[Crítica] Peça de Marco Martins, que esgotou sessões no Porto e em Lisboa, é mais do que a história de uma colónia de férias para filhos de presos políticos. A cenografia simples, porém repleta de simbolismo em cada detalhe faz do texto o protagonista.

Peça reúne em palco filhos de presos políticos que participaram na colónia de férias, em 1972, antigos presos políticos, alunos do ensino secundário, atores profissionais e o cantor B Fachada. Foto: Beatriz Tavares

“A Colónia” desarma o público desde o princípio. A maioria dos atores já está em palco, enquanto os espectadores entram. Os jovens – alunos do secundário – dirigem-se, um a um, aos microfones na boca de cena e dizem o (seu) significado de “Liberdade”. Ainda estamos à procura do lugar e já somos convidados a refletir sobre um tema tão importante.

Quando as luzes se apagam, Domingos Abrantes e Conceição Matos recordam as suas vivências como presos políticos, as grades e a espera que o amor entre ambos enfrentou para poder ser livre. O amor deste casal é um daqueles que se eterniza em livro. Era exatamente assim que o restante elenco olhava para Domingos e Conceição, com uma enorme estima, respeito e admiração. Daí por diante as lágrimas estariam sempre na iminência de cair.

A afirmação “confio em ti para contares a minha história” é repetida inúmeras vezes ao longo de toda a peça, mas vai ficando cada vez mais pesada com o desfiar do novelo. É preciso confiar a história a alguém por ser demasiado dura, porque feriu com golpes demasiado fundos quem a experienciou. Mesmo uma terceira pessoa na equação que interpreta a história como se fosse sua, teve de absorver muito sofrimento dos verdadeiros protagonistas ou então a peça não teria, de longe, o impacto que tem em quem a vê.

“A Colónia” é mais do que a história de uma colónia de férias para filhos de presos políticos e as curtas vidas que a antecedem. É sobre duas semanas de liberdade que permitiram a crianças e jovens descobrir realmente o que é a infância, porque tinham visto esse direito suprimido até então, e perceber que havia outras crianças que carregavam experiências semelhantes. Uma das partes desenvolve-se em torno do “mergulho”, da submersão metafórica, porém real, da sociedade, à qual a vida na clandestinidade obriga. Conhecer o pai e a mãe apenas por esses substantivos e a irmã somente como “bebé”. O impacto deixado nestas pessoas que hoje têm perto de 60 anos é irreversível e inegável.

A peça reinventa-se a cada instante que passa, contando a história dalgumas das pessoas em palco, pela voz e pelo corpo de outras, porque, por vezes, a vida retira tanto de humanidade a alguns seres humanos, que as histórias que ficam têm de ser personificadas por outros indivíduos para que sejam tornadas conhecidas. E, neste caso, isso foi feito exemplarmente. Assim como é exemplar dar voz a vítimas do salazarismo esquecidas pela memória coletiva.

“A Colónia”, de Marco Martins já passou pela Culturgest e pelo TNSJ. Foto: D.R. TNSJ

O palco é simples, mas só de aparência. Desde os desenhos de criança à cabine de música ou às fotografias, cartas e documentos projetados nas laterais, que acrescentam um “q” de realidade, há vários pormenores ou símbolos em cada canto do cenário. Este divide-se em dois patamares: a luz artificial e a brancura do nível inferior – onde a infância ficou “enterrada”, com a pureza e, ao mesmo tempo, com a escuridão dos traumas -, em contraste com o ambiente familiar, em cima, – ali recriam-se o passado, a História e as histórias que a compõem, narrados na perspetiva de quem pensa neles 52 anos depois de os ter vivido. O texto da peça tem peso e foi-lhe dado o devido espaço para respirar e ficar na mente de cada espectador. É na palavra, no talento de cada pessoa em cima do palco, na qualidade dos efeitos sonoros e luminosos que reside a essência d’ “A Colónia” e tudo se interliga nesse sentido.

É notável e de aplaudir de pé durante alguns minutos, tal como sucedeu no final da sessão da noite de estreia, a capacidade transformista de cada ator ou atriz, o modo como corporiza e dá vida a várias personagens e histórias, saltando entre umas e outras com naturalidade e, sobretudo, com sinceridade. Também B Fachada agiu como alguém que vê de fora, mas está no palco e musica a representação. Disso resultou uma simbiose bonita. Há muita verdade de sentimentos na interpretação da história, em particular, de Manuela.

Nada é forçado ou pende para o exagero, para o trágico, mas também não há eufemismos. Estão presentes muitas metáforas, são pintadas muitas imagens, mas também são dados a ver muitos rostos em fotografias antigas, muitos desenhos e cartas que ligavam as prisões ao mundo exterior, muitos elementos históricos, afinal. A amizade e admiração que existem entre todos os atores, mais ou menos amadores e profissionais, é notória. Só assim é que as histórias dramatizadas com tamanha intensidade impactam o público verdadeiramente.

Ouvem-se relatos brutais sobre torturas, sobre duas crianças que passaram duas semanas na prisão com a mãe. A protagonista, Manuela, explica a dimensão que viver num pequeno mundo de clausura e silêncio teve na sua vida. Hoje, é professora de Geografia, porque a faz sentir-se livre. É curioso como as vivências de cada pessoa podem influenciar tanto as suas decisões e trajetos de vida.

É pior ser preso pelo que se pensa ou viver numa liberdade condicionada à clandestinidade – uma casa, um esconderijo, uma identidade falsa, um medo constante de dar um passo no sentido errado? A pergunta continua sem resposta.

A frase “não compreendem as palavras, mas entendem as ações”, proferida na peça, condensa a inocência que não permitia àquelas crianças perceber por que é que viviam assim ou por que é que os pais tinham sido presos, mas isso não significa que não intuíssem que havia algo de errado e profundamente triste nisso.

As expectativas entraram elevadas no TNSJ, mas foram largamente superadas. Aplausos findos, com o público já de saída, entoaram da varanda “25 de Abril sempre! Fascismo Nunca Mais!”. Precisávamos seriamente de ver esta peça e não o sabíamos.

Editado por Filipa Silva