Encontra-se em discussão na Assembleia da República a proposta de revisão do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES), apresentada pelo Governo, em dezembro do ano passado. Neste artigo, procuramos responder a algumas questões: o que é o RJIES? O que propõe o Governo mudar? Como estão a ser recebidas as propostas?

Vista da fachada do edifício da Reitoria da Universidade do Porto com algumas pessoas a passar na Praça dos Leões.

Edifício da reitoria da Universidade do Porto. Foto: Miguel Marques Ribeiro

O que é o RJIES?

O RJIES é o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior que regula as instituições universitárias, públicas e privadas, e as instituições politécnicas. Este regime abrange vários aspetos das instituições, tais como a constituição, atribuições e organização, funcionamento e competências dos órgãos, e ainda a tutela e fiscalização pública do Estado sobre as mesmas.

O RJIES foi aprovado pela primeira vez a 10 de setembro de 2007 com o objetivo de estabelecer um novo modelo de estruturação do sistema de Ensino Superior e Ciência em Portugal. O processo foi liderado pelo então ministro socialista Mariano Gago, que faleceu em 2015.

De acordo com a lei, o RJIES devia ser revisto a cada cinco anos, mas não sofreu qualquer revisão até ao presente. Só em 2023 é que foi criada uma Comissão Independente para avaliar a aplicação do regime. O relatório apresentado serviu de base à proposta de reforma que o atual Governo aprovou em Concelho de Ministros, em dezembro de 2024.

A proposta está agora em discussão na Assembleia da República.

Quais são as principais mudanças no RJIES?

As principais mudanças do regime prendem-se com o sistema binário e racionalização da rede, com a autonomia das Instituições de Ensino Superior (IES) e com a sua governação.

O que muda sobre o sistema binário, isto é, ao nível da natureza universitária e politécnica das instituições?

A proposta de revisão do RJIES diz que pretende manter o sistema binário de ensino universitário e politécnico, enfatizando a importância das formações científicas e vocacionais nas universidades e das técnicas avançadas nos politécnicos. Ainda assim, permite a aproximação entre os dois subsistemas, através da cooperação e coordenação da oferta formativa. Com o objetivo de racionalizar a rede, as medidas passam, por exemplo, pela possibilidade de oferta de Cursos Técnicos Superiores Profissionais (CTeSP) pelas universidades (até aqui, são um exclusivo do ensino politécnico) e a formação de professores para a educação secundária nos politécnicos (até aqui, um exclusivo das universidades).

De que forma quer o Governo dar mais autonomia às IES?

A proposta de RJIES pretende reforçar a autonomia orçamental das instituições de ensino superior, compensando-as automaticamente e tornando neutras as alterações legislativas do ponto de vista orçamental. Isto é, sempre que, por exemplo, houver atualizações salariais na função pública, as transferências do Estado serão automaticamente ajustadas, sem necessidade constante de autorizações ministeriais.

As instituições têm flexibilidade para gerir o seu património. Para além disto, as mobilidades nas categorias e intercarreiras deixam de carecer de despacho governamental.

O regime pretende ainda dar condições às instituições do ensino superior para definirem e implementarem estratégias de médio e longo prazo.

Quais são as mudanças na governação das IES?

A eleição do reitor (no caso das universidades) ou presidente da instituição (no caso dos politécnicos) vai passar a realizar-se de forma mais democrática, na visão do Governo. O processo eleitoral passa a ter duas fases. Na primeira, o Conselho Geral elegerá dois candidatos de entre os que se apresentem às eleições. Num segundo momento, a escolha do vencedor ficará a cargo da comunidade académica, de modo ponderado.

A proposta de RJIES determina que os votos dos docentes e investigadores de carreira pesem cerca de 50% no resultado final. Os estudantes vão passar a poder votar diretamente para esta eleição, contando os seus votos cerca de 20% e os antigos estudantes também podem participar da decisão, contando cerca de 15%. Os técnicos e administrativos das instituições apenas contribuem com cerca de 10% para a eleição do reitor ou presidente.

O mandato terá a duração de quatro anos, com a possibilidade de renovação apenas uma vez. Os mandatos do Conselho Geral também serão limitados. De forma a reforçar a independência e credibilidade do Conselho, este continuará a ter elementos externos à academia.

Atualmente, a eleição do reitor ou presidente é uma competência exclusiva do Conselho Geral. Este é um órgão colegial onde docentes, estudantes e personalidades externas têm representação. Os estatutos podem também prever a presença de representantes dos funcionários. Os professores têm que ser mais de metade, os estudantes, no mínimo, 15%, e os restantes são personalidades externas e funcionários.

Um exemplo: o Conselho Geral da Universidade do Porto tem 23 elementos. Doze são professores e investigadores, quatro são representantes dos estudantes, um representante do pessoal não docente e cinco personalidades externas, além do presidente, que é também uma personalidade externa à instituição.

Que outras mudanças o RJIES propõe?

As instituições de ensino superior terão de garantir a prestação de serviços de saúde mental.

De forma a combater a endogamia, não será permitido contratar para um estabelecimento de ensino os docentes ou investigadores que tenham obtido o grau de doutor nessa instituição há menos de três anos.

Neste ponto, o ministro da Educação, Fernando Alexandre, prestou um esclarecimento: se entrar em vigor, afetará aqueles que se venham a inscrever num doutoramento depois da entrada em vigor da nova legislação.

Os processos de avaliação e acreditação das IES e dos seus cursos vão estar abertos a agências de acreditação nacionais de Estados-Membro da União Europeia, conforme o sistema europeu de garantia da qualidade da educação superior.

Que críticas são apontadas ao RJIES?

Para o ex-ministro da Educação do Partido Socialista, Júlio Pedrosa, esta revisão do RJIES tem “na agenda coisas que não fazem sentido”. De uma forma geral, em declarações ao JPN, o antigo reitor da Universidade de Aveiro manifesta desacordo face às universidades politécnicas e ao envolvimento de antigos alunos na eleição do reitor ou presidente das instituições.

No mesmo registo, José Moreira, atual presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), diz ao JPN que “se tivermos dois subsistemas distintos, convém que eles, na prática, sejam distintos”. O docente considera que “não há vantagem em manter” as universidades e os politécnicos se não existirem missões, estratégias e posicionamentos na sociedade diferentes, e que o “país ganha” em distinguir o ensino mais e menos vocacional.

Quanto ao novo sistema de eleição do reitor ou presidente da instituição, Júlio Pedrosa acredita que os antigos estudantes que queiram contribuir de alguma forma para a instituição têm outras maneiras de o fazer. O ex-presidente do CRUP, considera que cada instituição deve averiguar se o modo como elege os seus membros internos é o adequado. Júlio Pedrosa acrescentou ainda que é mais importante fortalecer a representação, nos conselhos gerais, de elementos “genuinamente externos, escolhidos bem por parte das instituições, que pertençam a um mundo económico, um mundo social e um mundo cultural envolvente de tal maneira que tragam para dentro [das instituições] contributos de fora.”

Paulo Ferreira, atual presidente do CRUP e também reitor da Universidade de Aveiro, reconhece a vontade do atual Governo de aproximar os estabelecimentos de ensino superior e os estudantes, mas defende que ainda não há uma relação de proximidade suficiente que justifique as distribuições do peso das votações (peso de 20% para os estudantes e de 15% para os antigos estudantes). Um peso “excessivo”, na visão do reitor, especialmente no que toca aos antigos estudantes: “Portanto, nós gostaríamos que este número ficasse de fora. Não ficando de fora, que fosse simbólico. Não parece razoável que qualquer um dos corpos ativos na universidade tenha menos peso do que o dos antigos alunos”, acrescentou.

O reitor acrescentou que a principal preocupação dos responsáveis pelas instituições é outra: “é, sobretudo, as condições de trabalho dos docentes e investigadores no ensino superior, seja ele politécnico ou universitário, e a dignidade das instituições”.

O presidente da Federação Académica do Porto (FAP), Francisco Porto Fernandes, também considera que o peso dos antigos estudantes na eleição do reitor ou presidente não deveria ser tão elevado, mas o peso dos atuais deveria ser superior aos 20% em discussão. Ainda que defenda um único momento aberto de votação, espera que os jovens sejam especialmente valorizados na eleição do reitor.

As medidas relacionadas com a autonomia financeira das instituições foram elogiadas pelos reitores que consideram ter sido dado um passo “interessante”, ainda que não tão avançado como se gostaria. Paulo Ferreira, presidente do CRUP, explica: “Nós temos despesas, por exemplo, comprar um reagente ou alguma peça de equipamento, que são fundamentais para o avanço de um projeto científico ou para o avanço das aulas, e que em vez de demorarem horas ou dias, podem demorar semanas ou meses, devido ao processo ultra-burocrático de controle das despesas. Muitas vezes, os processos de controle de despesas são tão burocratizados que, estou seguro, em algumas despesas se gasta mais dinheiro em controlar a despesa do que na própria despesa”, afirmou ao JPN.

No que diz respeito às medidas de combate à endogamia académica, José Moreira disse que podem tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento de algumas instituições de certas regiões com mais dificuldades de atrair e contratar doutorados. Na opinião do presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior, as medidas deveriam incentivar a redução da endogamia, em vez de proibir, de forma a evitar resultados vazios em concursos de doutorados.

Francisco Porto Fernandes acrescentou ainda que o RJIES, no artigo 22, relativo aos trabalhadores-estudantes, “devia mesmo dizer o estatuto de estudante do ensino superior, conferindo direitos e deveres aos estudantes com todos os direitos e estatutos especiais”. O presidente da FAP acredita que é algo que a proposta de alteração ao regime deveria comtemplar.

Editado por Filipa Silva