Yevheniia Kvasnevska mora no sul da Ucrânia. Apesar de não estar na linha da frente, a ucraniana sente que luta todos os dias pelo seu país. No dia em que o conflito russo-ucraniano faz três anos, a jovem partilha com o JPN a sua experiência.
Yevheniia Kvasnevska é uma jovem ucraniana que mora em Odessa, sul da Ucrânia. Quando era mais nova “tinha todos os tipos de cor de cabelo, [ouvia] música metal nos fones e [escrevia] poemas tristes sobre o amor infeliz”. Agora, confessa ao JPN, a guerra afastou os sonhos de infância e assumiu o centro das suas preocupações. Confessa que no final de 2022 – o ano em que a guerra começou – teve uma depressão e que ainda continua a tomar antidepressivos, mas isso não a impede de lutar pela liberdade e pela paz do país que a viu crescer. Tornou-se voluntária, apoia os soldados ucranianos, doa sangue frequentemente e defende os direitos da comunidade LGBT+.
Para Yevheniia, agora com 28 anos, a guerra começou em 2014, quando a Rússia invadiu a Crimeia e a região de Donbass. Nessa altura, a jovem acreditava que era possível existir uma guerra em breve, mas esta ideia, uma premonição, foi-se desvanecendo ao longo dos anos.
Quando 2022 começou, a ucraniana não acreditava que aquele pudesse ser o ano em que a sua vida mudaria. “Antes do início da invasão em grande escala, em 2022, não estava otimista, mas, provavelmente, fui muito estúpida”,afirmou. As pessoas à sua volta estavam a preparar-se “para deixar o país”, a fazer as malas e a tratar dos documentos necessários para partir. Ao JPN, a jovem ucraniana conta que a sua primeira reação foi entrar em negação: “A guerra já dura há oito anos. Porquê agora? O que há de especial neste ano? Só, então, apercebi-me que a guerra tinha começado.”
A 24 de fevereiro de 2022, quando o relógio marcava as sete horas da madrugada, Yevheniia foi acordada pela namorada. Após uma troca de palavras de amor, a sua companheira avisou-a: “a guerra começou”. Nesse momento, apercebeu-se “que não queria mais abrir os olhos”.
“Estava em choque, por isso, abri os canais de notícias. Percebi [que a guerra] estava a acontecer naquele momento. Corri até à janela e vi as explosões. Eu morava numa vila perto de Odessa e tinha um apartamento com uma vista panorâmica da cidade e do mar. Por causa disso, consegui ver as explosões. Vi a nossa infraestrutura ser destruída.” Como quem não queria acreditar no que via, tentou manter a rotina. O primeiro pensamento foi o de alimentar-se: “pensei, temos de comer qualquer coisa saborosa”.
Naquela manhã, decidiu ir à procura de uma loja de comida, mas o cenário que encontrou não foi o habitual. As lojas estavam “surpreendentemente” todas fechadas e “multidões e multidões de pessoas” ocupavam as ruas da vila perto de Odessa. As pessoas, que “estavam com os seus filhos, com as suas famílias, com todas as suas coisas e com todas as suas roupas”, tentavam “escapar”. Yevheniia e a namorada não. Após uma ida ao supermercado decidiram tomar o pequeno-almoço, mas ao contrário do que acontecia nas outras manhãs, o pensamento que pairava nas suas cabeças era: “O que vamos fazer agora?” Para Yevheniia, não existia nenhum guião que realmente as ajudasse a lidar com esta situação.
Refere que existem várias formas de lidar com o stress: “congelar, voar, lutar”. Ao JPN, admite responder da primeira forma: “sou a pessoa que congela, na verdade. Provavelmente, isso poupou-me tempo. Estava tão calma.” Às 11 horas da manhã, a ucraniana começou o seu dia de trabalho. Embora tenha ligado para a mãe e amigos, afirma que só conseguia pensar naquilo que poderia fazer naquele “exato momento”. “Assim foi o meu primeiro dia. Foi bem normal”, sublinha.
Mapa da Ucrânia por regiões. Fonte: Flourish
Entre reuniões de trabalho e abrigos antibombas
No dia em que o JPN entrevistou Yevheniia, a 19 de fevereiro deste ano, a jovem acordou com a notícia de que um hospital pediátrico tinha sido bombardeado em Odessa (ver mapa). “Não foi algo chocante para nós. Eles simplesmente bombardeiam porque podem. Temos ataques todos os dias, mas não posso dizer que está um caos em Odessa. Provavelmente, foi um caos por uns meses em 2022.”
Apesar dos bombardeamentos e das destruições, para Yevheniia “Odessa ainda é linda e ainda é muito turística. Ainda temos os nossos teatros e os nossos restaurantes.” Além disso, “as pessoas tentam aproveitar as suas vidas o máximo que podem. Mas não é fácil. Vemos pessoas a morrer o tempo todo. Vemos as notícias. Vemos que estamos sob ataque aqui e vemos a linha da frente a aproximar-se a cada dia. Mas, ainda assim, damos o nosso melhor para viver esta vida.”
Quando questionada sobre a sua rotina e a adaptação a uma nova realidade, a jovem admite que não se consegue lembrar da sua vida antes da invasão em larga escala. “Parece que foi assim por toda a minha vida”, confessa.
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A ucraniana, que trabalha numa empresa privada, afirma que a sua rotina é “normal”. Conta ao JPN que é comum receber notificações no telemóvel a avisar de que naquele momento vai acontecer um ataque de bomba. O procedimento é sair do escritório e das reuniões com clientes para encontrar refúgio no abrigo antibombas. “Às vezes, ficamos lá durante uma ou duas horas, outras durante quinze minutos. Geralmente, é frio e muito desagradável. Mas no meu trabalho temos wi-fi no abrigo antibombas. Pelo menos, dá para ver TikToks”, conta entre risadas a jovem.
De forma a tentar tornar a sua vida mais “agradável”, a jovem adotou um gato. “É como se tentasses ter uma rotina normal com festas, reuniões [de trabalho], viagens para o exterior ou pela Ucrânia. Mas a tua rotina é interrompida por alguma coisa. Pode ser uma sirene de ataque aéreo. Pode ser alguma notícia sobre um amigo que morreu ou um prédio que foi destruído. O mais assustador sobre isto, é que nós estamos a acostumarmo-nos.” Apesar de temer alguma normalização do conflito, que já dura há três anos, a jovem refere que as pessoas não consideram a guerra como algo “normal”.
Como jovem de 28 anos, Yevheniia talvez devesse estar a projetar planos para a vida: “como talvez [comprar] um novo apartamento, [pensar] na minha carreira, em, provavelmente, ter filhos, coisas deste género, mas a guerra está a tornar a vida e o meu horizonte de planeamento muito curto”. Para a jovem, “a primeira prioridade é sempre a vitória”, pois é necessário assegurar, em primeiro lugar, a segurança da Ucrânia para depois pensar no futuro.
No aniversário, os avós desejavam-lhe sempre “paz”, algo que Yevheniia não gostava, pois era uma coisa que tinha “o tempo todo”. Agora, refere que os jovens tornaram-se nesses avós: “[Preferia] que me desejassem sorte ou saúde e eles diziam: ‘não, a paz é a coisa mais importante do mundo.’ E agora nós entendemo-los. Agora somos esses avós.”
A jovem a doar sangue.
O acesso a bens essenciais
Yevheniia recorda que nos primeiros meses da invasão em larga escala, o acesso a cuidados de saúde foi “severamente afetado”, pois “houve um grande problema com a transferência de medicamentos para a Ucrânia” e vários bombardeamentos a fábricas e hospitais.
No terceiro dia do conflito, a jovem doou sangue pela primeira vez no centro de doação, tornando-se regular na prática. “Lembro-me dos momentos em que o avião russo caiu sobre o centro de doação de sangue. Nós corremos para o abrigo. Felizmente, não houve vítimas, mas lembro-me que percebi que nós e todas as infraestruturas médicas eram o alvo dos russos”, conta.
Ao JPN, recorda ainda o bombardeamento de um dos maiores hospitais pediátricos da Ucrânia. “[O Hospital] Okhmatdyt era o centro de cancro infantil mais profissional e mais moderno da Ucrânia. Era famoso no exterior. Quando eles foi bombardeado em julho de 2024, foi o momento em que percebi que se pode ter tudo, podemos ter toda a infraestrutura e todos os medicamentos, mas é necessário apenas uma bomba para destruir tudo.” Apesar da guerra, a jovem frisou que não tem dificuldades em comprar medicamentos agora.
Também a área da educação é das mais afetadas pela guerra. Após a pandemia do Covid-19, muitas universidades e escolas continuaram a ter aulas via online, refere Yevheniia. “A qualidade da educação está em dificuldades por causa do trabalho remoto e, em muitas regiões, é impossível continuar o processo educacional, porque as escolas e as universidades foram destruídas fisicamente por mísseis.”
Embora existam vários programas de reconstrução de escolas, as condições nem sempre permitem abrir os estabelecimentos escolares. Em Odessa, no dia da entrevista, a jovem conta que “15 escolas não puderam estar abertas, porque não havia nem eletricidade nem aquecimento.”
Também o acesso à eletricidade é, por vezes, dificultado: “Estão menos sete graus em Odessa agora e quase metade da cidade não tem eletricidade nem aquecimento central. Está muito frio nas casas. Às vezes, não temos eletricidade por um ou dois dias após os ataques.”
No que toca à alimentação, Yevheniia ri com o facto de vários jornalistas ou estrangeiros ficarem admirados com o facto de existirem certos alimentos nos restaurantes e supermercados: “Eles pensam – ‘vocês têm a maior guerra na Europa desde a segunda Guerra Mundial e têm leite de coco, torradas de abacate nos restaurantes e todos os tipos de queijos nos supermercados. E nós pensamos -‘sim, esta guerra é muito fixe’”, ironiza a jovem.
Embora seja fácil obter comida em Odessa, nas regiões perto da linha da frente a mesma situação não se observa, expõe a ucraniana. “Nas regiões de Kherson e, claro, em todas as regiões perto da linha da frente, é quase impossível comprar qualquer coisa, porque quando [as regiões] são bombardeadas, [as pessoas] não podem ir ao supermercado. Há organizações humanitárias a trabalhar lá, mas a situação difere em toda a Ucrânia.”
Yevheniia a dar bens alimentares a soldados ucranianos.
Porquê ficar num país em guerra? “Porque amo este país!”
São várias as razões que fizeram Yevheniia ficar na Ucrânia. A primeira? “Porque eu amo este país!” Quando as primeiras conversas sobre a guerra começaram, as pessoas perguntavam-lhe o que iria fazer. Para a jovem patriota não fazia qualquer sentido abandonar a sua casa. “Porque me iria embora? É o meu país. Nasci aqui. Quando a invasão em larga escala começou, pensei: ‘se posso ser útil aqui, eu vou ficar.’” Após essa decisão, a jovem começou a fazer trabalho humanitário, tornando-se voluntária.
Quando questionada sobre a forma como lida com a incerteza do dia de amanhã, a jovem respondeu que tenta aproveitar “o de hoje”. Yevheniia refere que viver num país em guerra é como tentar “construir o amanhã com pequenos tijolos” e que “às vezes, eles são destruídos.”
Yevheniia Kvasnevska
Ucrânia e Rússia: irmãos distantes ou inimigos mortais?
Quando questionada sobre possíveis soluções para terminar o conflito, a jovem afirma que ceder territórios à Rússia é uma opção que considera “injusta”: “Sei que essa é provavelmente uma opção que teremos que aceitar, mas não é justo, não para a nossa terra, não para o nosso povo.”
Ao JPN, a ucraniana refere que existem “pessoas otimistas à espera de negociações”, mas que colocar “uma pausa” na guerra dessa forma, seria causar uma “ainda maior muito em breve”. Acrescenta que, na sua opinião, essa guerra não envolveria apenas a Ucrânia, mas também a Europa. Yevheniia reforça que não se trata da primeira guerra russo-ucraniana: “Não é a primeira vez que a Rússia planeia destruir a Ucrânia. Nós conhecemos a nossa história. Sabemos que não podemos confiar na Rússia. Não podemos ser amigos, nem podemos ser irmãos, como nos chamam.”
A jovem gostava que “todos os territórios da Ucrânia [ficassem] como era em 1991. Livre da Rússia, livre de soldados russos, feliz, segura e reconstruída. Precisamos do nosso povo, precisamos do nosso país, precisamos das nossas terras.” Apesar de ter “um pouco de sangue russo nas veias”, um facto que considera infeliz, ao JPN, a jovem refere que os ucranianos e os russos são “muito diferentes”.
Apesar de não ter votado em Volodymyr Zelensky para presidente, Yevheniia considera-o ideal para liderar a guerra. “Precisamos de um líder assim neste momento. Ele é carismático, é jovem, é diplomático”, mas sabe não o ser quando necessário, acrescenta.
Quando questionada sobre a presidência de Donald Trump e a forma como tem lidado com o conflito, Yevheniia brinca que “Trump é uma ameaça para o mundo”. A jovem considera-o um “populista” e alguém que apenas tenta “alcançar um lugar nos livros de História”, não sendo a pessoa ideal para solucionar a guerra russo-ucraniana.
Já no que toca ao papel da União Europeia (UE), apesar de compreender que o seu apoio tem sido essencial para a Ucrânia, a jovem refere que muitos ucranianos estão “dececionados com a sua ajuda, porque, às vezes, parece que é muito pequena, muito silenciosa e muito pacífica”. Yevheniia gostava que a UE fosse mais “agressiva” na sua abordagem e que enviasse soldados para o território ucraniano.
Editado por Filipa Silva