As chuvas torrenciais, que se abateram especialmente sobre a região de Valência, provocaram uma situação "dramática" que ainda está a ser resolvida por populares e autoridades. O que aconteceu ao certo? Qual o balanço mais recente do Governo? Neste artigo, respondemos a estas e outras questões.
No dia 29 de outubro, algumas regiões de Espanha, no sul e no leste, foram atingidas por chuvas torrenciais. O que era esperado chover num ano, atingiu Valência, a terceira cidade mais populosa de Espanha, em apenas oito horas. Em consequência desta catástrofe sem precedentes, até ao momento de fecho deste artigo, morreram 219 pessoas: 211 em Valência e os demais em regiões próximas, como Andaluzia e Castilla-La Mancha.
Segundo a Agência Estatal de Meteorologia (AEMET), esta foi a pior tempestade deste século na região. Há ainda 93 desaparecidos, segundo o Governo espanhol – chegaram a ser reportadas 1.900 pessoas desaparecidas ao serviço de emergência pelos familiares. Mais de 325 mil pessoas terão sido afetadas.
O que aconteceu em Espanha?
A península ibérica já está acostumada com chuvas neste período do ano, mas resultado de uma “depressão isolada em níveis altos” (DANA, na sigla espanhola), que afetou severamente as regiões leste e sul da Espanha, desde 26 de outubro tempestades intensas provocaram cheias rápidas na região de Valência e arredores. A DANA, ou “gota fria”, é um fenómeno meteorológico recorrente no outono espanhol, mas a intensidade desta tempestade é inédita.
No dia 28 de outubro, a AEMET emitiu alertas para a região sudeste, devido ao alto risco de inundações. Entretanto, as chuvas vieram com força inesperada, a maior em 60 anos, com até 450 mm por metro quadrado em apenas algumas horas: “Como viemos de uma seca profunda, 2023 e 2024 foram muito secos. Nos 21 meses entre janeiro de 2023 e setembro de 2024, foram acumulados 446,4 l/m². Em 29 de outubro de 2024 foram acumulados 618,0 l/m²“, esclareceu a AEMET pelo X/Twitter.
As chuvas intensas saturaram rapidamente os solos e causaram inundações repentinas dos rios, canais e avenidas apanhando muita gente desprevenida em automóveis, parques de estacionamento subterrâneos, nas suas casas ou nas ruas.
Qual foi o tamanho da tragédia?
A AEMET divulga diariamente comunicados atualizando os dados globais. Até agora, o balanço provisório chega a 219 mortes, com a maioria das vítimas na comunidade Valenciana. Milhares estão desalojados, e as estimativas de prejuízos materiais já ultrapassam os 2,6 mil milhões de euros, com a região valenciana a pedir ao governo central apoio financeiro de 31 mil milhões de euros.
A força da tempestade mobilizou militares e equipas de emergência, mas as operações ainda encontram dificuldades devido à destruição generalizada e a inundações persistentes. Nas áreas mais afetadas, muitas ruas continuam intransitáveis e os moradores relatam falta de bens essenciais. As equipes de limpeza e de resgate também foram enviadas para restaurar estradas, túneis e a linha de alta velocidade, essenciais para a mobilidade e economia locais.
Nas televisões, foram inúmeras as reportagens de populares a criticarem a falta de apoio das autoridades nas operações que se seguiram à tragédia.
Que críticas foram feitas às autoridades?
Os espanhóis vivem um momento de tristeza e revolta. Segundo os moradores da região, o governo só emitiu alertas de risco de inundação duas horas depois de a chuva já estar a causar estragos.
A atitude das autoridades locais e nacionais gerou intensa polémica. Num país formado por regiões autónomas, o governo regional de Valência, não terá, inicialmente, requisitado ajuda ao estado central, alegando que o nível de destruição foi inesperado. Só três dias depois das inundações é que os primeiros voluntários e unidades de emergência começaram a chegar. A oposição política, liderada por Nuñez Feijóo do Partido Popular, propôs declarar estado de emergência nacional, permitindo ao governo central assumir o comando da resposta.
Entre a destruição, os espanhóis reclamaram por socorro e expressaram a sua indignação com a postura dos governantes que, segundo eles, não emitiram um alerta com a antecedência necessária.
Cinco dias do início da tragédia, o rei Felipe VI, acompanhado da rainha Letizia, do presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, e Carlos Mazón, presidente da Generalidade Valencia, visitaram Paiporta – uma das zonas mais afetadas – e foram recebidos pelos populares com arremesso de lama e ao som de insultos como “assassino” e “vocês sabiam e não fizeram nada”. Apesar disso, os reis enfrentaram a população. Sánchez e Mazón deixaram o terreno escoltados pela polícia. Já esta quarta-feira (6), a Guardia Civil confirmou a detenção de três envolvidos nos desacatos em Paiporta.
Além da meteorologia, existem outras razões para a tragédia?
Não terão sido apenas as chuvas inesperadas a causar esta calamidade. As alterações climáticas e a falta de ordenamento do território também terão contribuído, além das possíveis falhas das autoridades competentes no acionamento de situações de emergência.
Pedro Matos Soares, professor da Universidade de Lisboa, explicou na RTP como as alterações climáticas terão agravado o fenómeno que afetou Valência.
O professor relembrou que a “gota fria” é um fenómeno típico que ocorre na Península Ibérica, sendo a terceira gota fria naquela zona da Península Ibérica este ano. Ela resulta de uma “depressão bastante estacionária a sul da Península Ibérica”, que combina ares muito frios da atmosfera com o ar muito quente e muito húmido à superfície do Mediterrâneo.
Há um processo de aquecimento à superfície que resulta na retenção de mais vapor de água na atmosfera. “Nós temos mais humidade na atmosfera, mais vapor de água, e por outro lado temos recordes anuais [de temperatura] no Mediterrâneo – este ano tivemos o Mediterrâneo com temperaturas de 28,47 graus, que foi um recorde em agosto”, explicou o docente.
A humidade somada a uma massa de ar frio em grandes altitudes resulta numa diferença de temperatura extrema, que cria condições ideais para este tipo de fenómenos extremos, como o que aconteceu em Espanha.
A falta de planeamento urbano das regiões foi outro dos fatores apontados. Foram construídos alguns bairros junto a cursos de água que estão normalmente secos, mas que podem estar expostos a inundações sazonais. A falta de planeamento dos espaços fluviais dos canais e avenidas também é um fator, uma vez que episódios anteriores de cheias já tinham evidenciado este problema.
O que está a ser feito para apoiar as populações?
Helicópteros e equipas de resgate foram acionados para socorrer moradores isolados em telhados e veículos. Mais de 17 mil profissionais das forças armadas e de segurança do Estado foram mobilizados, incluindo apoio psicológico e psiquiátrico para amparar as vítimas, além de equipes da Guarda Civil, Polícia Nacional e 45 médicos forenses.
A Unidade Militar de Emergências (UME), responsável pela resposta a desastres, colocou várias bombas de drenagem em operação para ajudar a escoar a água acumulada. As buscas continuam intensamente, com equipas dedicadas a localizar sobreviventes, remover escombros e distribuir itens essenciais como produtos de higiene, água e alimentos.
Adicionalmente, equipas de segurança patrulham a cidade para prevenir saques e garantir a ordem.
Na terça-feira (05), o Presidente do Governo espanhol, Pedro Sánchez, atualizou o número de vítimas fatais e anunciou medidas emergenciais baseadas num plano estratégico de 10,6 mil milhões de euros, similar ao implementado na pandemia de Covid-19.
O Governo compromete-se a cobrir integralmente as despesas emergenciais dos municípios afetados pelo desastre: “Vamos financiar todas as ações relacionadas à remoção de lama, entulhos, pertences inutilizáveis, abastecimento de água potável, limpeza das ruas, alojamento e manutenção dos moradores atingidos”, declarou o chefe do Executivo.
O socialista classificou como “dramática” a situação vivida, e garantiu que “haverá tempo” para apurar responsabilidades e para refletir sobre como melhorar a coordenação e a distribuição de responsabilidades em casos como este, dando agora prioridade ao salvamento de vidas, à recuperação e identificação de cadáveres e ao restabelecimento de serviços básicos.
Que desafios se colocam às populações?
Com estradas bloqueadas e a ameaça de novos temporais, as autoridades pedem à população que permaneça em casa para garantir a segurança. Uma semana após as fortes chuvas que devastaram a região, novas enchentes voltam a atingir a costa espanhola. Barcelona está em alerta vermelho, e outras áreas da Catalunha também enfrentam previsões de intensas precipitações nos próximos dias.
A persistência do mau tempo apresenta um enorme desafio, especialmente para as operações de resgate e para a população local, ainda a braços com limpezas e restabelecimento de energia e comunicações. A identificação dos corpos encontrados é também um desafio para as autoridades: no momento, 54 deles continuam sem identificação e poderá haver ainda pessoas cujo desaparecimento não foi reportado.
Em resposta ao desastre, o governo espanhol decretou três dias de luto nacional, e a União Europeia manifestou o seu apoio, colocando à disposição o Fundo Europeu de Solidariedade para auxiliar o país.
Editado por Filipa Silva