No dia do lançamento do seu mais recente romance, "A Cegueira do Rio", no festival literário Escritaria, o JPN teve a oportunidade de entrevistar o autor moçambicano Mia Couto para uma conversa sobre memória, literatura e política.
Mia Couto é um autor já bem conhecido da literatura em língua portuguesa. Com várias obras inseridas no Plano Nacional de Leitura português, é também estudado em contexto universitário no âmbito das literaturas africanas.
O JPN entrevistou o autor no Escritaria, em Penafiel, a 25 de outubro, dia da apresentação do seu novo livro “A Cegueira do Rio” (Editorial Caminho) no festival.
A memória e o papel da literatura na conservação da memória dominaram a conversa, numa tarde em que o autor se assumiu também “angustiado” pela situação política vivida no seu país, Moçambique, onde decorreram eleições gerais.
JPN: Vai hoje [25 de outubro] apresentar o novo livro e sabemos que o romance tem por base dois episódios que fazem parte da história de Moçambique. Como é que descobriu esses episódios? O que aconteceu na realidade e o que o motivou depois a escolhê-los para escrever um romance?
Mia Couto (MC): Eles vieram ter comigo, esses dois episódios. Está dentro de mim, como um programa, tentar perceber quanto do passado foi apagado, se foi apagado, às vezes, intencionalmente, e quanto é que esse passado nunca passou, está presente. Interessa-me o passado, na medida em que ele nos oferece versões do nosso presente que nós temos esquecido ou tomamos por esquecido. Um primeiro episódio, que foi o ataque ao posto militar, aconteceu porque eu estava na internet e, de repente, vi uma coisa da autoria do meu irmão mais velho, que não é historiador, mas ele tinha esse registo. Este relato de um ataque feito pelas forças alemãs, que na altura ocupavam aquilo que é hoje a Tanzânia, e que atacaram o posto militar português, na altura que Portugal ocupava a parte de Moçambique a sul. É uma canoa que cruzou o rio, é como está no livro. O outro é um episódio histórico mais conhecido, que se passa do outro lado da fronteira, que é um massacre, é um genocídio mesmo, em que os alemães matam talvez entre 200 a 300 mil (pessoas). A certa altura, esses números parecem só estatísticas, já não parecem vidas, de pessoas, de camponeses, que se revoltaram contra o cultivo obrigatório do algodão.
JPN: Então, encontrou estes episódios por acaso e decidiu, a partir deles, criar.
MC: Sim, [criar] qualquer outra coisa que era bastante distante desses casos concretos. Não me interessa a realidade, só me interessa como sugestão, como ponto de partida.
JPN: São episódios que tentam ser esquecidos e, no livro, percebemos que há uma associação da escrita com a memória. Como é que considera que a escrita e a memória podem estar interligadas? Como é que num campo literário, que é um campo ficcionado, nós podemos preservar esta memória?
MC: Mesmo que seja registado por escrito, naquilo que a gente chama a história oficial, a história com “H” maiúsculo, como se fosse uma disciplina científica, ela é muito objeto de uma escolha, é uma construção, uma construção dos vencedores. Muitas vezes, há vozes ali que deviam ser escutadas e não são. Portanto, parto do princípio que é sempre um trabalho ficcional, quer seja no registo escrito ou no registo oral. O esquecimento é uma construção, mais do que uma ausência, mais que um lapso. A gente constrói como? Elaborando uma outra narrativa, que apaga a primeira ou a segunda, ou o que quisermos. Então, todos esquecem, esquecem os que escrevem e esquecem os que não escrevem também, e esquecem de diferentes maneiras. Da mesma forma que todos dizem coisas, que não seja pela escrita alfabética que adotamos hoje no mundo moderno… bem, nem todos, porque outros têm outras escritas e mantêm essas escritas vivas, como os chineses, por exemplo. Mas quer os que escrevem, quer os que não escrevem, têm o mesmo trabalho de construção do passado e de tentativa de que essa versão do passado que eles escolheram seja mantida de outras formas, através de histórias, através de provérbios como eu registo ali [no livro], através de desenhos que se fazem até agora, que se mantêm vivos em Moçambique.
JPN: Há uma herança colonial que ficou em Moçambique. Acredita que é possível a construção da memória e de uma identidade, como a identidade de Moçambique, tendo esta história colonial, através da ficção?
MC: Sem dúvida. Às vezes, é a única maneira. O que acontece, sobretudo em factos traumáticos, em momentos que são muito dolorosos, ao serem restaurados hoje podem trazer para a superfície violência, ódios antigos, desejos de vingança. Há ali uma espécie de sabedoria que faz com que, consensualmente, as pessoas queiram esquecer, de um lado e do outro, os antigos rivais, as antigas adversidades. A literatura pode cumprir esse papel de dizer: ‘olha, vamos visitar esse passado de maneira tranquila, sem pedir contas, sem fazer ajustes de culpas’.
JPN: Há alguma vantagem em manipular a memória e forçar o esquecimento?
MC: Nos casos que eu conheço melhor, que são os do Moçambique mais recente, eu acho que a razão desse esquecimento é sempre, vamos dizer, positiva, no sentido que se procura evitar razões que depois façam renascer fantasmas que são sedentos de vingança. Vou dizer, por exemplo, a escravatura, porque a escravatura envolveu não só uma mão externa e que foi fundamental. É preciso sempre dizer isto, porque senão parece que estamos a fazer um branqueamento da história, mas houve cumplicidades internas dentro da África. Quem foi exatamente que abriu a porta? Quem foi capturar? Quem foi vender dentro de cada uma das atuais nações? É uma coisa que eu acho, até de uma forma quase sábia, se quer esquecer.
JPN: Mais sobre o seu estilo de escrita, há um universo ficcional que é muito marcado pelo imaginário, pela magia. Trazer sempre a um mundo imaginário, em que tudo poderia acontecer. Porquê essa escolha para os seus livros?
MC: Sim, mas não é uma escolha minha. Isso já não é uma escolha. Eu acho que para contar histórias de Moçambique, só há essa maneira. Pode ser que cada escritor tenha a sua forma, tenha o seu estilo, mas é impossível não escrever assim, porque as pessoas de Moçambique não acreditam que isso seja ficção, ou magia, ou realismo mágico. Não fazem essa distinção entre a realidade, o que é a realidade, o que é mágico, o que é sobrenatural. Não existe esta ficção. Se eu disser a um amigo meu em Moçambique, um tipo que eu encontro na rua, que estou muito cansado porque acabei, agora mesmo, de deixar de ser árvore, porque fui árvore uma hora atrás, a pessoa não acha isso extraordinário.
JPN: É algo cultural?
MC: É cultural mesmo, sim.
JPN: Na lapela do livro faz uma espécie de introdução e resumo da história. Termina com a seguinte frase: “Os habitantes desta aldeia são chamados a restabelecer a ordem do mundo, ensinando aos europeus o ofício da escrita e as artes da navegação”. Há aqui uma ideia quase de anticolonialismo, uma ideia contrária à visão de que os portugueses e todos os outros europeus foram levar uma civilização a África. O que é que podemos esperar daqui?
MC: Evidentemente que é uma provocação. Eu não proponho uma troca, no sentido de que agora é a vez dos africanos sujeitarem os outros, não é isso. Mas é a vez dos outros escutarem também, de haver uma escuta, haver uma reciprocidade. Há sabedorias africanas que são importantes, primeiro de serem reconhecidas e depois de se perceber que não são do domínio do exótico, do engraçado, do antropológico, mas que tem de haver essa escuta. Não estou muito longe daquilo que foram factos reais. Vasco da Gama, que hoje Portugal corrigiu um bocadinho esse discurso, não se apresenta como descobridor, porque as pessoas não são descobertas. Então, esses países já estavam lá e havia já navegações que se faziam, principalmente no Índico. Vasco da Gama, quando chega à costa de Moçambique, depois não conseguiria sair dali, não teria chegado à Índia, se não fosse pela intervenção de um piloto árabe, que naquela altura se chamava mouro, na linguagem portuguesa. Foi ele que ensinou esse último percurso do caminho, que foi feito por ele, porque essa arte de navegar no Índico não era dominada pelos portugueses, nem sequer os barcos estavam configurados para isso. Então, não é uma coisa tão estranha assim, que de repente os europeus têm de pedir ajuda aos navegadores que já estavam lá no lugar há milhares de anos, para perceberem como é que tinham de navegar.
JPN: Gostava de o trazer um bocado para a atualidade política de Moçambique, com o assassinato de Elvindo Dias e Paulo Guambe e as reações da população. Pode haver aqui um despertar de um novo período de violência?
MC: Já está.
JPN: Com que sentimento dominante está a acompanhar este processo?
MC: Angústia, uma profunda, profundíssima, angústia. Estou aqui, uma parte de mim está lá. Tenho lá a minha família toda, a minha mulher, os meus filhos, os meus netos, os meus amigos, a minha vida… O que é que eu posso dizer? Espero que seja temporário, tem que ser temporário, uma crise de enorme violência que tem dois culpados, claramente. Uma culpa é da frustração que se deixou acumular por parte dos jovens que querem outra vida, querem outro futuro, querem ter outra esperança. Por outro lado, quem explora de uma forma demagógica, populista, estas situações para cavalgar para o poder. Então, é muito difícil fazer parar quer um quer o outro. Este novo candidato mais jovem que se propõe ser alternativa ao poder instituído, quando ainda estavam contados 20% dos votos, ele já se anunciou vencedor e disse logo, se não for assim, eu incendeio o país. Então, estamos reféns de duas ganâncias, como se fosse uma escolha entre o fogo e a frigideira, vamos dizer assim.
JPN: Quais as expectativas que tem para uma nova governação? Que posição poderá tomar o novo presidente relativamente a este episódio?
MC: Eu tenho esperança que, se os resultados são estes e se tudo se mantém, por um lado eu espero que sim, acho que as grandes mudanças têm que acontecer, mas devem acontecer de uma maneira estruturada. É preciso que aquele país seja realmente governável e não se opte pela escolha da ingovernabilidade. Eu estou crente que o Partido Frelimo vai recolher as lições necessárias para não continuar o mesmo caminho, porque esse caminho… Foi muito curioso. Foi a morte de um cantor, de um ‘rapista’ chamado Azagaia, que fez despertar o partido no poder para a falta de poder que esse partido tinha. Quando ele morre, o funeral foi uma manifestação de jovens que assustou tanto o governo, que o governo respondeu com imensa violência e criou aqui uma espécie de bola de neve. Então, acho que eles não perceberam que já havia um cartão vermelho e que esse cartão vermelho deveria ser um alerta para que eles mudassem este tipo de atuação, porque não é pela violência que eles vão legitimar.
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