O impacto da nova Ponte Ferreirinha na freguesia de Massarelos é discutido mensalmente no Museu do Carro Elétrico. O JPN acompanhou a reunião de janeiro do “Observatório - Conversas debaixo da Ponte”, que decorreu na terça-feira (7).
Na tarde de terça-feira (7), o tempo estava pouco convidativo a saídas. “Sempre com chuva… Achamos que não vai aparecer ninguém com o tempo assim e, afinal, temos sempre gente a querer participar”, comenta Inês Ferreira, diretora do Museu do Carro Elétrico (MCE), enquanto chegam mais participantes à quarta sessão do “Observatório – Conversas debaixo da Ponte”. A questão orientadora das sessões, realizadas sempre na primeira semana do mês, tem sido o que implica para este local de Massarelos a construção de uma nova ligação entre Gaia e o Porto.
A obra em causa é a Ponte D. Antónia Ferreira, a Ferreirinha, que representa uma parte fundamental da Linha Rubi (ou H). O novo troço da Metro do Porto vai ter 6,4 quilómetros e oito estações, entre Santo Ovídio e a Casa da Música. O uso da estrutura é reservado ao metro e à circulação pedonal e de bicicletas, tópico que, segundo contam à reportagem do JPN, suscitou alguma discussão numa sessão anterior.
A empreitada teve início no primeiro semestre de 2024 e prevê-se que esteja concluída até ao final de 2026. São, no fundo, quase três anos de transformação que representam um “profundo impacto no território de Massarelos, ao nível urbanístico, de mobilidade, ao nível social, de alteração da paisagem e imaginários comuns”, como explica o MCE. Se, por um lado, esta entidade nada tem que ver com a Metro do Porto, responsável pela obra, por outro, é um ponto de referência com peso para as gentes locais e está próxima duma frente de obra.
Neste sentido, o museu desafiou a Associação de Moradores de Massarelos e o programa Habitar – inserido no Centro de Estudos em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP) – a promoverem, junto da comunidade envolvente, um projeto de diálogo e reflexão sobre o passado, o presente e o futuro da área: o “Observatório – Conversas debaixo da Ponte”. Os verbos “Conhecer”, “Debater” e “Fazer” são os eixos de ação do projeto e resultam numa discussão de ideias, seguida de uma saída de campo para dois dedos de conversa com os residentes, trabalhadores e estudantes da zona de Massarelos mais afetada pela construção da nova ponte.
O grupo organiza-se a um canto, disposto em círculo, de modo a que todos os presentes consigam ver a apresentação que Laís Pettinati, convidada para esta conversa. A arquiteta a fazer um doutoramento na FAUP, estuda, desde 2021, quais são os atributos e valores do território do Vale de Massarelos na perspetiva das pessoas que ali vivem e/ou trabalham. Qual o antes e o depois da ponte e que valor social e económico tem este território são alguns dos temas da pesquisa, em grande medida, feita com base em observação e diálogo com os gentes locais.
O grupo de participantes destaca a ruralidade que ainda se sente neste território. Apesar da evolução urbana, “o terreno é ainda muito virgem, talvez pela complexidade em construir nele”, sublinha a arquiteta.
Entre as principais falhas apontados pela população que respondeu ao estudo de Laís Pettinati estão a falta de serviços, como uma caixa multibanco – a única que existe na zona marginal da freguesia está no interior de uma superfície comercial, o que significa um horário limitado de acesso – e de uma farmácia ou de um espaço de convívio, como um parque infantil. Também a dificuldade de ligar as cotas baixa e alta da freguesia, acentuada pela falta de cobertura de transportes públicos, a necessidade de requalificar os percursos pedonais, difíceis de percorrer, sobretudo, para a população mais envelhecida, a especulação imobiliária, o estacionamento indevido e a falta de interesse do município em fazer mudanças são os aspetos a melhorar mencionados pela maioria dos inquiridos pela investigadora brasileira.
Quanto ao que mais gostam, os massarelenses dão o primeiro lugar à paisagem – “as vistas”, seguindo-se a proximidade com o rio e a tranquilidade.
Um dos temas mais desenvolvidos ao longo da conversa foi a construção de um elevador, elemento que faz parte da obra da nova ponte. É visto como um elemento muito útil pela população local, que deposita esperança nesta infraestrutura, para enfrentar melhor o período de obras. A questão que mais se impõe nas conversas é: “Será que vai acontecer o mesmo que com a Ponte da Arrábida?”, onde os elevadores funcionaram durante um curto espaço de tempo.
Diário de campo em forma de jornal de parede
A equipa do MCE criou um “jornal de parede” para expor as opiniões, registos fotográficos e até poemas das pessoas com as quais se cruzam em cada reunião.
Enquanto lancha na maior superfície comercial daquela zona, João Rodrigues é o primeiro a ser interpelado pelo grupo na saída de campo. O chá e as torradas têm de aguardar um pouco, porque se sobrepõe a vontade de responder às perguntas do grupo do Observatório. Diz, repetidas vezes, as expressões “as pessoas” e “o bairro” ou “o bairrismo”, sendo esta a principal mais-valia da zona, a par da paisagem, para o massarelense de gema.
Pensando em retrospetiva e no presente, João salienta que, com o passar do tempo, Massarelos tem vindo a descaracterizar-se, a perder “a riqueza de comunidade”. “Muitas pessoas que moravam aqui estavam em casas muito antigas e degradadas e foram redistribuídas por outros bairros do Porto. Já vi muita gente que me era querida a sair daqui”, lamenta.
Ainda assim, diz que há muito pouco que gostaria de ver mudar nesta zona: “talvez algumas infraestruturas apenas, que já são muito boas, mas, se puderem ser melhores, que o sejam”. Este residente espera que, no futuro, o “bairrismo” se mantenha. Sobre a Ferreirinha exclama: “se vem para acrescentar, que venha a ponte!”. “Poderia era ter outro nome. Gostava muito que se chamasse Ponte da Boa Viagem, porque é a santa desta zona, da capela, da rua”, opina.
Em resposta, Manuela Lisboa, membro da Associação de Moradores de Massarelos, lembra que a ponte serve as duas margens do rio, pelo que “não pode ter só o nome que fica melhor para um lado”. “Para além disso, o nome da ponte foi a votação pública”, acrescenta.
Apesar de residir em Gaia, Manuela Lisboa participa na iniciativa, pois já trabalhou na cota superior de Massarelos e faz parte da Associação de Moradores da freguesia. Partilha que, quando era ainda criança, tendo crescido noutra região, quando visitou o Porto e viu várias pontes, até se perguntou porque eram tantas. Hoje, percebe que, à parte questões de mobilidade, “é preciso criar pontes. Porto e Gaia são como um só”. Para Manuela, “as pessoas são a raiz dum local”.
António Braga foi a segunda pessoa a ser abordada pelo grupo do Observatório. É porteiro de um prédio habitacional há 18 anos. “Comecei a trabalhar aqui depois desta zona ter sido renovada e arranjada, então já a conheci com melhor aspeto”. Vê com bons olhos a construção de uma nova infraestrutura que incentiva o uso de transportes públicos, no entanto, lamenta a retirada da bomba de gasolina onde estão a ser instalados os pilares da ponte, uma vez que “era muito útil” e um “espaço de convívio” para a população.
Saídas de campo feitas, perto das 17h00, os dois grupos nos quais os participantes se tinham dividido regressam ao MCE para partilhar e refletir sobre as informações recolhidas.
Filme sobre a nova ponte (está) em curso
A sua presença, acompanhada por uma câmara de filmar, é quase inevitável de reparar, ainda que peça aos participantes do Observatório para fingirem não o ver. Filipe Martins, professor de cinema na Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD) do Politécnico do Porto, é a pessoa em causa. O docente, reside muito perto da frente de obra na marginal de Massarelos. “O primeiro sentimento que tive quando soube que iam construir a ponte aqui foi egoísta”, confessou. “Pensei: ‘Vou perder esta vista para o rio e lá se vai o nudismo no terraço’”, gracejou. No entanto, concluiu que, uma vez que não pode “lutar contra”, tenta compreender. Assim, aliou o facto de ser realizador ao de residir em Massarelos e tem filmado a evolução da empreitada e as reações das pessoas à nova construção.
Começou a gravar as “Conversas debaixo da Ponte” na reunião de dezembro. O filme conta já com mais de uma hora e está a ser construído em simbiose com a obra “A Muralha”, de Agustina Bessa-Luís, outrora residente no Vale de Massarelos. Vão poder ser ouvidos excertos deste romance, que, entre os temas desenvolvidos, inclui a resistência à mudança.
O “Observatório – Conversas debaixo da Ponte” teve início em outubro e reúne mensalmente. A participação é gratuita e aberta a todos, sem necessidade de inscrição. O próximo encontro está agendado para o dia 4 de fevereiro, terça-feira, às 15h00, no Museu do Carro Elétrico. “Em caso de dúvida com a data, é um dia em que chove”, comentou entre risos um dos participantes, no fim do diálogo. Está planeado convidar um engenheiro para explicar a construção de uma ponte na conversa de março. Três meses depois, outro especialista numa área que diga respeito à compreensão do que implica esta obra deverá marcar presença no Observatório.
Para mais informações, pode consultar a página de Instagram do Museu do Carro Elétrico.
Editado por Filipa Silva