisa afirma que isso para ela sempre foi normal, na verdade cresceu ouvindo parcerias entre cantores que admira e acha enriquecedor para o mundo: “A gente não tem medo de se misturar. Aliás, acredito que a única solução para o mundo é a mistura. É até bom que a gente possa, de alguma maneira, na música, botar isso em prática”.
Foi justamente no contexto destas parcerias que Marisa Monte viajou para a Bahia para trabalhar numa música com Carlinhos Brown. Arnaldo Antunes também lá estava e o que era para ser uma viagem de três dias estendeu-se no tempo e haveria de resultar no primeiro álbum dos Tribalistas. “Todo o dia a gente fazia uma música nova e adiava [a viagem] para voltar. Iria ficar três dias e fiquei dez dias. E a gente acabou fazendo as 13 músicas dos Tribalistas, tudo naqueles dias. Começou a brotar as músicas, meio que virávamos à noite, amanhecia, a gente fazendo música, no dia seguinte estava em um estúdio de novo. Depois de um ano, a gente resolveu gravar porque estava pronto o disco. Cada dia, a gente gravou uma música e foram 13 dias, 13 músicas.”
Tribalistas é um projeto de MPB (Música Popular Brasileira) que em 2002, a partir desta viagem a Salvador, na Bahia, juntou os três músicos: Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte. Deste encontro, nasceram músicas que ainda vivem na memória de muitos brasileiros e portugueses, como “Velha Infância”, “Já sei namorar” ou “Carnavália”.
Para o palco foi depois puxado um tema, “Vilarejo”, que também envolveu os parceiros de Marisa nos Tribalistas, mas que foi editado no disco dela, “Infinito Particular”. “Arnaldo Antunes, sem saber, escreveu uma música sobre Penafiel”, brincou Tito Couto, convidando Marisa para o primeiro momento musical da noite. Em palco, a cantora brasileira estava acompanhada por Dadi Carvalho, um músico e baixista carioca, que além de ter acompanhado os Tribalistas, também tocou com Rita Lee, Jorge Ben Jor, Mick Jagger e em bandas como Barão Vermelho ou Novos Baianos. Tudo isto, além de ser o inspirador da famosa música “O Leãozinho” de Caetano Veloso, como foi lembrado em palco.
Na conversa, falou-se muito de Tribalistas, um “projeto” e não “um grupo”, como Marisa fez questão de frisar, e “que nunca parou, não deixou de existir em momento algum. Segue ativo, segue vivo, segue potente, segue acontecendo. A gente continua fazendo música juntos, temos músicas novas e músicas inéditas”, revelou a cantora.
Outro tópico que emergiu na conversa, antes mesmo de “Vilarejo”, foi, como Tito Couto descreveu, a capacidade única, no Brasil, de transformar qualquer género em brasileiro: “Não há género musical nenhum, inventado em qualquer parte do mundo, que passando pelo Brasil não se torne brasileiro. O rock no Brasil, soa a rock do Brasil”, exemplificou. Para Marisa isso se explica a partir daquilo que no Brasil ficou conhecido como o “movimento atropofágico”. A antropofagia é um termo com múltiplas camadas de significado, que vai desde o ato literal de canibalismo até à metáfora da assimilação e transformação cultural. No Brasil, o Movimento Antropofágico utilizou esse conceito para construir uma identidade artística e nacional, buscando uma arte autêntica e brasileira.
“Esse processo nessa espécie de alquimia bioquímica cultural, o Brasil funciona mesmo desse jeito, já que tem sempre gente pegando e transformando numa coisa própria, se apropriando, com uma nova camada de criatividade, que deixa de ser aquilo que era no original e vira uma outra coisa”, resumiu Marisa Monte.
Para se despedir, Valter Hugo Mãe relembrou um momento em que estava a sair de um concerto de Arnaldo Antunes em Belo Horizonte e, no fim, um senhor que estava na rua percebeu que ele tinha saído dos bastidores e começou a dizer: “Você que escreve, escreva que esse homem é um génio!”. O escritor português considera que Arnaldo é um sujeito de inteligência “astronómica” e com uma capacidade de escrita “absolutamente maravilhosa”. “Ainda bem que o Escritaria se abriu a um autor que não sendo português, dignifica a nossa língua e dignifica a humanidade como um todo”, afirmou o autor vilacondense.
Marisa encerrou a conversa com um agradecimento: “Para mim, qualquer esforço é pouco para estar aqui, pelo meu parceiro, pelo amigo Arnaldo, que admiro profundamente e que merece todas as homenagens. Ele é um grande poeta da língua portuguesa, que enriquece e valoriza a nossa expressão cultural, nossa literatura, nosso património intelectual, aproximando Brasil e Portugal através da língua”. A fechar, deu-se o segundo e último momento musical da noite. Enquanto Marisa cantava “Amor I Love You”, Arnaldo Antunes subiu ao palco para recitar um trecho de “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós, que integra a letra da música.
Editado por Filipa Silva