Peça que esgotou nove sessões em Lisboa, em dezembro, vai estar no Teatro Nacional São João, no Porto, entre esta quinta-feira (23) e domingo (26). Atores profissionais e não-profissionais juntam-se em palco para dar vida a personagens esquecidas da ditadura. O JPN falou com Marco Martins, responsável pela direção e dramaturgia.
Tudo começou com um convite para fazer uma peça que invocasse os 50 anos do 25 de Abril. Marco Martins, encenador e realizador, estava atento ao que se ia escrevendo sobre a efeméride. Em 2021, o jornal “Expresso” publicou uma reportagem da jornalista Joana Pereira Bastos, que resultava duma intensa pesquisa sobre uma colónia de férias para filhos de presos políticos que, no verão de 1972, proporcionou duas semanas de descoberta a 18 crianças com idades entre os 3 e os 14 anos. Foi nas Caldas da Rainha. Falaram-lhe da reportagem e Marco Martins decidiu guardá-la. “Não comecei logo a trabalhar nela, mas ficou em gestação na minha cabeça”, revelou.
Até concluir que era mesmo a partir dessa colónia de férias que queria trabalhar: “o que me pareceu mais importante foi a ideia de a história ser contada por personagens esquecidas pela História e que, no fundo, foram vítimas do Estado Novo, da repressão e do medo e nunca se falava delas”. Pessoas que, quase 53 anos depois, continuam a sofrer com os traumas e as limitações de liberdade que marcaram a sua infância. A isto juntou-se a perceção de “que muitas das comemorações não tinham chegado até às camadas mais jovens, [que] não tinham uma ligação direta com o que tinha acontecido antes da revolução”.
“A Colónia”, que chega esta quinta-feira (23) à noite ao palco do Teatro acional São João, no Porto, conta com a participação de antigos presos políticos, como o casal Domingos Abrantes e Conceição Matos; também de seis pessoas que participaram na colónia de férias (cinco das crianças e uma educadora); de jovens do ensino secundário; de atores profissionais e do músico B Fachada. Em conjunto, contam a história da colónia e da vida antes dela através de “personagens mais quotidianas, não os heróis, generais, capitães de Abril”, explicou, ao JPN, Marco Martins.
A importância da memória e dos sinais
Quase todas as pessoas que participaram na colónia estão vivas. Parte delas já tinha sido identificada e entrevistada pela jornalista Joana Pereira Bastos. As restantes não tinham falado abertamente sobre o tema. A construção do texto da peça partiu de conversas com estas pessoas. A maior parte guarda um arquivo pessoal sobre este período, feito de cartas, fotografias ou até mesmo os próprios desenhos que, enquanto crianças, levavam aos pais para a prisão. “Esses materiais foram muito importantes”, afirma o encenador, que também realizou uma extensa pesquisa – ou “trabalho sobre a memória”, como prefere apelidá-lo – na Torre do Tombo. Procurou nos arquivos da PIDE “todos os documentos relativos à prisão dos pais e aos motivos dessa prisão, às torturas, todo esse processo”, explica.
Para Marco Martins “A Colónia” é um meio de compreensão de onde é que se vem, além de ser “muito importante estar atento aos sinais de todos os totalitarismos, [a] esta ideia de aprender alguma coisa com o passado”, uma vez que, defendeu, “a repetição é inevitável”. “De alguma forma, lembrando a história destes combatentes antifascistas, estamos a refletir sobre o que é que pode ser um sistema totalitário e os perigos desse sistema”, assinalou.
Ao longo de cerca de duas horas, a peça desenvolve-se em torno de uma personagem central, Manuela Canais Rocha, professora de Geografia numa escola do ensino secundário do Barreiro, que viveu na clandestinidade com os pais até aos seis anos, completamente isolada do exterior. É a figura principal de toda a dramaturgia da peça e é a própria Manuela quem a interpreta. A ação começa pouco antes da colónia e recria a vida de clandestinidade e a relação dessas crianças com os pais, em parte, graças ao cenário dividido em dois níveis.
O casal de antigos presos políticos, Domingues Abrantes e Conceição Matos, em cima, integra o elenco. Foto: D.R. TNSJ Foto: D.R. TNSJ
O autor da peça clarificou que “há outros atores que substituem a Manuela nos seus relatos, também contam a sua história. Isso também acontece com as outras personagens, porque, no fundo, a peça fala-nos sobre a necessidade ou a vontade de que esta história não se esqueça e não se apague”.
Do lado esquerdo do palco, o músico B Fachada vai estar a reinterpretar muitas músicas do cancioneiro da revolução, das quais se destaca o “Hino de Caxias”, uma música cantada pelas crianças quando iam visitar os pais à prisão e que foi “esquecida”. A música tem um papel fundamental na peça, de acordo com Marco Martins, que sublinhou a importância dela na vida das crianças representadas: “esta colónia de férias foi feita em conjunto pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos (CNSPP), a Amnistia Internacional e a Cruz Vermelha Internacional, tendo contado com o apoio de progressistas católicos, que convenceram o Estado a fazer uma colónia de férias durante duas semanas, em 1972 e 1973, onde a polícia política não entrava e as crianças podiam ter alguma liberdade”.
“Havia um estatuto muito singular e, no fundo, uma certa liberdade dentro daquela colónia de férias, ou seja, eles podiam falar do que quisessem, podiam cantar as músicas proibidas sem intervenção da PIDE, que vigiava a colónia, mas um pouco à distância. As músicas que cantavam eram muito importantes para eles. Desde o início, era claro para mim que a música teria um papel central na construção do texto”, acrescentou. Em Lisboa, na Culturgest, onde a peça estreou, o Coro Infantil e Juvenil Lisboa Cantat acompanhou B Fachada, mas não vai estar no Porto devido a dificuldades logísticas.
Teatro: “espaço de assembleia pública”
Não é a primeira, nem a segunda vez que Marco Martins desenvolve uma peça envolvendo os próprios protagonistas da história e colocando-os no papel de atores. “O teatro é um trabalho sempre um pouco coletivo. No caso do trabalho com os não-profissionais essa componente é muito maior, porque há uma construção que é feita a partir das experiências individuais”, partilhou. O autor de “A Colónia” concluiu que sai mais enriquecido desta “troca”: “fico com a sensação de que acabo por receber muito mais do que aquilo que eu dou nesta construção”.
Marco Martins reiterou ainda que, outra das coisas que considera “extremamente gratificante em teatro, hoje em dia, é exprimir, ter espaço de reflexão, de assembleia pública, que já está muito ausente da sociedade”. “Este lugar onde vamos ver o outro ou a história do outro e onde estamos todos juntos para mudar, já não há muitos assim”, rematou.
O texto de apresentação da peça que vai estar em cena no Teatro Nacional São João de 23 a 26 de janeiro é concluído com a tese de que “é fundamental continuar” seguida da questão: “Em quem confiamos para o fazer?”. O autor da peça afirmou que “essa questão é boa de ficar em aberto”, porque é uma das que são levantadas neste trabalho. Marco Martins lembrou que “essa reflexão individual [sobre em quem é que se confia] é muito importante”, assim como é importante “continuar a transmissão da História coletiva”.
As quatro sessões de “A Colónia” no TNSJ já estão esgotadas, mas o autor informou que estão a ser fechadas novas datas noutros locais do país. A peça estreou a 5 de dezembro de 2024, na Culturgest, em Lisboa, tendo esgotado oito sessões para o público geral. Foi a primeira vez que o espaço teve uma trabalho de teatro em cena durante tantos dias.
Marco Martins adiantou também que está a desenvolver uma longa-metragem a partir da história desta peça. “Vai ser completamente ficção, sobre o período da colónia. Já está bastante avançado, vai começar a ser rodado ainda este ano, durante o verão”.
Editado por Filipa Silva
Artigo atualizado às 16h10, no dia 28 de janeiro de 2025. Foi corrigido que participavam na peça seis das 18 crianças da colónia para cinco crianças e uma educadora.