O “Cúmplice do cupido” esteve à conversa com o JPN sobre os seus projetos, o seu processo criativo, Gondomar e as histórias por detrás da sua música, nas quais o romance transcende géneros e gerações.
Escritor e intérprete de canções, João Não esteve em todo o lado em 2024: desde os primeiros singles do novo grupo com Mike El Nite e Lil Noon, “Os Tais”, à ida ao NOS Alive com Lil Noon, até ao novo single em nome próprio “Queria que fossem flores”, passando pela escrita do single “Desliza” de Ana Moura e a participação em “Jorge Micael” de David Bruno. Mas o gondomarense de 25 anos não se ficou apenas pela escrita, levou também este ano a festa em que é DJ residente nos Maus Hábitos, Bar Dançante, ao Rock in Rio e ao Nunca Antes Visto, em Lisboa.
Foi no parque de merendas de Gondomar, lugar onde nasceram projetos marcantes da carreira de João Não, que o JPN esteve à conversa com o artista sobre estas aventuras. “Cúmplice do Cupido” é o nome do próximo EP do jovem de 25 anos e tem data de lançamento marcada para 16 de janeiro. João Não vai apresentar o projeto no dia de S. Valentim nos Maus Hábitos.
JPN: Qual foi o projeto que mais gostaste de fazer até agora?
João Não (JN): Penso com mais carinho na experiência do primeiro projeto [“Terra Mãe”, álbum editado em 2021], porque foi feito com maior liberdade. Estávamos só a fazer por fazer, porque dava gosto. Aí é que está o expoente da independência: é quando estás nesse ponto em que estás a trabalhar para ti e só a explorar. Depois, já sentimos a necessidade de lançar as coisas e de trabalhar mesmo.
Na altura não havia uma meta, não havia um foco, nós fazíamos aquilo porque achávamos que tínhamos jeito e gostávamos. Esse é um bocadinho mais especial por causa disso. Era um entusiasmo diferente e era uma energia diferente da forma como fazíamos. Como também formalizamos um bocado o processo de fazer as coisas e fomos sempre procurando formas diferentes, todos trazem um gosto diferente de se fazer. Se calhar o primeiro já um bocado nostálgico.
JPN: Como é que começou a festa do Bar Dançante com o Mike El Nite nos Maus Hábitos?
JN: Fui eu e o Mike, um bocado do lado do conceito, de ideias e de música e a Marta e o Slim Cutz mais do lado da organização e do que eles já estavam habituados a fazer, embora eles mexam também nessa parte conceptual. Sabíamos que havia espaço para uma festa do género no Maus Hábitos, sabíamos que tínhamos curiosidade em fazê-la. Um dia, encontramo-nos no backstage de um concerto, falámos disso por alto e acabou por se formalizar e conseguimos. Não sei ao certo quanto tempo, mas ainda foram alguns meses desde que tivéssemos a ideia, até fazermos a primeira edição[em 2021].
JPN: Como é que é ver esse projeto que celebra a música popular portuguesa a crescer?
JN: É uma experiência um bocado única. Tivemos sorte, pela forma como pegamos no conceito e pela forma como começamos a trabalhar com certos artistas. Temos o prazer de assistir a algumas coisas, tanto no contacto como na reação às festas, tanto da parte dos artistas como da parte do público.
A festa está a crescer, a marca está a crescer. As expectativas não estavam muito elevadas, mas elevaram-se um bocado quando começamos com uma festa cheia. Estamos a assistir ao projeto desde aí, como já começou assim, vai subindo de uma forma mais calma. Já é a terceira vez que vamos a Lisboa [ao Nunca Antes Visto, em novembro, depois de realizada esta entrevista], mas das outras vezes foram situações diferentes. Agora vai ser a primeira assumida, para tentarmos estabelecer a festa lá. Há muita gente que pede, e nós só mais recentemente é que sentimos esse apelo mais recorrente das pessoas em Lisboa, para que fôssemos lá.
JPN: Há um certo binómio entre a música popular e música urbana. Como é que é trabalhar com esses sons?
JN: Nós metemo-nos em estúdio sem grandes rodeios e sem grandes muros à nossa volta, no que toca a pensar e a estruturar musicalmente. Ao mesmo tempo, também não vamos com muitas ideias, nem com muita expectativa em relação a géneros específicos. Trabalhamos um bocado com o que nos corre bem. Dá jeito ter um background de vários géneros e várias inspirações. E dá jeito trabalhar com muitos artistas e ter o trabalho de um que trabalha com muita gente, pois dá-se que ele consegue produzir muita coisa diferente, já que vai trabalhando esses engenhos várias vezes e quase todos os dias.
Nós trabalhamos assim, sem tentar estar enclausurados, não digo isto com grandes pretensões, porque foi assim que nos habituámos a fazer.
JPN: Quando escreves, também pensas no género musical? No que é que vai sair?
JN: Atualmente, escrevo mais em estúdio, já diretamente. À partida já tenho a base, o instrumental, já estou a escrever por aí. Vou escrevendo para ser fiel a mim, não depende muito do género. A sonoridade pode mexer um bocado na forma como digo certas coisas, na forma como abordo certos temas, mas à partida não mexo muito com isso. O que eu escrevo é o que eu faço com mais facilidade.
JPN: Como é que surgiram as parcerias com a Ana Moura? Como é escrever para ela e ver esse trabalho sair?
JN: Há dois anos, lembro-me de que uma vez a Ana fez uma playlist e colocou lá uma música minha. Foi aí que percebi que ela estava atenta ao meu trabalho. Quando me cruzei com ela em duas ocasiões, percebi que talvez houvesse algum interesse em trabalharmos juntos.
Depois, um dia, fomos convidados – eu e o Noon – para ir lá. Fomos e fizemos o nosso trabalho. Não era para alterarmos muita coisa, mas sim para levarmos a nossa fórmula, ainda que trabalharmos fora da fórmula acabe por ser a nossa fórmula. Partilhámos ideias, estivemos lá dois ou três dias e acabámos por criar este tema que ela lançou agora [“Desliza”]. E sabe bem. É uma reação que ainda não sei bem como processar, porque nunca tinha passado por isso antes.
É algo que demora um bocado mais para assimilar. Não tive uma grande reação no momento, talvez porque não reconheço logo o peso dessas coisas. Apesar de não ter havido muita distância entre o momento em que fizemos a canção e o seu lançamento – foram alguns meses – tive tempo suficiente para me habituar à ideia de que aquilo ia sair. Eu sabia que ia sair, então, não foi propriamente uma questão de ansiedade. Foi mais uma reação prolongada, e agora estou à espera de continuar a perceber o impacto disso. Estas coisas têm significado, mas, a nível prático, demoram algum tempo para mostrar se funcionam ou não.
JPN: O que é que sentes em relação a escrever? Como é que a escrita funciona para ti a nível profissional e pessoal?
JN: Muitas vezes é só uma ajuda para expressar algum tipo de coisas, lidar com algumas emoções e ideias, com alguns pensamentos. Acabo por escrever muita coisa por motivos variados. Embora já não escreva tanto, ainda vou tentando. De vez em quando, vou escrevendo algumas coisas – mais texto corrido. É uma ferramenta bastante útil e fico contente por ter começado a escrever desde cedo. A escrita safa-me em muitas situações.
Às vezes, é só um momento de limpar as ideias, de pôr a limpo as coisas que me estão a criar alguma ansiedade e nervosismo, de torná-las mais claras. Eu digo “escrever” assim de uma maneira abrangente. Às vezes, uso a criatividade e a arte como um refúgio para retirar-me de algum dia que possa estar a ser mais aborrecido ou alguma coisa que me possa estar a chatear. No momento da escrita vou gostar mais do que estou a fazer.
Eu digo escrita, porque as coisas acabam por aparecer escritas, mas, na verdade, na maior parte das vezes eu nem escrevo. Há muitas letras que acabo por transcrever. E é isso que me entusiasma também. Muitas vezes dou por mim mesmo entusiasmado, e é uma das melhores sensações: continuar a ter entusiasmo com algumas ideias. Não passou muito tempo, não tenho uma carreira longuíssima, mas, tendo em conta que comecei a escrever desde muito cedo, é bom ainda ter essa satisfação.
[Falar de Gondomar] é uma forma de destacar as pessoas que estimo e os sítios que gosto.
JPN: Preferes por isso estar um pouco por trás dos projetos?
JN: Gostava de chegar a uma altura em que pudesse viver da escrita. Não me importava nada. Mas também nunca quis. Andei uns tempos a lutar contra a ideia de expor-me mais cá fora, de escrever, cantar mais e lançar mais músicas. No início, também foi um processo um bocado mais lento.
Quando me convidaram para o primeiro concerto, um dia antes, achava que não queria e que ia ter uma crise de ansiedade em cima do palco. Mas havia também um bichinho que me criou um interesse, não quis falhar às pessoas e fui dar esse concerto. Agora já estou um bocado habituado a ser frontman. Não diria frontman a sério, porque ainda não tenho nada a solo que me pudesse colocar nesse lugar de destaque, mas já me habituei um bocado a fazer as coisas por mim, a cantar por mim.
Gostava de me estabelecer a escrever e a trabalhar com outros artistas, mesmo a nível conceptual, não só de escrita e de ideias. Ao nível artístico, gostava de explorar bem mais isso. Para ter outros sítios onde me agarrar e me sentir mais confiante nessa ideia de viver do que queria e não ter que estar a procurar um emprego, mais cedo ou mais tarde.
JPN: O que é que te leva a falar de Gondomar nos teus projetos?
JN: Eu nasci em Massarelos, mas vim para Gondomar a seguir. A verdade é que não vejo outra forma de fazer as coisas. Acho que há uma certa demonstração de apreço pela terra pelos artistas, que foi conquistado. Antes as pessoas diziam mais que eram do Porto do que de Gondomar.
Houve uma altura em que eu fiz o secundário em Gaia, depois ainda tentei ir para a faculdade em Lisboa, mas não funcionou. Nesse momento, dei por mim a gostar ainda mais de Gondomar e foi isso que me ajudou a criar mais a vontade de representar a minha terra. É o que faz sentido. Ao mesmo tempo, de um ponto de vista mais de acordo com a indústria, é um mercado um bocado mais aberto do que se estivesse a tentar representar o Porto ou o país. É a minha terra.
[Falar de Gondomar] é uma forma de destacar as pessoas que estimo e os sítios que gosto, onde estou habituado a estar. As pessoas vão me reconhecer, ficar mais contentes e sentir mais esse orgulho. Partilhamos esse orgulho da terra. É uma forma de estar em contato direto com algumas pessoas, criar uma intimidade maior. Porque Gondomar, apesar de ser grande, não tem assim tanta população. É uma nota de individualidade, acredito.
Gostaria de ter mais reconhecimento na minha terra. Não é de todo dos sítios onde eu sou mais reconhecido. Por um lado, ainda bem, porque se o reconhecimento começasse a ser muito aqui dentro, ia ser mais difícil lidar com ele. Por outro lado, gostava de ser mais reconhecido, de ter mais oportunidades. Gondomar tem um som muito próprio. É sempre uma adição interessante.
Local de encontro entre amigos, foi no parque de merendas de Gondomar que se originaram alguns dos temas de João Não. Foto: JPN
JPN: Tu escreveste músicas aqui no Parque de Merendas?
JN: A primeira vez que me quiseram pôr em frente a um microfone mesmo a sério, para gravar uma música, nós estávamos aqui. Estávamos a ouvir uma música qualquer, instrumental, e eu comecei a cantar outra música por cima. Estávamos aqui até à hora de jantar. Isto foi por volta de setembro de 2018, se não me engano. Ele disse: “Eu vou jantar a casa, vou fazer um beat.” Vocês jantam cada um na sua casa, depois aparecem aí no final do jantar. Quando eu apareci lá, ele já tinha quase tudo feito, e eu gravei ali a primeira parte da música. Depois ainda gravamos um vídeo, à beira da biblioteca. E então, é um sítio que tem essa particularidade, e que também significa mais por causa disso.
Entretanto, houve outras coisas que partiram daqui. Acho que posso dizer que o Danceteria Love também partiu um bocado daqui, porque nós estávamos aqui todos num churrasco. Já houve outras ideias que eu partilhei aqui, que acabaram por ir parar em músicas. Houve uma altura em que passávamos aqui muito tempo, agora já nem tanto. Como era um lugar de encontro nosso, também acabava por ser um lugar de criatividade. A primeira faixa que eu lancei – na altura ainda não era a sério, mas acabou por se tornar mais sério por causa disso -, foi iniciada aqui.
JPN: E acreditas que, por seres artista em Portugal, tens fazer várias coisas ao mesmo tempo?
JN: Sim, é o contexto, mas também não me imagino a ser artista noutro lado qualquer. Tenho que me adaptar um bocado ao contexto, embora haja artistas que são muito mais metódicos, perfeccionistas e mais calmos na forma como apresentam, acaba por resultar também. Aqui o importante – e também uma habilidade que é preciso ter – é saber olhar para as oportunidades e saber reconhecê-las e aproveitá-las. E as oportunidades aparecem de forma diferente para pessoas diferentes.
Eu sinto que, do meu lado, isso cria um bocado a necessidade de me colocar em certos sítios, quanto mais não seja para tentar criar as oportunidades ou ajudar a criá-las.
JPN: Como está a ser a receção d´”Os Tais”? A nível de entrevistas, mas também a nível do público, vão-te dizer alguma coisa sobre isso?
JN: A reação ao projeto (Os Tais) cruzou-se um bocado com a reação à festa, e nós tivemos a felicidade de apresentar o tema na festa. A música saiu num dia e a festa foi no dia seguinte. Apresentámos e sentimos que essa apresentação nos deixou contentes e com uma boa sensação, porque já havia muita gente que sabia, ou que não sabia, mas estava a tentar saber e notava-se que as pessoas estavam entusiasmadas com o tema. Tivemos essa sorte. E então, já esperávamos que as pessoas que são fãs da festa fossem fãs da música. Essa que se calhar seria uma das principais missões, parece que se vai traduzindo com sucesso, porque ainda estamos a trabalhar para saber realmente se funciona. Estamos a colher reações, mas praticamente positivas, do que me apercebi.
Agora estamos a preparar mais algumas coisas, mas esperamos em breve poder dar notícias mais concretas. Para já, não tenho nada muito concreto, também para não cair em enganos, mas estamos a trabalhar para ter mais informações até ao final do ano, se tudo correr bem.
JPN: Tens algum conselho que darias, talvez a pessoas que estão agora a começar, em Portugal e em Gondomar?
JN: Eu ainda me aconselho muito, ainda ando à procura de muitos conselhos para mim, antes de falar para os outros, mas acho que principalmente diria para aproveitarem o início. Embora ainda não tenha descolado muito daí, sinto que muitos artistas acabam por sentir alguma falta, e alguns até vão efetivamente à procura dessas sensações.
Explorem o que têm, vão explorando várias coisas para descobrirem o que vos dá mais gosto e satisfação. Trabalhem sem grandes caixas, sem grandes muralhas à volta, criativamente. Tentem colocar o nome em mais sítios possíveis e façam-no por gosto, especialmente, e com identidade. Olhem muito para dentro, não olhem tanto para fora, mas aprendam a ler as coisas que vêm de fora e interpretem-nas dentro. Não caiam muito em inspirações mais óbvias. Claro que também faz parte, e é útil, a certo ponto, estimular as coisas que nós gostamos de ver e ouvir, mas também saibam traduzir isso para criar uma identidade artística.
Ana Moura e David Bruno foram alguns dos artistas com quem João Não trabalhou em 2024. Foto: JPN
JPN: Qual é que achas que é a relação entre música e política, tanto para ti como de forma geral?
JN: A política diz respeito a todos nós. Faz parte de todos e temos essa responsabilidade, a partir do momento em que assumimos que somos pessoas adultas e responsáveis. Mesmo assim, não sinto grande necessidade de colocar uma presença política evidente na minha música. Não tenho essa intervenção direta como já me perguntaram ou sugeriram que tivesse.
Não sinto essa necessidade porque, no fundo, acredito que a liberdade artística é política. A forma como fazemos e criamos, e até como nos apresentamos ao mundo, tem um lado político. Mas é diferente da intervenção explícita. Claro que, em algumas situações, adoto uma postura mais interventiva, quando acho que faz sentido. No entanto, essa relação com a política na música é algo que trabalho em mim próprio e que muda com o tempo.
Há alturas em que não consigo estar tão atento ou presente, porque tenho o privilégio de me poder distanciar de certos assuntos quando preciso. Tento, ainda assim, manter uma presença política, porque isso também faz parte da educação que tive e da forma como vejo o mundo. É uma responsabilidade que nos diz respeito a todos.
JPN: O que é que podemos esperar de ti no futuro?
JN: Para já, tenho muita coisa engavetada e estou a tentar arranjar forma de lançá-la. Podem esperar muita coisa. Agora também têm saído mais colaborações. Acho que vão ouvir falar de mim. Vão ver o meu nome em todo o lado e a minha cara muito seguida. Às vezes, um bocado contra a minha vontade, mas é o que é. Não tenho essa vontade agora de estar sempre à frente, mas também não posso fugir disso. Não tenho uma resposta muito definida, porque vou trabalhando de formas diferentes, mas quero apresentar muita coisa. A minha cara não digo, mas quero deixar o meu nome em muitos lugares e ter vários projetos que me permitam dar mais concertos e sentir-me mais confortável na posição que assumi como artista.
Editado por Filipa Silva