O artista portuense comemora os seus 25 anos de carreira no Coliseu do Porto, este sábado (22). O concerto vai contar com artistas como Rui Veloso e Mundo Segundo. O JPN entrevistou o músico perto da Pasteleira, onde nasceu e ainda hoje vive. Um lugar de fronteira entre a pobreza e a riqueza que marcou também a sua música.
Para celebrar a marca dos 25 anos de carreira, Bezegol vai dar um concerto neste sábado (22), no Coliseu do Porto. O artista vai revisitar alguns dos seus temas em nome próprio assim como colaborações com outros artistas que marcaram o seu percurso na música portuguesa.
Bezegol nasceu na cidade do Porto em 1973 e cresceu no bairro da Pasteleira, local onde ainda vive. O artista, com uma voz característica e singular, nunca gostou de rótulos. A sua discografia é marcada por vários estilos musicais, alguns provenientes do tempo que passou em África e outros do fado, pois o pai era fadista. Desde a adolescência, acompanha-o a alcunha “Bezegol”, um dos nomes de rua usados à época para fazer referência ao haxixe.
Começou a carreira a “passar música” em vários clubes da Invicta e a ser DJ de bandas de rap. A primeira vez que foi a um estúdio para produzir música marcou-o e, desde esse momento, já editou várias obras. Possui três álbuns e dois EP em nome próprio e, em 2024, lançou dois singles, “A Palavra” e “Acorda ó Zé”.
Colaborações com outros artistas marcaram a sua carreira. Lançou, em 2017, o tema “Maria” com Rui Veloso, cantor que vai marcar presença no concerto dos 25 anos de carreira de Bezegol. Rude Bwoy Banda, Mundo Segundo e Deau também vão fazer parte desta celebração.
Nesta entrevista ao JPN, no restaurante da ANJE, perto da Pasteleira, conta como foi crescer numa espécie de “enclave” entre a miséria e a riqueza. Garante que se manteve underground por convicção e que tem o Porto muito presente na sua escrita. Na música, sente que conquistou muita coisa neste quarto de século – não esquece o concerto dos Aliados nas comemorações do 25 de Abril – e que só gostava de “atingir uma cena que nem toda a gente consegue: intemporalidade.”
JPN – Quais são as principais diferenças no meio musical entre hoje e há 25 anos?
Bezegol – Uma das maiores diferenças é que era mais seccionado do que o que é hoje. Hoje diversificam mais. Quando comecei a tocar sentias que os músicos de uma área eram de uma área, os músicos de outra eram de outra e não se misturavam muito. Há mais aceitação desta geração mais nova, de se cruzarem uns com os outros, de fundirem o som de um com os dos outros. Até porque o mercado ficou mais competitivo.
E também por uma questão cultural. A aceitação, o sermos mais tolerantes. Acho que continuamos a evoluir no bom sentido, o ser humano continua a ficar cada vez mais empático e a compreender melhor o que se passa ao seu redor e não só com o seu umbigo.
É um sinal dos tempos. Há 25 anos, chegavas a um clube e dizias que tinhas interesse em fazer lá uma noite e eles perguntavam-te qual era o género. Tu dizias, eles torciam logo o nariz. Havia um certo preconceito. Se era novo, as pessoas não conheciam, tinham receio. Hoje em dia, até em casa consegues gravar uma boa maquete. Lembro-me que em 1999, no Porto, havia um ou dois produtores que tinham um MPC. Não existiam essas coisas, eram muito caras, ninguém tinha dinheiro para investir nisso.
Tudo isso, acho que contribuiu para a mudança que se nota de há 25 anos para cá. Fico contente por ela ter existido.
JPN – Porquê editar os seus próprios trabalhos? E isso teve implicações na sua carreira?
Bezegol – Claro que tem implicações. Quando eu falo em underground é precisamente nesse sentido. Underground é o quê? Estar fora do radar. Eu sempre optei por isto, dá-te liberdade de poderes criar e trabalhar como tu queres, com os teus timings.
Quando assinas por uma editora, estás a assinar uma série de cláusulas, que te vão depois obrigar a cumprir com isso. Se calhar, tens que ser mais ativo nas redes sociais, fazeres “x” faixas por ano, fazeres uma série de videoclipes e tens que ir tocar a programas de televisão.
Eu nunca quis isso, porque nunca foi esse o meu modo de estar a fazer música. Faço música porque gosto de o fazer, pela possibilidade que tenho de passar uma ideia. Da mesma forma que um escritor a passa num livro, eu passo-a com uma letra. E o prazer que isso me dá, juntar isso com o instrumental, trabalhar esse instrumental com o meu people no estúdio. Tudo isso a seu tempo, com peso e medida.
Quando estás num circuito comercial, sentes que és “obrigado” a andar mais para a frente. Eu nunca quis estar na música para ser muito conhecido, nunca quis estar na música para ser famoso. Por isso é que, neste tempo todo, não fiz um álbum por ano, nem fiz faixas todos os anos, nem videoclipes. Não faço, porque não sinto essa necessidade.
Eu faço música porque gosto de o fazer, pela possibilidade que tenho de passar uma ideia.
JPN – O que se pode esperar do concerto de celebração dos 25 anos de carreira?
Bezegol – O que vai acontecer no sábado é comemorarmos o que fizemos até agora, mostrar isso a quem nos conhece desse tempo, a quem nos conheceu pelo meio e a quem nos vai conhecer agora. Mostrar-lhes isso com a banda com a formação que temos agora.
As músicas vão ser tocadas de outra maneira, vão ter outra instrumentação, algumas são cantadas de outra maneira. Juntar os sons que fizemos o ano passado com os sons que estamos a trabalhar agora, como o meu projeto com o Mundo Segundo e com o Deau. A casa já está cheia, só falta mesmo é correr tudo bem da parte técnica.
Quando comecei a fazer isto do Coliseu, arranquei com as coisas sem saber se ia ter público. É uma equipa de mais de 50 pessoas para montar um concerto no Coliseu. Vamos montar três ecrãs gigantes, o do meio tem sete metros, vamos ter uma equipa de sete cameramen e um realizador ao vivo para distribuir as imagens pelos ecrãs.
JPN – Quais foram os momentos mais marcantes da sua carreira?
Bezegol – Uma coisa que me vem logo à cabeça são os Aliados. Tocar nos Aliados, para qualquer músico do mundo, é um mar de gente, não é? Quando toquei nos Aliados pela primeira vez foi um momento mesmo marcante. Subires a um palco e veres 30 ou 40 mil pessoas que estavam a cantar contigo. Veres o público a cantar contigo na cidade onde tu nasceste, com os teus melhores amigos no palco e outros atrás. É uma coisa que nunca mais vou esquecer.
Depois, a primeira vez que toquei no Hard Club em nome próprio. Poderes ver um cartaz com o teu nome, apresentar o teu primeiro álbum e teres esgotado uma bilheteira com o teu primeiro disco. Tudo isto são cenas que te ficam gravadas e das quais sou muito agradecido. Gravar com o Rui Veloso, gravar no estúdio dele e ele aparecer a dizer: “Ando com o teu álbum no meu carro”, ficarmos amigos e fazermos músicas…
Todos nós temos as nossas dificuldades e todos nós temos melhores e piores momentos. Conseguir ter essas coisas na minha memória já valida tudo o que fiz na música. E há muita coisa, há muitas amizades que se fazem, muita gente que conheces pelo caminho. É muita coisa que foi acontecendo com a minha vida.
Depois olhas para as letras e apercebes-te das fases da tua vida, porque é que escreveste aquilo e o que é que andavas a pensar, o que é que andavas a atravessar. Tudo isso justifica o meu meio modo underground de fazer as coisas.
JPN – Como é que o Porto e a sua vida nesta cidade influenciaram a sua música?
Bezegol – De tantas maneiras. Eu nasci na Maternidade do Porto e cresci na Pasteleira. Quando era miúdo, onde hoje é o Parque da Pasteleira, era um bairro de lata, de barracos. No fim dos anos 70 vou para a primária e no fim dos anos 80 entram as drogas no país. Os bairros são tomados por isso e vês uma coisa que era um estado de pobreza passar para um estado de miséria. Quando entraram as drogas deixou de haver respeito, começou-se a roubar o vizinho, começou-se a roubar o amigo, começou-se a criar uma série de problemas. A polícia a andar nos bairros…
A meio dos anos 90 limparam isto, dos barracos fizeram o Parque, o Aleixo foi mandado abaixo já nos anos 2000. Nas minhas letras, em bastantes delas, foco esses aspetos que me influenciaram bastante. A forma como eu cresci, a forma como eu vi as coisas a evoluir.
Crescer aqui nesta zona, estar numa fronteira com a zona que, na altura, era das mais pobres do Porto, com a zona mais rica, que é a Foz. No meu crescimento aqui, acabava por ser muito “beto” para os do bairro e era muito “bairro” para os “betos”. Eu vivia no meio, no enclave, então, com isso fiz muitos amigos no meio dos “betos”, como fiz muitos amigos no meio do bairro, que tenho até hoje. Essa mistura, essa forma de lidar com toda a gente, acho que a consegui transcrever isso para letras e criar algumas personagens e algumas histórias que conto.
Acho que a minha forma de escrever é típica do Porto.
JPN – Ao celebrar 25 anos de carreira, ainda é difícil viver da arte e da música em Portugal?
Bezegol – Sim, porque nós em Portugal vivemos bem do entretenimento. Se fores entertainer vives bem e o nosso sistema está muito feito para fazer isso. Quanto mais se empurrar os artistas para a borda do prato, mais eles vão querer deixar de estar lá, vão-se embora. Foi isso que aconteceu com as nossas televisões, e que acontece com as nossas rádios. Nós hoje vivemos de playbacks na televisão e do artista que sabes a vida dele, quem é a mulher, que agora trocou de casa e que comprou outro carro.
Desde a imprensa cor de rosa aos “Big Brothers”, tudo isso promove uma cena que não tem nada a ver com arte. Tem a ver com entreter as pessoas. Não é um fenómeno de agora, já era um bocado assim quando ainda só tínhamos dois canais. A partir de 93, quando vieram a “SIC”, a “TVI” e os [canais do] cabos ainda piorou. Eles quiseram, cada um, ter a sua fatia desse público.
O playback é, para mim, das invenções mais idiotas que alguma vez existiram. Nunca fiz um playback, não faço ideia do que é, porque não compreendo. Por haver esse mundo de entretenimento, que pesa tanto, é difícil viver da verdadeira arte, da verdadeira música.
Queres fazer música e arte tens que trabalhá-las de maneira a conseguires meter o teu projeto em palcos. É a única forma que tens de ganhar dinheiro. Claro que depois, hoje em dia, já tens as plataformas tipo Spotify ou Youtube, mas para receberes alguma coisa que se veja, tens que tocar muito. O principal meio de fazer dinheiro é pôr o projeto no palco e teres público suficiente para os produtores te pagarem o cachet. Claro que é difícil, tanto podes ter um ano em que vendeste 20 concertos, mas no ano a seguir podes só vender três. E depois tens uma banda, tens técnicos… É muito complicado gerires isso tudo.
O playback é, para mim, das invenções mais idiotas que alguma vez existiram. Por haver esse mundo de entretenimento, que pesa tanto, é difícil viver da verdadeira arte, da verdadeira música.
JPN – Ainda há algo que queira atingir na sua carreira? Como vê os próximos 25 anos?
Bezegol – Se me vir vivo… Já é bom! Acho que gostava de atingir uma cena que nem toda a gente consegue: intemporalidade.
Poderes sentir que ficaste, mesmo quando já cá não estiveres. Sei que para muita gente não lhes diz nada, mas para mim é algo que me toca. Gostava de saber que, quando já cá não estiver, o que fiz continua a significar algo para alguém e que deixei uma marca, de alguma forma, na história da música portuguesa.
Nunca almejei prémios, nem reconhecimento por parte de alguém. Gostava de ter essa intemporalidade, que o meu neto possa ter orgulho de ser o meu neto. Era mesmo a única coisa que gostava de atingir, o resto já consegui, já cumpri os objetivos que tinha posto na minha cabeça.
Espero conseguir fazer mais uma música com o Rui Veloso, que ele também está sempre a desafiar-me e é uma pessoa de quem gosto muito. A intemporalidade dele já está reservada.
O Coliseu era algo que queria fazer, porque um dos primeiros concertos que vi foi lá. O que vier a partir daqui é sempre bem-vindo e agora é deixar a vida rolar.
Editado por Filipa Silva