O teatro acessível é uma porta aberta à diversidade humana, permitindo que todos possam vivenciar a arte de forma plena. Utilizadores de acessibilidades do TNSJ contam as suas experiências com recursos como o reconhecimento de palco ou a interpretação em Língua Gestual Portuguesa.
Ana Teixeira, Mariana Silva e António Pinto têm uma coisa em comum: todos eles frequentam o Teatro Nacional São João (TNSJ), palco, em anos recentes, de novas experiências ao nível das acessibilidades. A pensar nas pessoas com deficiência auditiva e visual, o TNSJ disponibiliza hoje recursos como momentos de reconhecimento de palco ou sessões especiais com audiodescrição, com programas de sala em braille ou com a presença de um intérprete de Língua Gestual Portuguesa. Quem usufrui dos recursos agradece, embora também sublinhe que há ainda muito por fazer.
Ana Sofia Teixeira, psicóloga de 36 anos, enfrenta uma deficiência congénita e genética que provoca a perda progressiva da visão. Foi em contexto escolar que o teatro surgiu na vida de Ana, uma paixão que perdura até hoje. Devido à sua condição, tornou-se uma utilizadora assídua das peças com audiodescrição. No entanto, o fascínio pelo teatro leva-a a assistir também a peças sem este recurso. “Até ao final do ano, vou assistir a três peças de teatro e nenhuma delas vai ter audiodescrição”, confessou a psicóloga ao JPN, numa entrevista realizada em finais de outubro.
Ana Teixeira reconhece que “se tem feito um bom caminho ao nível do teatro acessível”. Contudo, apesar das “entidades terem a sensibilidade de disponibilizar as acessibilidades”, acredita que “não basta disponibilizar o recurso, é necessário saber utilizá-lo”. A psicóloga nota, por exemplo, que “colocam as pessoas com deficiência visual no início das filas, ao pé de colunas de som. Ora, elas não veem, então, acho que tem de haver o cuidado de colocá-las num lugar mais adequado na sala”, nomeadamente “o mais longe possível das colunas”. Dada a existência do auricular de audiodescrição, o elevado volume das colunas dificulta a estes espectadores a conciliação entre as informações do palco e as fornecidas pela audiodescritora.
No que diz respeito ao reconhecimento de palco, Ana sublinha a importância deste recurso: “ajuda-nos a perceber realmente o cenário e a identificar as vozes das personagens”. Ana Sofia Teixeira enaltece o valor da audição: “é aquilo que os meus sentidos conseguem captar”, conta. Os odores e a temperatura da sala são outras sensações às quais a espectadora presta atenção.
Ana Sofia Teixeira vê no teatro e na cultura uma fonte de inspiração, “é uma excelente forma de refletirmos sobre determinados assuntos, desfrutar, relaxar e sair da rotina”. Convicta de que “há muito bom teatro que se faz neste país”, a psicóloga alerta para a falta de divulgação e de oferta cultural, sublinhando que esta arte continua a não ser financeiramente acessível a todos.
Mariana Silva, de 19 anos, é estudante do primeiro ano de Educação Social na Escola Superior de Educação do Porto. Cega desde a nascença, vive com uma enorme paixão pelo teatro, uma constante em toda a sua vida. No secundário, quis pertencer a este mundo e decidiu entrar na ACE-Escola das Artes. Para enriquecer as suas competências, a estudante decidiu investir em vários cursos de representação, entre eles, o clube dos Sub-18 do Teatro Carlos Alberto, um dos três espaços do TNSJ (ver caixa). Este proporcionou-lhe novas ferramentas e inspirações para crescer no mundo do teatro. “Não era sempre tudo perfeito, porque as pessoas não estão habituadas [à presença de uma pessoa cega em palco], mas a vontade de adaptar era muito grande, então, isso já é incrível, já é um passo gigante”, evidencia Mariana.
A jovem salienta que o reconhecimento de palco e a audiodescrição são indispensáveis para as pessoas cegas. O reconhecimento de palco “ajuda a saber quem são os atores”, a “perceber o cenário”, e ao “tocar em algumas coisas”, permite “ter uma imagem mais construída”. Por sua vez, a audiodescrição “ajuda no espetáculo em si”, uma vez que, ao descrever as ações visuais dos atores, a audiodescritora permite “um entendimento maior do que estamos a ver”.
Mariana Silva acredita que existiu uma evolução positiva no que diz respeito a peças com acessibilidades, contudo afirma “que ainda falta um longo caminho a percorrer”.
O lugar da LGP no palco
Entrevista realizada com ajuda da intérprete Vanessa Ramos.
António Pinto, de 54 anos, é professor de Língua Gestual Portuguesa (LGP) há 23 e, atualmente, leciona na Escola Artística Soares dos Reis. António nasceu ouvinte, mas ainda na infância perdeu a audição, não sabendo os motivos até hoje.
Apesar de ir com frequência ao teatro, António não aprecia a experiência em si, dada a dificuldade em distribuir a atenção: “Ou olho para o intérprete ou olho para a peça e como estão em cantos diferentes, em simultâneo, é muito difícil compreender”. Defende que o mais importante é que estes focos de informação estejam numa área próxima para não ter de fazer “uma dança com os olhos”.
António Pinto também realça a componente visual uma vez que para o público surdo “a parte visual é aquilo que dá informação. Caso contrário, não há conceito”. O professor sublinha também a importância da luminosidade durante o espetáculo.
Ir ao teatro “é importante”, mas para a comunidade surda ter mais interesse na arte, a solução passa pela inclusão do intérprete no espetáculo: “É a ferramenta mais fácil para mim. Visualmente é muito rico, muito estimulante”. Considerando que esta prática ainda não é muito observada, salienta a necessidade de haver LGP, “a tradução acaba por ser uma salvação. Sem intérprete, não é percetível, não é compreensível”.
LGP: para a comunidade surda e o público geral
Ana Margarida Brito, de 31 anos, é intérprete de LGP em vários contextos, nomeadamente no do teatro. A ideia inicial não era formar-se em LGP, no entanto, apaixonou-se pela língua, pela comunidade e pelo curso. Preparar a interpretação de uma peça de teatro “passa por ler o texto, assistir a ensaios e procurar, muitas vezes, vocabulário para o qual não temos gesto”, conta ao JPN.
Além disso, explica que perante uma peça que contenha português arcaico, por exemplo, é necessário perceber o que este significa, para que a comunicação seja clara. “Muitas vezes, é pelo significado que passamos a mensagem e não tanto por uma tradução literal”, explica a profissional.
Em peças de longa duração, há a necessidade de trocar o intérprete. “O ideal é que as trocas ocorram sempre com o menor ruído visual possível, ou seja, em momentos que não haja discursos, em que haja mudanças de cenário, ou em algum momento de escuridão”, de forma a evitar perdas de informação.
Para transmitir emoções, a tradutora nota que a expressão facial e corporal são fundamentais para complementar o seu trabalho. De maneira a que este seja bem sucedido, é imprescindível que as intérpretes assistam previamente a um ensaio geral, para conseguirem “perceber o que que os atores realmente querem passar. E isso depois traduz-se na interpretação da peça”, remata.
Relativamente à dificuldade sentida pela comunidade surda em dividir a atenção, Ana Brito admite que “o ideal seria estar envolvida” na peça, porém, nunca passou por essa experiência. Não sendo essa a prática comum, essencial é, na sua opinião, “incluir o intérprete num espaço mais perto da cena, porque, muitas das vezes, está no fosso, o espaço entre o palco e a plateia”, local de fraca visibilidade para quem assiste.
“No mundo ideal, todas as peças de teatro teriam pelo menos uma récita com interpretação”, no entanto, esta prática ainda é pouco adotada, por causa da “limitação de orçamentos, porque para o bem ou para o mal, acaba por ser mais uma despesa para o teatro ou para o grupo”, lembra Ana Margarida Brito.
A tradutora aponta como maior desafio da sua função a transmissão fiel da mensagem, sem distorcer o conteúdo original. “Uma coisa é o que eu interpreto, outra coisa é o que outra pessoa pode interpretar”, justifica. Em qualquer caso, considera gratificante “poder tornar o teatro acessível” e defende que a interpretação em LGP é também “um meio de sensibilização e consciencialização para a comunidade em geral”.
Investimento e feedback do público são cruciais
Teresa Batista é produtora executiva no centro educativo do TNSJ há seis anos, instituição à qual está ligada há quase três décadas. O teatro surgiu na sua vida em 1991, quando entrou na ACE. Atualmente, é aluna do 3.º ano da licenciatura em Tradução e Interpretação em Língua Gestual Portuguesa, na ESE-IPP. Foi na altura da pandemia que decidiu aproveitar para fazer formações na área das acessibilidades. Não saber como comunicar com os alunos surdos que recebia no contexto das visitas de escolas motivou-a a inscrever-se no curso.
O TNSJ integra o Teatro Carlos Alberto (TeCA) e o Mosteiro de São Bento da Vitória (MSBV). O TNSJ e o MSBV têm edifício classificados como património nacional, o que constrange a realização de obras de acessibilidade. Para minimizar os constrangimentos, foram feitas adaptações, sendo exemplo uma rampa na entrada do TNSJ e a existência de lugares para pessoas com mobilidade reduzida. Para o MSBV, estão previstas obras para melhorar acessos. O TeCA é o edifício mais acessível, foi pensado quando foi reconstruído há alguns anos.
A comunidade surda, contudo, adere ainda pouco ao teatro. O público surdo é maioritariamente escolar. Teresa refere que vai lentamente aumentando, “mas é um trabalho de andar à pesca.” “É muito frustrante ter um espetáculo com uma acessibilidade e não ter público para usufruir”, desabafa. A técnica compreende que a comunidade surda se sinta desmotivada a ir ao teatro, dada a sua dificuldade em dividir a atenção entre o espetáculo e o intérprete. Para o público surdo, como António referiu, o ideal seria que o intérprete estivesse envolvido na peça, mas Teresa Batista esclarece que esta é uma situação pouco observada e difícil de trabalhar por poder interferir diretamente com o que ocorre no espaço cénico.
No que diz respeito ao público cego do Teatro Nacional, este “é mais fiel”, diz ao JPN Teresa Batista. A profissional expõe que quando é divulgada a programação dos espetáculos, a comunidade cega reserva bilhetes para todas as récitas que possuam audiodescrição e, por consequência, reconhecimento de palco. O público cego valoriza de tal forma a sua experiência, que faz questão de marcar presença mesmo nas peças que não possuem estas acessibilidades, segundo a responsável pelo centro educativo do TeCA.
Quando questionada sobre o feedback do público, Teresa Batista declara que “é crucial”, especialmente quando se testam novas tecnologias de acessibilidade. “Em maio, tivemos um software experimental que incluía legendagem, audiodescrição e LGP e convidamos várias pessoas que utilizam os recursos para fazer parte desta ação”. A opinião do público-alvo foi essencial para avaliar a experiência.
Para dar luz a todas as iniciativas pretendidas são necessários investimentos consideráveis. “O Centro de Custos e Acessibilidades tem estipulada uma verba anual. É um orçamento que tem tido alguns constrangimentos, mas tem dado para dar resposta a todas as necessidades”, analisa a produtora. Explica também que as receitas provêm principalmente do Estado, da bilheteira e de atividades do centro educativo.
De forma a diminuir a despesa anual com as acessibilidades, o TNSJ pretende adquirir equipamento de audiodescrição. Teresa Batista confessa: “queremos fazer um investimento, porque, senão, em cada espetáculo, temos que alugar material e é dinheiro desperdiçado”.
Mesmo com os desafios financeiros, o Teatro Nacional tem como prioridade satisfazer as necessidades do público e procura que “todas as produções da casa tenham uma récita com língua gestual portuguesa, audiodescrição e, consequentemente, reconhecimento de palco”, salienta a técnica.
Para além de disponibilizar recursos para um acompanhamento mais inclusivo das peças de teatro, o centro educativo tem também à sua responsabilidade cursos e clubes de teatro. Nestes já receberam pessoas com deficiência visual e auditiva. A técnica conta que “cada adaptação é cuidadosamente pensada”. Teresa acompanha pessoalmente alunos surdos, dando suporte e interpretação nas atividades. “Para os alunos cegos, há exercícios de confiança e dinâmicas que envolvem todos os participantes”, descreve.
Teresa Batista mostra-se satisfeita com o trabalho feito até agora. Tem como desejo “não obrigar as pessoas a ter que escolher uma récita em específico por falta de recursos” e ambiciona um teatro cada vez mais acessível, onde a inclusão não é apenas uma meta, mas uma realidade constante.
Este artigo foi realizado no âmbito da disciplina TEJ II – Online
Editado por Filipa Silva