Nuno Garoupa está nos Estados Unidos da América há 17 anos, onde começou a dar aulas na Universidade de Illinois, em 2007. Foi presidente do Conselho de Administração da Fundação Francisco Manuel dos Santos entre 2014 e 2016 e foi professor na Universidade do Texas A&M, antes de se mudar para a Virgínia, onde reside no condado de Fairfax.
No Estado do “Velho Domínio”, que já foi um bastião republicano durante cinco décadas, mas onde nas últimas quatro eleições presidenciais os democratas têm saído vencedores, Nuno Garoupa é atualmente professor na Universidade George Mason e conta ao JPN a sua perspetiva sobre a vida nos Estados Unidos da América e como estas eleições se vivem na Terra das Oportunidades.
JPN – É professor de Direito na Universidade George Mason, em Fairfax, na Virgínia. Há quanto tempo é que o professor está nos Estados Unidos?
Nuno Garoupa – Estou nos Estados Unidos como professor há 17 anos, com o intervalo dos dois anos e meio em que estive na Fundação Francisco Manuel dos Santos, em Lisboa.
JPN – Portanto, um período atravessado por várias administrações, inclusive pelas de Donald Trump e este de Joe Biden.
Nuno Garoupa – Sim, exatamente.
JPN – Fruto dessa experiência, como é que caracteriza os Estados Unidos?
Nuno Garoupa – É preciso perceber que é um país continental e, portanto, não se pode comparar com Portugal, tem de se comparar com a União Europeia. Nesse sentido, são países com imensa diversidade, com imensas diferenças, com Estados muito diferentes. É verdade que aqui todos falam a mesma língua e isso cria uma unidade que ainda não existe na União Europeia, onde as pessoas falam línguas diferentes. Mas há traços culturais muito diferentes entre as Costas, entre o Sul e o Norte. Claro, os problemas económicos e sociais existem, alguns são comuns, mas muitos são estaduais, de realidades muito locais e, numas eleições federais como estas, nem sempre se percebe se os eleitores estão a responder mais a perceções de problemas nacionais ou a problemas locais que não são todos iguais. Por exemplo, a crise da habitação não é igual em todos os Estados, tal como na Europa não é igual em todos os países.
JPN – Quais foram as principais diferenças entre as administrações de Donald Trump e agora de Joe Biden?
Nuno Garoupa – A principal diferença é de retórica, porque em muitas matérias políticas eles não foram assim tão diferentes. Claro, por exemplo, com Donald Trump há sempre mais cortes nos impostos para os mais ricos. Com Joe Biden, não houve esses cortes, e houve mais programas de ajuda às camadas mais pobres da sociedade. Há esse tipo de diferenças. Mas, na verdade, em termos de políticas ambientais, ou políticas de negócios estrangeiros, não são assim tão diferentes. Porque também é preciso reconhecer que grande parte das políticas passam por legislação no Congresso e que os diferentes presidentes não têm maiorias no Congresso para aprovar a legislação que querem. Portanto, há uma enorme inércia, em parte, porque as maiorias no Congresso são muito complicadas.
pelo que se percebe, a comunidade portuguesa que está aqui, incluindo os luso-descendentes, está tão dividida como o resto do país.
JPN – Alguma das decisões das administrações Trump e Biden tiveram um impacto particular na sua vida nos Estados Unidos?
Nuno Garoupa – Na minha vida individual, essencialmente, as únicas coisas que me impactam são duas: questões de impostos, porque assim tenho mais ou menos no final do mês, e aí o Trump e o Biden foram um pouco diferentes; a outra, até eu ter a cidadania norte-americana, é a questão da imigração. Não tanto pela retórica, mas pela velocidade dos papéis. Primeiro de estar com autorização para trabalhar, depois de ter residência. Outro exemplo, as questões de saúde: isto é um sistema largamente privado, portanto, o que faz o governo é um bocadinho irrelevante em termos do meu acesso aos cuidados de saúde; educação para os meus filhos, para as crianças que eu conheço: mais uma vez, tudo é estadual, portanto, o Estado [federal] tem muito pouca importância. Claro que, por exemplo, com Joe Biden houve a questão da dívida dos estudantes, os student loans. Isso a mim não me afetou, porque já não estou nessa fase, mas para quem está entre os 30 e os 40 anos foi uma grande diferença. Ter o seu student loan pago pelo Governo Federal, são muitos milhares de dólares ao fim do ano. Mas, em termos daquilo que é a nossa vida no dia a dia, uma grande diferença com Portugal que as pessoas têm de ter em conta é que, tirando a questão dos impostos, eu não tenho relações diretas com o Estado. Enquanto em Portugal, praticamente todos os dias nós temos de nos relacionar com o Estado para praticamente tudo. Isso é uma grande diferença.
JPN – Estas eleições podem afetar a situação da comunidade portuguesa nos Estados Unidos de outras formas, sem ser na obtenção da cidadania?
Nuno Garoupa – A primeira coisa que temos de ter em conta é que não há estudos [sobre a comunidade portuguesa nos EUA]. Mas, pelo que se percebe, a comunidade portuguesa que está aqui, incluindo os luso-descendentes, está tão dividida como o resto do país. Há muitos apoiantes da [Kamala] Harris e há muitos apoiantes do Trump, e acho que depende muito dos Estados onde as pessoas vivem e das comunidades onde estão integradas. Portanto, as comunidades que vivem em Estados mais urbanos normalmente são mais Democratas; aqueles que estão em Estados mais rurais ou mais suburbanos tendem a ser mais Republicanos. A grande questão, talvez, que faz a comunidade portuguesa distinta das outras é que, a certa altura, havia um objetivo de os portugueses e brasileiros serem uma espécie de grupo étnico, ao lados dos hispânicos, que têm uma série de características e, durante muito tempo, uma série de proteções legais. Havia a ambição de fazer dos luso-brasileiros um grupo semelhante. Mas com as decisões recentes do Supremo Tribunal que acabaram com a Affirmative Action, de facto, essa questão morreu, por agora.
JPN – Explique-nos qual o ambiente político que se vive atualmente na sua comunidade. A Virgínia era um Estado tendencialmente republicano, essa tendência mudou?
Nuno Garoupa – Essa tendência mudou e na verdade reflete o que está a acontecer em todo lado. O que está a acontecer é um problema demográfico, porque as partes rurais do Estado da Virgínia continuam a ser profundamente republicanas e as partes urbanas são profundamente democratas. O que aconteceu é que a parte urbana cresce,u porque atrai muitas pessoas de outros Estados, por causa do nível de vida, por causa dos impostos, etc. E o que aconteceu, como está a acontecer no Texas e noutros Estados, é que isso leva a que o Estado comece a ficar mais democrata. Também há Estados em que acontece o contrário, de onde as pessoas estão a emigrar, e esses vão ficar mais republicanos, porque praticamente já não têm comunidades urbanas. O que nós estamos a assistir são um pouco alterações nos Estados, mas é em virtude da migração. Não são pessoas a mudar de voto. O que há é população diferenciada. Se há população mais urbana, mais jovem, mais universitária, o Estado é mais democrata. Se essas pessoas se vão embora, esse Estado fica mais republicano.
se [Trump] ganhar o Senado e mantiver a Câmara, vai dinamitar o Departamento de Justiça para haver processos contra várias pessoas do Partido Democrata
JPN – Acha que há um risco de violência associada ao resultado das eleições, como foi a invasão do Capitólio no último alto eleitoral?
Nuno Garoupa – Para responder a essa pergunta, eu diria que temos de separar duas coisas. Uma coisa é haver alguma violência esporádica, inorgânica. E isso é possível, porque, como sabemos, aqui há 400 ou 500 milhões de armas, portanto, obviamente há episódios de violência. Outra coisa foi o que aconteceu no Capitólio, que eu chamaria de violência organizada e orgânica. Acho muito difícil desta vez, porque Trump não é presidente. Ele é o challenger. E isso é muito diferente, porque ele não pode permitir amnistias a ninguém, não pode permitir apoio a ninguém, e não pode chamar a polícia ou as forças armadas. Portanto, toda a gente que entrar nessa espiral desta vez sabe que provavelmente acabará preso e a cumprir pena de prisão de cinco a dez anos. Por isso, tirando pessoas que estão nas franjas e que possam ser muito emocionais, não vejo muito bem como é que isso pode acontecer desta vez. Agora, nós já sabemos que há loucuras de grupo e há dinâmicas de grupo e que as coisas podem sair fora do controlo, mas diria que, racionalmente, acho menos provável desta vez.
JPN – Mas Trump tem falado em algumas entrevistas sobre o inimigo interno e insinuado perseguições políticas. Acha que é possível, se tiver a maioria no Senado, que isso venha a acontecer?
Nuno Garoupa – Se ele tiver maioria confortável no Congresso, portanto, se ganhar o Senado e mantiver a Câmara, vai dinamitar o Departamento de Justiça para haver processos contra várias pessoas do Partido Democrata, incluindo Joe Biden e a família de Joe Biden. Acho isso bastante provável, se ele, de facto, ganhar e tiver a maioria nas duas Câmaras. Se não tiver o Senado, aí torna-se mais complicado, porque obviamente há muita coisa que não pode ser feita e ele, por mais que faça retórica, não vai ter capacidade de executar. É por isso que as eleições para o Senado, desta vez, também são muito importantes.
Ambos estão a fazer demagogia. Não vai haver legislação federal, nem sobre o aborto nem sobre as armas.
JPN – Quais são os temas que são abordados pelos candidatos mais discutidos na sua comunidade?
Nuno Garoupa – Há dois temas grandes. Um é o tema da imigração – e as diferentes comunidades têm opiniões diferentes. Atenção, podíamos pensar que, como os portugueses e luso-descendentes são todos imigrantes, estão todos de acordo com a Harris. Mas não, porque há muitas pessoas que já cá estão e acham que devemos fechar as portas a quem vem atrás. A dinâmica de grupo é muito diferente, depende em que contexto estamos. Essa é uma questão. A outra é a questão económica, nomeadamente duas coisas: preço da habitação e hipoteca, porque as taxas subiram; e o preço da gasolina, porque já sabemos que os americanos utilizam o automóvel muito recorrentemente e, de facto, a gasolina e o gasóleo subiram muito nos últimos quatro anos.
JPN – Há pouco referiu a questão das armas nos Estados Unidos e Fairfax é a casa do Museu Nacional das Armas de Fogo, da NRA, que é um tema fraturante entre os eleitores. Pode-nos explicar essa questão em comparação com Portugal?
Nuno Garoupa – Em Portugal, não temos esta questão, como em quase toda a Europa, mas a resposta é muito simples: é porque tivemos estados autoritários nos últimos 200 anos que acabaram com esse problema. Portanto, a questão das armas fica resolvida, porque o Estado quer ter o monopólio das armas e acaba por tomar medidas. Aqui, não. E isto é uma questão fraturante. Há uma parte da população que acha que faz parte da sua identidade cultural e não quer sequer ceder esse direito, e há uma parte muito preocupada com as consequências que isso tem. Infelizmente, é uma daquelas questões em que ambos os candidatos fazem promessas, mas nada vai mudar porque seriam precisas maiorias muito grandes no Congresso para, por exemplo, proibir as armas ou, inclusivamente, alterar a Segunda Emenda da Constituição. Isso não vai acontecer e, portanto, o problema vai-se prolongar. Aliás, o mesmo aplica-se à questão do aborto. As pessoas também se dividem muito sobre a questão do aborto, Harris promete legislação que vai legalizar o aborto e Trump promete legislação que vai proibir o aborto em todos os Estados Unidos, e isso simplesmente não é possível. Ambos estão a fazer demagogia. Não vai haver legislação federal, nem sobre o aborto nem sobre as armas.
JPN – Quais são as posições dos candidatos que melhor refletem as visões do país?
Nuno Garoupa – O grande problema que nós temos neste momento é que os candidatos estão polarizados. Estas questões das armas e do aborto, são questões importantes. Não digo que não, porque as pessoas têm identificação com essas questões. Mas, na verdade, as campanhas têm fugido de questões que podemos pensar que são importantes no futuro. Por exemplo, neste momento sabemos que os Estados Unidos têm 35 biliões de dólares de dívida soberana. Isso quer dizer que os Estados Unidos vão ter de aumentar impostos. Não há outra forma de pagar essa dívida soberana. Ambos os candidatos negam. Dizem que não é preciso. Ora, sabemos que estão a mentir. Usam o mesmo argumento – aliás, típico em Portugal, do PS e do PSD – que é: “vamos pagar isto com crescimento económico”. Não, não há crescimento económico que vá pagar isto. Esse tema não se falou. O outro é o tema da imigração, porque todos dizem que têm soluções, mas a verdade é que as duas administrações, Trump e Biden, fracassaram nas fronteiras com o México. Mais uma vez, parece-me que esse problema não tem grande solução. Portanto, os candidatos continuam a dizer que vão fazer, mas sabemos que não vão fazer. Há aqui muita frustração com as campanhas estarem polarizadas e prometerem coisas que nós sabemos que não vão ser concretizáveis na prática.
O americano normal depende mais, no fundo, do que se faz no seu Estado e mesmo na cidade, no county. (…) É por isso que estas campanhas são cada vez mais emocionais e menos racionais: porque a vida da pessoa não depende destas campanhas.
JPN – Quais são as principais diferenças entre a política norte-americana e a política portuguesa?
Nuno Garoupa – Aqui há duas coisas diferentes. Claro, nós podemos dizer que uma grande diferença é que os Estados Unidos são uma das grandes potências, Portugal não é. E, até certo ponto, isso é uma grande diferença. Mas também podemos dizer que o americano normal depende mais, no fundo, do que se faz no seu Estado e mesmo na cidade, no county, do que se faz a nível federal. E isso é diferente, porque o português continua a achar que depende mais do que se passa em Lisboa do que o que se passa em Bruxelas. Quando, na verdade, é duvidoso que isso seja verdade. Mas as pessoas continuam a estar muito longe de Bruxelas e a sentir-se mais próximas de Lisboa. Grande parte do dia a dia do norte-americano são muito mais questões na cidade, da gestão da cidade, talvez do Estado, e sentem-se muito longe do que se passa em Washington DC. É por isso que estas campanhas são cada vez mais emocionais e menos racionais: porque a vida da pessoa não depende destas campanhas, mas a emoção mobiliza o voto.
JPN – Acha que a política americana influencia as tendências políticas em Portugal de alguma forma? Para além dessa questão da emotividade?
Nuno Garoupa – Sim. É verdade que, como típico de Portugal, vamos sempre com algum atraso, mas vai sempre a copiar um pouco. A esquerda portuguesa tradicional é trabalhista, é parte dos sindicatos, e isso está a morrer. Está a ser substituída por uma esquerda muito mais identitária. Isso é uma importação norte-americana. Por outro lado, podemos dizer que a direita portuguesa tradicional é uma direita católica, corporativista, não é uma direita liberal, nem neoliberal. Isso é uma invenção e em parte vem dos Estados Unidos. Não foi inventada em Portugal. Portanto, nós podemos dizer que a mudança nos últimos 20 anos na própria direita e esquerda portuguesas, acontece em função daquilo que tem sido a mudança da direita e da esquerda norte-americana.
parece-me que não vamos ter nem Harris, nem Trump a ganhar por [larga] margem, e isto pode acabar nos tribunais, pode acabar numa grande confusão
JPN – Qual é a sua principal preocupação acerca do resultado destas eleições?
Nuno Garoupa – Estou preocupado que não haja resultado [claro] das eleições, já não digo na noite eleitoral, mas na semana a seguir à noite eleitoral. Essa é a minha preocupação. Tenho as minhas preferências e não sou particularmente fã de nenhum dos candidatos, mas nunca votaria Trump porque acho que o que aconteceu a 6 de janeiro de 2021 elimina qualquer possibilidade de se poder votar num candidato que não aceita uma derrota eleitoral. O ideal é que quem ganhasse, ganhasse por uma margem tal que não haja qualquer dúvida que ganhou. Infelizmente, parece-me que não vamos ter nem Harris, nem Trump a ganhar por essa margem, e isto pode acabar nos tribunais, pode acabar numa grande confusão outra vez e isso é que é péssimo para a democracia. Infelizmente, penso que isso é um cenário muito provável.
JPN – Existe, na sua comunidade, essa perceção de que estas eleições podem representar, de facto, um perigo para a democracia americana?
Nuno Garoupa – Acho que sim, não no sentido de que um candidato seja um perigo para a democracia, mas no sentido em que uma democracia não pode viver se as eleições não produzem candidatos vencedores e candidatos derrotados de forma clara. Isso, de facto, é uma ameaça à democracia. Se começamos a viver um pântano em que não se percebe quem ganha ou quem perde, isso deslegitima a democracia e é um problema para todos.
JPN – Quais é que vão ser os principais desafios que o país vai enfrentar depois de conhecer os resultados eleitorais?
Nuno Garoupa – Partindo do princípio que se resolve a questão de quem ganhou e quem perdeu, porque isso vai ser o grande desafio que pode durar até janeiro. Mas partindo do princípio de que isso fica arrumado e uma vez que haja uma equipa de transição, seja ela do Trump, seja da Harris, os grandes desafios são a questão das políticas de imigração, que têm de ser clarificadas. E há uma grande questão que neste momento é uma grande incógnita, logo imediata, que é a questão da guerra na Ucrânia. Porque Trump tem insistido que não haverá mais financiamento à guerra da Ucrânia, e isso tem de ser clarificado. Até diria que isso pode ter consequências negativas para os europeus, antes de ter consequências negativas para os norte-americanos. Portanto, essas duas questões vão ter que estar clarificadas muito rapidamente. Depois há questões como saber como é que se vai fazer o novo orçamento, porque aqui não temos o problema de Portugal, que não sabia como é que passava este orçamento, mas temos todos os anos, em junho, o problema do shutdown do governo, porque não há acordo sobre como pagar a dívida e essa questão também vai ter de ser clarificada. Finalmente, vamos ter de ver que maiorias é que há no Congresso, porque se se mantiver a atual composição, a Câmara Republicana e o Senado Democrata, não vai haver legislação. Ou seja, vamos continuar outros dois anos sem grande legislação nos Estados Unidos.
Editada por Filipa Silva