Numa entrevista temática dedicada ao cinema português contemporâneo, o realizador, entre outros, de "Noite Escura" (2004), "Sangue do Meu Sangue" (2009) e "Mal Viver" (2023) reflete sobre a nova geração de cineastas, a exiguidade do mercado português e sobre porque considera a distribuição internacional dos seus filmes mais importante do que a bilheteira.
João Canijo é um dos nomes mais influentes do cinema português contemporâneo, cujo percurso e obra refletem um compromisso profundo com a verdade das suas personagens.
Estudou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), tendo abandonado os estudos para se dedicar à sétima arte. Foi assistente de realização de Manoel de Oliveira, Wim Wenders e Werner Schroeter. Em 1988, realizou a sua primeira longa-metragem, “Três Menos Eu”, que conta com Rita Blanco e Anne Gautier.
Ao longo da carreira, o realizador tem explorado, nos seus filmes, a complexidade das relações humanas, expondo as dinâmicas sociais e familiares de forma autêntica, muitas vezes características da essência de uma identidade portuguesa.
Ganhou um Urso de Prata no Festival de Berlim, em 2023, com “Mal Viver”, uma das duas longas-metragens com que se apresentou.
Nesta entrevista temática, o foco da conversa foi o panorama atual do cinema português. Nela, João Canijo mostra-nos a sua visão sobre o comportamento dos cineastas, do público e do mercado nacional.
JPN – Como é que o cinema pode contribuir para a construção da identidade cultural portuguesa, especialmente num mundo cada vez mais globalizado?
João Canijo (JC) – Pode, desde que os filmes sejam intrinsecamente portugueses e que retratem ou mostrem realidades portuguesas. Se não, não contribuem nada.
JPN – É importante que exista uma espécie de identidade cinematográfica nacional, que reflita a nossa cultura?
JC – É importante as pessoas conhecerem as suas tradições e a sua cultura para construírem a sua identidade. Se não, são todos americanos. Quanto mais particular, mais universal.
JPN – Que tendências tem observado no cinema em Portugal nos últimos anos?
JC – Os novos são melhores do que os antigos.
JPN – Porquê?
JC – São melhores, porque estão mais focados sobre si mesmos e sobre a identidade portuguesa, exatamente. Acho que sabem mais.
JPN – Sabem mais porque estudaram mais?
JC – Sabem mais porque têm mais referências e têm referências mais contemporâneas. As pessoas da minha idade têm de fazer um esforço para se manterem atualizadas quanto às referências.
JPN – Porque é que esta geração de cineastas se atualiza mais facilmente?
JC – Porque estão a ver as coisas no tempo deles. Os mais antigos estavam muitos fechados até aos anos 60 e acompanharam muito pouco o que se passava depois disso.
JPN – Será que quando passar o tempo destes novos cineastas, eles vão conseguir acompanhar o futuro ou vão ter a mesma tendência que os anteriores?
JC – Não sei. Eu tento, mas confesso que não é fácil.
JPN – O que é que o cinema pode revelar que a literatura, por exemplo, não consegue?
JC – O cinema tem uma qualidade que pode ser um risco, que é o imediatismo. A literatura é mais perene. E esse pode ser o risco do cinema, ser só imediato e fugaz. Tenta-se que seja perene.
JPN – Será que as obras de literatura mais descritivas conseguem, de certa forma, aproximar-se do cinema?
JC – Acho que não. Podem inspirar, mas não se aproximam. A literatura obriga, e isso é uma vantagem, a que o leitor imagine as emoções que estão escritas. O cinema mostra-as. Mas também não as mostra só de uma maneira. Cada um vai senti-las de uma maneira diferente. A diferença é essa.
…no cinema português, mas não só, a dramaturgia é imposta aos atores e não feita com eles.
JPN – Há falta de dramaturgia no cinema português?
JC – O cinema tem duas componentes fundamentais. Uma é a forma, ou seja, o estilo do filme. A outra é que, para chegar a essa forma e a esse estilo, é preciso aprender a trabalhar e a respeitar os atores. Aí sim, podemos dizer, que muitas vezes, no cinema português, mas não só, a dramaturgia é imposta aos atores e não feita com eles. Quando a dramaturgia é imposta aos atores, tem muitas vezes falhas, porque não os considera. E ao não considerá-los está a impor-lhes uma dramaturgia em abstrato, que pode não funcionar para todos os atores, porque cada ator é diferente. Os atores não são bonecos, como na literatura, onde são todos escritos pelos escritores e depois o leitor imagina, porque eles não se mostram. No cinema, para teres um personagem concreto é preciso que o personagem saia de dentro do ator. Portanto a dramaturgia também tem que se adaptar ao ator particular, e isso muitas vezes não acontece. Pensa-se que o cinema se pode aproximar da literatura nesse sentido, de impor uma dramaturgia escrita, e encaixar o ator nessa dramaturgia. Isso não acontece, é impossível, porque é impossível impor uma interpretação a outra pessoa. A interpretação é individual.
JPN – Quando se tenta fazer isto, como é que se reflete na forma como nós, que estamos a assistir ao filme, o percebemos?
JC – Reflete-se em representações extremamente artificiais.
JPN – De que maneira é que a experiência pessoal e as vivências dos próprios realizadores acabam por afetar a narrativa de um filme?
JC – Como as vivências dos escritores acabam por afetar a narrativa de um livro. Aliás, não há obra de arte, não há filme nem livro, que não reflita as vivências e a história do seu autor. Se isso acontecer é porque estão só a contar uma história que lhes é exterior e isso não tem grande interesse.
JPN – Como caracteriza a multiplicidade de vozes que vemos surgir no cinema em Portugal?
JC – Os bons, têm exatamente isso, de tentarem fazer filmes que sejam muito pessoais, e ao serem muito pessoais refletem, como disseste, as vivências que têm no país onde vivem. Depois há uma grande quantidade que só faz coisas aproximadas da televisão. Que é contar uma historinha muito bem explicadinha, julgando que o ser muito bem explicadinho vai fazer com que o ponto de vista deles passe. Não passa nada, porque cada um, mesmo nas telenovelas [vê-as de forma diferente]: tu vês a telenovela de uma maneira, a tua tia de sessenta anos vê de outra e a tua avó de oitenta vê de outra ainda completamente diferente. Mas há muitos que tentam isso, que acham que tudo muito explicadinho é que é bom porque vai ter muito público. O que acontece é que a gente faz os filmes, como faz os livros, como pinta os quadros, em primeiro lugar para nós próprios. Não se faz um filme, nem se escreve um livro, nem se pinta um quadro a pensar na repercussão que isso vai ter junto do público. O que se tenta fazer é transmitir, em qualquer um destes meios, uma emoção que seja particular ou pessoal, e se essa emoção for verdadeira para o autor, alguma coisa há-de passar para o espectador. O contrário não faz muito sentido, e normalmente não leva a grandes lados.
JPN – Isso reflete-se no público, em termos de números?
JC – Reflete-se de uma maneira negativa, porque o público está muito habituado à televisão e, portanto, qualquer objeto que seja mais aproximado da televisão tem mais público.
JPN – É para lá que as pessoas caminham.
JC – É a diferença entre entretenimento e emoções verdadeiras.
JPN – O tipo de público é, também, diferente.
JC – É completamente diferente. A televisão é para um público generalista. Ora, não há um público, há muitos públicos. Quando fazemos uma obra séria e pessoal, não temos em mente nenhum público. Temos a esperança que haja algum público que se interesse por aquilo que fazemos. Ainda hoje o público generalista diz que Picasso fazia rabiscos. Enquanto que “O Menino da Lágrima” está em muitas casas portuguesas.
JPN – Assistimos a uma redefinição do cinema português?
JC – Não há um cinema português, há vários. Não podemos comparar os realizadores das comédias de sucesso com os jovens realizadores que tentam fazer um cinema pessoal. Não existe um ponto de vista geral.
JPN – Algum filme para destacar que o tenha marcado, enquanto parte do público?
JC – Dos antigos, os filmes do Manoel de Oliveira, do João César Monteiro e do Pedro Costa. Dos novos, não sei, porque são muito novos e não sei se vão marcar alguma coisa.
JPN – Prevê que possam marcar?
JC – Prevejo que possam marcar. Gosto muito do filme da Leonor Teles [“Baan”].
JPN – Vemos uma nova geração de cineastas que explora temas contemporâneos de forma ousada e inovadora. Cada vez mais o cinema se torna uma resposta a questões sociais e políticas. Acredita que os realizadores têm responsabilidade de abordar estes temas de forma crítica?
JC – Não. Quando se tenta fazer uma coisa programática e com uma mensagem, isso é sempre contraproducente. Sai muitas vezes uma coisa maniqueísta. O que os realizadores têm que fazer é sentir o tema como seu, e abordá-lo do seu ponto de vista, de uma maneira sincera. Acho que é isso que os jovens fazem. Estão mais dentro do seu tempo e das suas circunstâncias do que os antigos.
JPN – Sendo ainda intencional?
JC – A intenção decorre da ação, decorre da feitura. Se a intenção se põe à frente, condiciona a feitura de uma maneira não verdadeira.
JPN – Os realizadores têm liberdade para abordar estas questões ou existem ainda barreiras institucionais ou culturais?
JC – A vantagem que temos em Portugal é que como há pouco dinheiro para fazer filmes, também a responsabilidade é muito mais pequena, e não há imposições. Aí sim, o cinema português tem toda a liberdade.
Quando fazemos uma obra séria e pessoal, não temos em mente nenhum público. Temos a esperança que haja algum público que se interesse por aquilo que fazemos. Ainda hoje o público generalista diz que Picasso fazia rabiscos. Enquanto que “O Menino da Lágrima” está em muitas casas portuguesas.
JPN – E o papel do governo e das instituições de apoio ao cinema? Preocupam-se com a rentabilidade ou incentivam esta liberdade?
JC – O cinema não é como o teatro, nem como a ópera, nem como a dança. O dinheiro do Cinema não sai do orçamento do Ministério da Cultura, é independente. São taxas aplicadas a atividades cuja receita vai diretamente para o ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual]. Até uma certa altura, o cinema vivia de uma taxa de 4 por cento sobre a publicidade exibida na televisão. Portanto, não são os contribuintes que pagam.
JPN – Como se faz a distinção de forma a decidir para onde será canalizado este dinheiro?
JC – O ICA faz concursos com júris que analisam os projetos dos realizadores e produtores, e atribuem os subsídios.
JPN – Quem são estes júris?
JC – São selecionados entre inúmeras personagens ligadas ao cinema, num universo bastante grande, mas ao mesmo tempo pequeno, porque Portugal é pequenino. Aqui há uns anos, estes júris, em França, eram escolhidos num universo de 30 mil pessoas. Em Portugal, não há 30 mil pessoas, portanto, tem essa limitação. Em França, o que acontecia é que num concurso, um júri era de uma tendência, mas no concurso seguinte já não era, e acabava por ser mais eclético. Em Portugal, os júris são o que são, são o que se pode ter.
JPN – Qual é o maior desafio que os profissionais da área do cinema enfrentam em Portugal?
JC – Ganhar um concurso!
JPN – Existe ainda uma centralização da indústria cinematográfica na capital e nas grandes cidades?
JC – Isso existe, sim.
JPN – Como podemos lutar contra isto?
JC – É muito difícil, não por falta de vontade, mas porque o país é muito pequeno. O mercado é pequeníssimo, e descentralizar a produção é difícil porque não há dinheiro para todos. Não há dinheiro para diversificar dois polos de produção, um em Lisboa e outro no Porto, embora já esteja muito melhor do que há 20 anos. Vai ser sempre difícil. O filme português mais visto de sempre é “O Pátio das Cantigas” [do realizador Leonel Vieira] e fez 620 ou 650 mil espectadores. Parece muito, mas fazendo as contas não dá para sustentar uma indústria, de maneira nenhuma, nem dá sequer para o produtor d` “O Pátio das Cantigas” fazer outro. A diferença é que, um filme francês, que nem é das comédias mais vistas de sempre, está a fazer 8 milhões de espectadores. É muito diferente.
JPN – Há aqui um papel do público?
JC – Não há, o mercado é muito pequenino. O filme mais visto de sempre em Portugal é o “Avatar”, acho que o primeiro, e fez 1 milhão e 200 mil espectadores. Não é nada.
JPN – Como vê a relação do público nacional com o cinema português, em relação a outros países?
JC – A diferença não é tão grande, são sempre as comédias, mais ou menos televisivas, que são grandes êxitos de bilheteira. Este filme francês de que falava é uma comédia dessas. Não vi, nem tenciono ver, mas é uma comédia dessas.
JPN – O que é que pode ser feito para aumentar o interesse pelas produções locais?
JC – Deve sempre haver esta continuidade de produção, porque da diferença sai a qualidade e da quantidade sai a qualidade, mas eu não tenho pretensões nenhumas, antes pelo contrário, que os meus filmes sejam êxitos de bilheteira. Pretendo que tenham uma bilheteira honrosa e que tenham, como têm tido, uma grande distribuição internacional. Isso é mais importante do que fazer 600 e tal mil espectadores só em Portugal.
JPN – Porquê?
JC – Porque muita gente sabe, no estrangeiro, quem é o Manoel de Oliveira e ninguém sabe quem é o Leonel Vieira. A importância não é só o número de espectadores internos. É também, e muito mais, o reconhecimento internacional.
JPN – Como é que avalia o impacto das plataformas de streaming na produção e distribuição de filmes em Portugal?
JC – Deu o “Rabo de Peixe”. Parece-me bem. O dinheiro não tem nada a ver. O orçamento de um episódio de “Rabo de Peixe” é igual ou superior ao orçamento de um filme português médio. Têm muito mais dinheiro e muito mais condições, mas também há condições impostas. Eu não podia fazer um filme meu para a Netflix. Não iam deixar que eu o fizesse assim. Iam dizer-me como queriam que o fizesse.
…não tenho pretensões nenhumas, antes pelo contrário, que os meus filmes sejam êxitos de bilheteira. Pretendo que tenham uma bilheteira honrosa e que tenham, como têm tido, uma grande distribuição internacional. Isso é mais importante do que fazer 600 e tal mil espectadores só em Portugal.
JPN – O que poderiam querer ver alterado?
JC – Queriam uma historinha muito bem contada e muito bem explicada e que se percebesse tudo e mais alguma coisa. Tanto no cinema, como na pintura e na literatura, deve-se deixar ao espectador a função de criar a sua própria história. O que a televisão quer, e as plataformas de streaming não fogem a isso, porque é uma questão de rentabilidade, é que a história seja imposta e seja, em teoria, percebida por toda a gente da mesma maneira. Isso não acontece, mas a ideia é essa.
JPN – Qual é a importância dos festivais para a divulgação do cinema português?
JC – Há festivais importantes e festivais que não têm importância nenhuma. Os importantes são fundamentais para a divulgação do cinema português. Se o meu filme não tivesse estado no Festival de Berlim, não tinha estreado no México, como vai estrear na Argentina e no Uruguai e como já estreou em Espanha, em França, na Holanda e vai estrear em Itália. Coisa que nunca poderia ter acontecido a “O Pátio das Cantigas”.
JPN – Porque é que não podia ter acontecido?
JC – Porque é igual, provavelmente é pior, a qualquer comédia italiana do mesmo estilo. Não teria interesse nenhum para o público italiano.
JPN – Há espaço para que as vozes portuguesas sejam ouvidas lá fora?
JC – Tem havido!
JPN – É o seu caso.
JC – É o meu caso. Sempre foi o caso do Manoel de Oliveira. É o caso do Pedro Costa. O Miguel Gomes ganhou um prémio importante em Cannes.
JPN – Estará a nova geração de cineastas melhor preparada ou mais disposta a enfrentar este desafio de levar o cinema português para o exterior?
JC – Eles tentam e têm levado. O João Salaviza é muito mais novo do que eu e ganhou uma Palma de Ouro em Cannes com uma curta [“Arena”].
JPN – Que mudanças gostaria de ver no cinema português nos próximos anos?
JC – Francamente, não acho que sejam necessárias grandes mudanças. O que acho é que é necessário que o governo de direita não corte a independência do ICA e que a produção do cinema em Portugal, com o pouco dinheiro que tem, continue a existir, como tem existido até aqui. Sabendo que os filmes ditos de autor ou mais pessoais têm mais possibilidade de ter reconhecimento internacional do que os filmes iguais a todos os outros feitos em todo o mundo. Mas o êxito das comédias é transversal. As comédias tipo televisivas são os grandes sucessos desde os países nórdicos até aos Estados Unidos, até França e até Espanha, mesmo na Índia.
JPN – Se Portugal fosse uma tela, que cena gostaria que passasse para que o Mundo pudesse assistir?
JC – Vou à atualidade. A diferença de dimensão da horrível manifestação do Chega e da manifestação de apoio às vítimas. Uma tinha milhares de pessoas e a outra tinha 200 gatos pingados.
JPN – Com alguma esperança?
JC – De que o Chega voltasse aos 4 por cento ou aos 5 por cento que tinha. Com a esperança de mostrar que o populismo e a extrema-direita nunca foram vias para nada. O populismo propõe soluções simples para problemas complicados, ou seja, não são soluções. É encontrar um inimigo, interno ou externo, que catalise os seus apoiantes. O Chega já deixou de ter como alvo prioritário os ciganos e passou a ter a imigração em geral. A solução é expulsá-los. Isto é uma solução simples para um problema complicado, porque sem os imigrantes a economia portuguesa não funciona. A ignorância. “A ignorância é a mãe de todos os males” [François Rabelais].
Editado por Filipa Silva
Este trabalho foi realizado no âmbito da disciplina TEJ-Imprensa – 2.º ano