As transformações de um edifício histórico da cidade são o foco do documentário “Stop. Salas de ensaio para um materialismo histórico”, de Jorge Quintela, cuja anteestreia teve lugar no Porto/Post/Doc deste ano. Dando atenção ao encerramento das lojas em 2023, o filme propõe uma reflexão sobre a emergência do capitalismo e as suas consequências. O JPN entrevistou o realizador.

Foi ainda durante a infância que Jorge Quintela começou a criar a ligação que desaguou em “Stop. Salas de ensaio para um materialismo histórico”, documentário sobre o Centro Comercial Stop que estreou no último Porto/Post/Doc.

O filme procura mostrar as diferentes fases do edifício, das origens até ao encerramento temporário das dezenas de lojas usadas como salas de ensaio por mais de 500 músicos, no ano passado, refletindo sobre a sua existência como espelho da cidade que o envolve.

Natural do Porto, e com apenas mais um ano do que o centro comercial Stop, “desde criança” que Jorge Quintela começou a visitar o espaço, e “desde 2008 ou 2010″ que foi “tendo salas de ensaio lá”, conta em entrevista ao JPN. Essa ligação, marcada por uma “afetividade muito grande”, também “tornou as coisas difíceis”, confessa.

O documentário segue todas as transformações do edifício do Stop: evoca o momento em que era apenas uma garagem modernista da Austin, mostra a sua transformação em centro comercial, a posterior utilização do espaço pelos artistas que lá começaram a ensaiar e, finalmente, o encerramento dessas salas de ensaio em 2023 pela polícia municipal, numa operação motivada pela falta de licenciamento dos espaços e de condições de segurança do edifício.

Foi perante essa situação que Quintela – realizador, entre outros, de “On The Road To Femina”, “O Amor é a Solução para a Falta de Argumento”, “Sobre El Cielo” –  encontrou a abordagem que tomaria: era “fundamental” recuar e obrigar-se a manter alguma “distância” ao realizar, ainda que uma abordagem “informativa” estivesse fora de questão.

“Para mim, mais importante do que o que está a acontecer, é a visão um pouco mais macro do problema”, explicou ao JPN. “Essa distância obrigou-me a pensar num filme de carácter muito mais ensaístico, e ao mesmo tempo conseguir que o filme não estivesse alicerçado só no edifício e que eu falasse também da minha visão da cidade”, afirmou.  Assim, o documentário não recorre a “depoimentos” ou “momentos que sejam narrativos”, apesar de Quintela admitir que estes acabam também por estar presentes, de forma indireta. “Ser informativo seria injusto”, defende, “obrigaria a recorrer a uma série de ferramentas que fariam com que fosse difícil fazer justiça àquele edifício, difícil de perceber estruturalmente certas questões”.

“Stop. Salas de ensaio para um materialismo histórico”, de Jorge Quintela Porto/Post/Doc

Uma reflexão sobre o Porto

O foco na visão da cidade é introduzido, em grande parte, pelo texto que ouvimos durante todo o documentário: excertos da “grande obra inacabada” de Walter Benjamin, o seu livro “Passagens”. Na obra, escrita há quase 100 anos, Benjamin propõe um estudo da vida urbana da época a partir de uma análise às Galerias de Paris, recorrendo ao “materialismo histórico” para explicar o seu estado de declínio.

“Achamos que faria todo o sentido”, explica Jorge Quintela sobre a escolha de incluir os excertos. “A decisão tem que ver com várias coisas, uma delas é que fala da sociedade de consumo”, afirma, dizendo ainda que entre duas situações, a do livro e a do Stop, se verificam “cada vez mais coincidências”, sendo esta uma “relação direta”. “As questões são as mesmas, a reflexão é a mesma, não houve mudanças: daí essa pertinência”, conclui. 

Além disso, Quintela refere também que vê o projeto como uma forma de se “expressar sobre aquilo que é a cidade hoje”, dando-lhe uma “voz para falar sobre a política económica” seguida numa cidade que “está a deixar de ter habitantes”.

O arquivo da funcionária de limpeza

A colagem é a técnica utilizada no documentário, com “85% do filme” a ser composto por fotografias. “Isso permitiu-me recorrer sem grandes preocupações ao arquivo”, revela, apesar de ter encontrado algumas dificuldades neste processo. “Tive muita dificuldade em arranjar imagens do período dos anos 80”, conta Quintela ao JPN. “É um momento que as pessoas guardam com carinho, mas de repente eu não tinha qualquer imagem desse período”, explica, admitindo ter sido surpreendido pela falta de cobertura mediática (com a exceção de anúncios) da inauguração do espaço. A “única pessoa” que conservou este arquivo foi “uma funcionária de limpeza”, conta o realizador. 

“É uma história que para mim tem muitas leituras; perceber que é alguém que fez parte da classe trabalhadora do próprio Stop, que não era proprietária, ainda por cima funcionária de limpeza não diretamente ligada a nenhuma loja, que acaba por guardar essas imagens”, reflete. 

A importância do som

O uso do som é outra das partes a destacar no documentário, e Jorge Quintela considera que essa questão “acaba por ter um papel preponderante” na forma como o filme comunica. “A componente sonora, tanto a composição como o desenho do som”, explica, é “fundamental na sensação da própria dinâmica e ritmo do filme, e tudo o que representa: os momentos de ironia, ou de sensação de nos transportar para o espaço.”  

Quanto aos músicos, que também estão no filme representados, Quintela atribui-lhes a inspiração que teve para o projeto. “Este filme constrói-se do esforço, trabalho e espírito por parte dos músicos”, afirma, rematando que a principal importância do seu trabalho está em “mostrar a capacidade de resiliência de quem permanece lá a ensaiar”. “Eu falo no edifício hoje porque os músicos existem, porque senão não estaria a falar do edifício.”, finaliza.

“Stop. Salas de Ensaio para um materialismo histórico”, de Jorge Quintela Porto/Post/Doc

Projeto impulsionado pelo Working Class Heroes

A relação do documentário com o Porto/Post/Doc, onde teve a sua anteestreia a 27 de novembro, não começou nesse dia. A ideia de fazer “um filme sobre o contexto musical da cidade” já estava a ser preparada quando Jorge Quintela foi convidado a participar, em 2022, no Working Class Heroes, programa do Porto/Post/Doc que convida três cineastas por ano para que, através de um pitching, um deles possa ser financiado para um futuro projeto. Jorge Quintela não foi financiado, mas essa experiência acabou por impulsionar “uma vontade” já existente. “Na altura não fui financiado, mas foi uma forma de me dar mais tempo”, conclui. 

Sobre o próprio Porto/Post/Doc, festival de cinema documental do Porto, o realizador disse ao JPN que considera ser “fundamental haver um festival de documentários na cidade do Porto”, reforçando que é importante haver “espaço de discussão” para além da programação habitual. 

Em “processo de rodagem” em São Tomé e Príncipe está um novo documentário, revela o realizador. Focado em temas que sempre lhe despertaram “curiosidade”, como “a figura dos curandeiros, terapias tradicionais, plantas medicinais” e em explorar o mundo espiritual , este trabalho em curso será uma adaptação de um livro do antropólogo Paulo Valverde.

Editado por Filipa Silva

Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online