O JPN ouviu as preocupações dos moradores do Bairro da Alegria, na Rua do Freixo, que temem ser desalojados devido à construção da Linha Ferroviária de Alta Velocidade do Porto a Oiã. Infraestruturas de Portugal adjudicou obra ao consórcio LusoLav, responsável pelo projeto e construção do troço.
A construção da nova Linha Ferroviária de Alta Velocidade (LAV) entre o Porto (Campanhã) e Lisboa (Oriente) promete modernizar as ligações ferroviárias do país. Mas não é em clima de festa que no Bairro da Alegria, na Rua do Freixo, se aguarda pela obra. De acordo com o Estudo de Impacte Ambiental do projeto, a construção do viaduto que vai ligar a nova ponte sobre o Douro à Estação de Campanhã pode “afetar 42 habitações”. Os moradores temem pelo futuro das suas casas e estabelecimentos comerciais e queixam-se da falta de informação das autoridades.
“Não é fácil ir para outro lado”
Alberto Silva, de 70 anos, é proprietário do restaurante “O Buraquinho do Freixo” e mora no mesmo edifício onde tem o negócio há mais de três décadas. “Tenho pena disto acabar. É uma adega regional, mas se tem que ser, tem que ser”, lamentou Alberto Silva.
Apesar de todas as especulações sobre as obras, o empresário afirmou que nunca recebeu qualquer notificação oficial sobre o futuro do seu estabelecimento ou da sua casa: “a gente ouve notícias na televisão, na rádio, mas ninguém veio dizer nada diretamente e isso é que nos deixa nervosos, sem saber se vamos ou não sair”.
Restaurante “O Buraquinho do Freixo” é um elemento da identidade da Rua do Freixo há três décadas. Foto: Inês Bulcão/JPN
A preocupação estende-se também à falta de comunicação por parte das autoridades: “a Câmara diz que isto não é com ela, que é com as Infraestruturas [de Portugal], mas ninguém nos esclarece. Se vamos sair, queríamos saber com antecedência. O mínimo que poderiam fazer era serem honestos connosco”.
Alberto teme pelo futuro do negócio: “Isto não é só a minha casa, é o meu trabalho. Se tiver que sair, não sei onde vou recomeçar com 70 anos“. “Depois de tanto tempo aqui, habituado aos clientes e ao bairro, não é fácil simplesmente ir para outro lado e continuar como se nada tivesse acontecido”, expressou o proprietário do restaurante.
“Onde é que eu vou com a minha mãe de 96 anos?”
Maria Martins, com 70 anos, vive na Rua do Freixo há quase quatro décadas. A incerteza sobre o futuro da sua casa e da família com quem a partilha, a mãe de 96 anos e o filho, é o que deixa a moradora mais angustiada: “vão fazer um jardim à beira da linha? Um prédio com condomínio fechado? Eu não entendo. Dizem tanta coisa, mas informação oficial, zero”.
Para Maria, a falta de consideração pelos moradores está a ser notória: “acham que estas casas não valem nada, mas nós investimos nelas. Gastei dinheiro a arranjá-la para a minha mãe ter condições de se movimentar. Agora querem-nos tirar daqui para onde? Para debaixo da ponte? Onde é que eu vou com a minha mãe de 96 anos? Queremos um TGV, mas não assim, destruindo o que já existe”.
Além disso, a residente teme pela falta de alternativas que poderão vir a ser disponibilizadas caso seja expropriada e afirma que uma indemnização não é o suficiente: “se nos obrigarem a sair, onde nos vão colocar? Não há habitação suficiente para realojar toda a gente. E a compensação financeira nunca será justa. A vida das pessoas não se mede em dinheiro”.
Maria Martins, de 70 anos, vive na Rua do Freixo há 39 anos com a sua mãe, de 96, e o filho. Foto: Inês Bulcão/JPN
Indemnização “não é a mesma coisa que ter um lar”
Ademir Maia tem 29 anos, mora há dois anos na Rua do Freixo e partilha da mesma preocupação que Alberto e Maria. Para o morador, os idosos vão ser os mais afetados com as futuras expropriações: “a maioria dos moradores são idosos e vivem há muito tempo aqui. Isso torna a situação ainda mais complicada para eles. Acredito que vão ser os que vão sofrer mais com isto”.
A possibilidade de despejo chegou a Ademir de forma indireta. O residente confessou ao JPN que “o proprietário chegou a colocar a casa à venda por medo do que possa acontecer com as obras”, no entanto, garantiu que não recebeu nenhuma informação oficial.
O morador acredita que a forma como o plano da LAV está a ser conduzido poderia ser diferente, de forma a evitar expropriações e demolições de habitações e estabelecimentos comerciais. “Sabemos que há infraestrutura e capacidade para fazer as obras sem tirar as pessoas das suas casas. Hoje em dia, encontrar uma casa para morar em Portugal já é difícil. As pessoas perderem os seus lares desta forma não faz sentido”, frisou.
Para Ademir Maia, não há qualquer indemnização que consiga compensar as expropriações e demolições das casas: “mesmo que nos compensem com dinheiro, não é a mesma coisa que ter um lar. Um lar é um espaço onde construímos a nossa vida. Não é só uma questão financeira, é uma questão de identidade e pertencimento”.
A luta dos moradores por respostas
Apesar da apreensão, os moradores do Freixo ainda não receberam informações oficiais sobre o impacto da futura linha. “As reuniões que acontecem são organizadas por nós, porque da Câmara não sabemos nada”, explicou Maria Martins.
Os moradores têm tentado mobilizar-se, mas sentem-se impotentes. “Lutamos e tentamos organizar-nos, mas é difícil lutar contra um projeto desta dimensão sem apoio legal ou institucional. Acho que merecíamos mais respeito. Se pelo menos nos explicassem claramente o que vai acontecer, podíamos preparar-nos. Assim, vivemos num limbo”, explicou Alberto Silva.
O futuro do Freixo continua incerto. Enquanto o projeto de construção da linha ferroviária não avança, os moradores aguardam respostas sobre o que vai acontecer às suas casas, estabelecimentos e ao bairro que, há décadas, chamam de lar. Para muitos, a mudança representa não apenas uma deslocação física, mas a perda de uma vida inteira, de memórias e relações construídas naquele lugar.
A Rua do Freixo é um dos lugares do Porto que vai ser afetado pela construção da Linha Ferroviária. Foto: Inês Bulcão/JPN
Munícipe questiona executivo municipal
O assunto foi levado a uma reunião pública do Executivo, a 27 de janeiro. No momento de intervenção dos munícipes, António Moreira, de 39 anos, residente na Rua do Freixo, evidenciou a insegurança e frustração dos moradores do Freixo perante a falta de informação sobre as obras da Linha de Alta Velocidade.
Em agosto de 2024, realizou “um grande sonho” ao adquirir uma casa no Bairro da Alegria, algo que descreve como um feito “titânico” na sua geração. No entanto, logo no primeiro dia de obras no imóvel, construído em 1937, foi surpreendido pelos vizinhos, que não compreendiam como tinha comprado uma casa naquela rua, tendo em conta que iria ser tudo demolido.
Perante esta incerteza, António Moreira tentou esclarecer a situação junto da Câmara Municipal do Porto e da estrutura do Urbanismo e garantiu que o tranquilizaram, dizendo-lhe que “se a Câmara Municipal não exerceu nenhum tipo de direito de preferência na compra do imóvel, não haveria nenhum problema à partida”. O residente também entrou em contacto com a Junta de Freguesia de Campanhã, mas percebeu que o que procura não é da competência deste órgão, não tendo conseguido esclarecer as suas dúvidas: “não têm informação absolutamente nenhuma em relação às expropriações”.
O morador apontou (o dedo) a/à falta de comunicação e de transparência por parte das entidades responsáveis, sublinhando que a Câmara continua a garantir que não há perigo para as habitações, na medida em que “um empreendimento de luxo está a ser construído a escassos metros” da sua habitação.
Para António Moreira, é contraditório que este projeto não interfira com a linha ferroviária, mas as habitações do Bairro da Alegria sejam alvo de expropriação. “Recuso-me a acreditar que aquele empreendimento não causa nenhum problema ao TGV [Linha de Alta Velocidade], mas a minha casa e a do resto das pessoas causará”, reiterou.
Ademir Maia mora há dois anos na Rua do Freixo à qual já chama de “lar”. Foto: Inês Bulcão/JPN
António Moreira expressou preocupação não só com a sua situação mas, principalmente, com a dos moradores mais vulneráveis, dando como exemplos Alberto Silva – “comerciante cujo estabelecimento e casa podem ser demolidos” – e a mãe de Maria Martins, “uma senhora de 96 anos, cuja rotina simples pode ser drasticamente interrompida“. “Deslocar uma pessoa destas é matá-la. Não haverá outra solução? A solução é mesmo expropriar e demolir?”, questionou o residente da Rua do Freixo.
Por fim, deixou um apelo à Câmara do Porto, para que tenha “uma voz ativa para tentar encontrar outra solução”, que defenda os residentes e garanta que não sejam “completamente explorados por uma empresa de construção que vai ser financiada por outro projeto”.
É preciso esperar por projeto, diz IP
O Estudo de Impacte Ambiental (EIA) da primeira fase da Linha de Alta Velocidade, que ligará o Porto (Campanhã) a Oiã (Aveiro), estima que a construção do viaduto de Campanhã, que vai ligar a futura ponte rodo-ferroviária sobre o Douro à Estação de Campanhã, vai afetar “a linha de habitações de piso térreo e de 1 piso, no Bairro da Agra e no Bairro da Alegria, até à Rua do Freixo (o projeto poderá afetar 42 habitações)”.
De acordo com o EIA, vão ser “afetadas 46 famílias/96 pessoas nos bairros da Agra e da Alegria, estimando-se que possam ser afetadas diretamente 15 famílias e mais de 30 pessoas”.
O EIA reconhece os impactos sociais que podem estar em causa “em função da vulnerabilidade social e etária das famílias afetadas, exigindo-se soluções adequadas, justas e condignas de realojamento, com participação dos afetados nos processos de decisão”, lê-se no Estudo que recebeu um parecer “favorável condicionado” da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
Num esclarecimento por escrito enviado ao JPN, a Infraestruturas de Portugal (IP) adverte, contudo, que ainda é cedo para conclusões: “A solução final para a intervenção a realizar na envolvente da Estação de Campanhã só será definida no decurso da execução do futuro contrato de concessão, uma vez que caberá ao respetivo adjudicatário fixar o traçado final da linha de alta velocidade no troço Porto (Campanhã)-Oiã, tratar do desenvolvimento dos respetivos anteprojetos e projetos de execução, assim como proceder à construção.”
Diz também a IP que “ainda não é possível saber, com rigor, que habitações/famílias serão efetivamente afetadas pelo projeto, dado que as mesmas só serão conhecidas quando estiver concluído o projeto de execução, que se estima seja iniciado no segundo semestre de 2025.”
“Por este motivo, nesta fase não estão ainda a decorrer quaisquer contactos com os proprietários/moradores/
Quem também remete esclarecimentos para a concessionária é a Câmara do Porto, na resposta enviada às questões do JPN. Contudo, no parecer que emitiu no contexto do EIA, a autarquia admite serem “significativos” os impactos da futura obra no seu território, sublinhando que “deve ser dada particular atenção aos casos de afetação de habitações e realojamento como é o caso dos bairros da Agra e da Alegria”. Apesar dos efeitos negativos, a autarquia concluiu que, considerado na sua globalidade, “o projeto [da LAV] é positivo“.
A concessão adjudicada pela IP à LusoLav prevê a construção de 71 quilómetros de linha ferroviária de alta velocidade, a adaptação da atual Estação de Campanhã às novas exigências, a construção de uma nova estação subterrânea em Vila Nova de Gaia, na zona de Santo Ovídio, e a edificação de uma nova ponte sobre o rio Douro. Está ainda prevista a criação de ligações à Linha do Norte, na zona de Canelas, em Gaia, bem como a instalação de uma nova subestação de tração elétrica em Estarreja.
O contrato de concessão, com um prazo de 30 anos, inclui um período de desenvolvimento de cinco anos, durante o qual serão realizadas as obras, e um período de 25 anos para manutenção e disponibilização da infraestrutura. O valor da adjudicação ascende a 1.66 mil milhões de euros, valores com referência a dezembro de 2023. Além disso, a IP pagará até 480 milhões de euros adicionais à concessionária para cobrir despesas relacionadas com projetos, expropriações e obras associadas à candidatura ao programa europeu “Connecting Europe Facility for Transport 2” (CEF 2), já aprovada.
A Linha de Alta Velocidade vai ser construída em três fases. A IP prevê que a primeira fase, entro o Porto e Soure esteja concluída até 2030. A segunda fase, entre Soure e o Carregado, deve ficar concluída até 2032. A terceira fase, até Lisboa, tem implicações pouco significativas sobre o tempo de viagem, pelo que deve ser deixada para mais tarde. O objetivo da LAV é reduzir o tempo de ligação entre Porto (Campanhã) e Lisboa (Oriente) para 1h15.
Editado por Filipa Silva