O Porto tem assistido nos últimos anos ao encerramento de lojas históricas que marcaram gerações. No entanto, há estabelecimentos que continuam a resistir, como a Livraria Moreira da Costa, o Bazar Paris, O Pretinho do Japão ou a Barbearia Ópera, que preservam o legado e a identidade da cidade. O JPN visitou estes espaços para conhecer as histórias que ainda perduram, mesmo diante das mudanças que afetam o comércio tradicional.

As ruas do Porto têm assistido ao encerramento de várias lojas históricas. A Mercearia do Bolhão e a Livraria Latina foram provavelmente os exemplos mais conhecidos do ano de 2024. Já este mês, foi notícia o encerramento da centenária ourivesaria Âncora, na Rua 31 de Janeiro.

Este fenómeno, impulsionado pela pressão do mercado imobiliário, mudanças nos hábitos de consumo e a falta de quem dê continuidade aos negócios, tem redesenhado as calçadas da Invicta. Para compreender esta transformação e o que ela representa para o futuro do Porto, o JPN visitou estabelecimentos históricos que ainda resistem e ouviu os seus proprietários e as suas histórias.

Livraria Moreira da Costa: Um Século de Memória Literária

A Livraria Moreira da Costa encontra-se na Rua de Avis desde 1902. Foto: Inês Saldanha/JPN

A Livraria Moreira da Costa foi fundada em 1902. Entrar neste espaço é embarcar numa viagem pelo tempo, onde páginas esquecidas encontram novos leitores e histórias do passado ganham uma segunda vida. Com cerca de 35 mil livros espalhados pelo espaço principal e pela cave, este é um refúgio para os amantes de literatura e um símbolo da identidade portuense.

Miguel Carneiro, atual proprietário, é a quinta geração da família a cuidar deste legado. A paixão do proprietário pela livraria consolidou-se na adolescência. Aos 13 anos, passava as férias grandes a ajudar na cave, limpando livros, e aos 18 tomou uma decisão que moldaria o seu futuro: optou por trabalhar na livraria em vez de continuar os estudos. “Eu gostava do espaço e de conviver com pessoas mais velhas, que me transmitiam conhecimento”, explica Miguel Carneiro.

A história da Moreira da Costa está diretamente ligada ao escritor Camilo Castelo Branco. Miguel acredita que o seu trisavô, José Moreira da Costa, tinha uma relação próxima com o célebre autor, o que ajudou a criar uma forte ligação entre a livraria e as obras de Camilo. A bisavó de Miguel, Elisa Duarte da Costa Ferreira Dias, foi uma figura marcante nesse legado. Além de promover a edição fac-similada de uma obra de Camilo, enfrentou um marco histórico: “foi a primeira pessoa em Portugal a ser condenada por violação de direitos autorais, pagando uma multa diária para evitar prisão”, conta o proprietário.

Além de livros raros e diversos, a livraria alberga edições únicas, como a revista “O Tripeiro”, com edições desde 1908.

Hoje, Miguel Carneiro gere a livraria juntamente com a sua esposa, Susana Fernandes. Juntos, mantêm vivo o espaço. Para Miguel Carneiro, a Moreira da Costa é mais do que uma herança familiar; é um património de todos os portuenses. “A livraria já não é nossa, é da cidade”, afirma.

A livraria já não é nossa, é da cidade.

Num Porto em constante transformação, a Livraria Moreira da Costa resiste como uma guardiã da memória coletiva, preservando histórias que atravessam gerações.

Bazar Paris: Um Lugar de Nostalgia Num Porto em Mudança

Em 2024, a loja celebrou 120 anos de existência. Foto: Inês Saldanha/JPN

Na Rua de Sá da Bandeira, em 1903, foi fundado o Bazar Paris. Hoje em dia, sob a liderança de Luísa Vilas-Boas, a loja está na quarta geração da família.

“Eu nasci aqui, esta foi a minha creche”, conta Luísa, cuja infância foi moldada pelos brinquedos e pela atmosfera da loja. Mais do que um negócio, o Bazar Paris é para Luísa um lugar de memórias afetivas e de laços familiares.

Eu nasci aqui, esta foi a minha creche.

O negócio começou pelas mãos do bisavô da atual proprietária como uma loja de louças. Ao longo das décadas, a família procurou reinventar-se, acompanhando as mudanças no comércio e nos hábitos de consumo. O avô, que conciliava a carreira de médico com a gestão da loja, e a mãe de Luísa, formada em comércio, desempenharam papéis cruciais na continuidade do legado. Quando concluiu o curso de Gestão, em 1994, Luísa Vilas-Boas decidiu assumir a responsabilidade de preservar e modernizar o negócio.

Nos últimos anos, o Bazar Paris passou por uma remodelação significativa com o apoio do programa “Porto de Tradição”, cujo objetivo é apoiar negócios históricos da cidade. “Candidatei-me ao concurso, e ajudaram-me nas obras. Foi uma grande ajuda”, explica Luísa. Além de melhorias estruturais, a proprietária introduziu tecnologia para otimizar a gestão.

Segundo a proprietária, o Bazar Paris distingue-se pelas suas características únicas e pela diversidade de produtos. “É uma loja que vende de tudo um pouco”, descreve. Durante o Natal, o espaço transforma-se num mundo mágico, com decorações que evocam nostalgia. Luísa dedica-se a encontrar réplicas de brinquedos antigos e artigos únicos, visando oferecer “uma alternativa às grandes superfícies comerciais”.

Esta atenção ao detalhe reflete-se na fidelidade dos clientes, muitos dos quais “vêm de outras regiões do país para visitar a loja”. Embora o turismo também traga visitantes ao Bazar Paris, Luísa enfatiza que “o público principal continua a ser português”.

Quando questionada sobre o encerramento de lojas tradicionais no Porto, Luísa Vilas-Boas afirma que “as lojas da cidade são a identidade da cidade”.

Relativamente aos hábitos de consumo, a entrevistada revela que “os pais procuram cada vez mais brinquedos que tirem as crianças dos computadores e das televisões”. Esta tendência ajuda a diferenciar a loja num mercado saturado por produtos digitais.

Apesar das dificuldades, a proprietária garante que irá preservar o espaço: “enquanto eu tiver forças e clientes, vou continuar” e deixa um apelo que resume o papel central das lojas históricas: “Que sentido tem um turista vir ver uma cidade onde vê tudo igual ao que está na cidade dele?”

Que sentido tem um turista vir ver uma cidade onde vê tudo igual ao que está na cidade dele?

O Pretinho do Japão: um testemunho da cidade invicta

O Pretinho do Japão nasceu em 1947 devido a uma disputa familiar. Foto: Inês Saldanha/JPN

O Pretinho do Japão abriu em 1947 devido a uma disputa familiar, quando um dos irmãos que geria uma mercearia na mesma rua [do Bonjardim] decidiu abrir um novo espaço a poucos metros do anterior. A localização estratégica, perto da estação da Trindade, foi determinante para o sucesso do negócio. “As pessoas saíam e viam a loja, achavam que tinha mudado de sítio”, conta Diogo Gonçalves, atual proprietário. Segundo o atual dono, O Pretinho do Japão prosperou, enquanto a mercearia original acabou por fechar.

Com o passar dos anos, a loja acabou por ficar degradada e o antigo dono “não tinha dinheiro para arranjá-la”, conta o atual proprietário. Em 2015, o sogro de Diogo Gonçalves acabou por comprar a loja, porque era “ligado à área dos frutos secos e viu uma oportunidade de negócio para ficar com uma loja física”. Decorridos dois anos, o sogro do atual proprietário “faleceu devido a um cancro”, o que levou Diogo e a sua esposa a comprarem a loja.

Hoje, o espaço destaca-se pela “qualidade e diversidade dos seus produtos”, que incluem bacalhau, frutos secos, especiarias, café e 50 variedades de amêndoas, descritas por Diogo Gonçalves como “verdadeiros bombons”. O compromisso com preços competitivos é uma estratégia para fidelizar clientes portugueses, que representam “70% da clientela”. Ainda assim, o aumento do turismo no Porto trouxe novos visitantes ao espaço, correspondendo a “30%” dos compradores. “Antes era só no verão. Agora, temos turistas todos os dias, durante todo o ano”, explica o entrevistado.

A constante inovação tecnológica e a preferência por grandes superfícies comerciais são desafios para lojas tradicionais como O Pretinho do Japão. “O nosso maior desafio é pagar as contas nos meses de pouca faturação“, revela Diogo, apontando também a especulação imobiliária e o acréscimo do custo dos produtos, como o café, que teve um aumento de “57% recentemente”.

Resistir às mudanças de um mundo em constante evolução não é evidente para o comércio local. A loja tem procurado adaptar-se e prepara-se para “lançar um website em 2025″, que permitirá alcançar novos públicos e acompanhar a tendência das compras online. “Queremos modernizar sem perder a essência. Vamos competir com qualidade, não com preço”, garante o Diogo Gonçalves.

Apesar das adversidades, o comerciante enfatiza a importância da loja para a identidade local: “Se todas as lojas como esta fecharem, as pessoas vão deixar de saber o que aconteceu. Temos aqui peças com mais de 100 anos, talões de racionamento da guerra. Isso é história.” Para o proprietário, a continuidade da loja é crucial: “Não é possível replicar esta loja. Mesmo que quiséssemos, nunca seria igual”, conclui.

Não é possível replicar esta loja. Mesmo que quiséssemos, nunca seria igual.

Barbearia Ópera um reflexo da mudança

Após 60 anos no mesmo local, a Barbearia Ópera teve de deixar, no final de 2024, o prédio na Rua Bairro do Comércio do Porto e mudar-se para Campanhã. Foto: Inês Saldanha/JPN

Após 60 anos no mesmo local, a Barbearia Ópera teve de deixar, no final de 2024, o prédio na Rua Bairro do Comércio do Porto e mudar-se para Campanhã. O prédio onde funcionava foi vendido, e o contrato não foi renovado. Apesar das dificuldades, o barbeiro encara a mudança com otimismo: “Não vou fechar uma porta para abrir uma janela. Encosto uma porta e abro outra.”

Não vou fechar uma porta para abrir uma janela. Encosto uma porta e abro outra.

Fundada em 1962, no Bonfim, a barbearia é mais do que um lugar para cortar cabelo: é um símbolo de legado familiar que atravessa gerações. A história deste estabelecimento começou de forma curiosa. “Aqui era uma frutaria”, recorda José Magalhães, atual proprietário. “O dono de uma mercearia em frente sugeriu ao meu tio que abrisse uma barbearia neste espaço, para eliminar a concorrência”, explica. Assim, nasceu a Barbearia Ópera pelas mãos de José Armindo da Silva Magalhães. O seu irmão, António Magalhães, foi o primeiro funcionário e mais tarde tornou-se o dono, passando o ofício para o seu filho, José Magalhães.

José Magalhães cresceu na barbearia, ajudando o pai em pequenas tarefas desde criança. “O meu pai dizia que esta era uma profissão pobre, que o patrão está sempre agarrado à cadeira”, relembra. Apesar disso, o barbeiro abraçou a profissão e, em 2010, assumiu o comando da barbearia após o pai se ter reformado.

Para o barbeiro, a essência do ofício permanece inalterada. “Os clientes não pedem para cortar com a máquina X ou Y. Eles querem o cabelo cortado, nem que seja à pedrada”, afirma. Mas o que distingue a Barbearia Ópera é mais do que técnica: “é a forma de tratar os clientes”, sublinha o dono.

Sentado na cadeira, a cortar o cabelo, está Ricardo Araújo que frequenta a barbearia há 20 anos. “Eu não venho cá porque a barbearia fica perto, mas porque conheço o Sr. Magalhães. Por isso vou atrás dele”, garante o cliente. Foto: Inês Saldanha/JPN

José Magalhães estima perder inicialmente “entre 30% e 40% da clientela”, mas acredita na resiliência do negócio e no potencial para conquistar novos clientes no futuro. “A vida é assim”, conclui.

Ao refletir sobre a cidade, o barbeiro lamenta a perda de espaços históricos e da essência portuense. “Quando vemos lojas com 100 anos a fechar, ficamos escandalizados, mas a verdade é que muitas pessoas já não as frequentavam. A identidade da cidade está a perder-se, não só pelo comércio, mas também pela substituição dos habitantes locais por estrangeiros. Para mim, o maior ativo que o Porto tinha eram as pessoas, e estamos a perdê-las”, diz ao JPN.

Apesar dos desafios, o entrevistado mantém viva a essência da Barbearia Ópera. Como gosta de dizer, “a barbearia são mais do que quatro paredes”. Assim como o Porto, que mais do que uma cidade, é um baú de memórias que continua a encantar quem o descobre.

Editado por Filipa Silva