Completam-se três anos da invasão russa da Ucrânia. Depois de muita destruição e movimentações políticas, vive-se um período de expectativa e tensão. Com a chegada de uma nova administração à Casa Branca, prometeu-se rapidez na resolução do conflito, mas estará a paz mais perto?
No primeiro ano de guerra, várias manifestações saíram à rua, um pouco por todo o mundo. Foto: Joana Araújo/JPN
A guerra da Ucrânia completou a 24 de fevereiro o seu terceiro ano de combates. O maior conflito no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial soma mais de 11 milhões de pessoas deslocadas – 4 milhões no interior da Ucrânia e 7 milhões no exterior – e mais de 12 mil mortos, segundo o balanço do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas.
Com mais de 20% do território ucraniano dominado pela Rússia e mil quilómetros quadrados russos dominados pela Ucrânia, as negociações de um acordo entre as partes não serão fáceis.
O novo presidente dos EUA, Donald Trump, assumiu a sua vontade de resolver rapidamente o conflito, e talvez um acordo esteja mais perto, resta saber a que preço para as partes beligerantes.
Certo é que a tensão entre Washington e Kiev tem aumentado, ao passo que o clima com Moscovo seguiu a tendência inversa. Para a equação foram ainda trazidas as chamadas “terras raras” da Ucrânia, rica em metais fundamentais na fabricação de produtos de alta tecnologia, que os EUA exigem como compensação pelo apoio dado ao esforço de guerra ucraniano. Também esse acordo poderá estar para breve.
Mas como se chegou aqui? Neste artigo, passamos em revista a história do conflito.
Um conflito com várias fases
Pode-se dizer que o conflito teve início, de facto, em 2014, na invasão da Crimeia pela Rússia. À época, Moscovo justificou a ação como uma resposta à queda do ex-presidente ucraniano Viktor Ianukovich, que havia sido destituído do cargo pelo novo parlamento, após meses de oposição e pressão popular. O exército russo entrou e ocupou a região da Crimeia, a qual anexou, posteriormente.
Logo após a anexação, eclodiu no leste da Ucrânia um forte movimento separatista (principalmente nas regiões de Donetsk e Lugansk, junto à fronteira com a Rússia) que queria fazer do Donbass uma região independente. O movimento, apoiado pelos russos, foi reprimido por Kiev e o conflito na região, que ficou conhecido como guerra do Donbass, terá causado mais de 14 mil mortes, entre civis e militares, de 2014 a 2021, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. A seguir a isto, a Rússia intensificou a sua influência sobre a região e as suas operações militares ao longo da fronteira com a Ucrânia, o que gerou tensão.
Oito anos depois, o cenário voltou a ficar mais agitado. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, eleito para o cargo em 2019, assumiu a vontade de organizar um referendo com vista a questionar a população sobre uma adesão à NATO, num movimento para dar mais segurança militar ao país. A Rússia, por sua vez, insistia que a expansão da NATO para o leste contrariava o compromisso assumido pela Aliança Atlântica nos anos 90.
Aderir à NATO significaria para a Ucrânia estar numa posição de segurança face à Rússia nunca vista. Isso porque, de acordo com o artigo 5.º da Convenção de Washington, que define as regras da NATO, um ataque a um país da organização significa um ataque a todos os outros. Ou seja, caso a Ucrânia fosse signatária do tratado e posteriormente atacada pela Rússia, todos os outros 32 países da organização teriam a obrigação de retaliar.
Diante de tanto conflito e sem um acordo de paz eminente, a 23 de fevereiro de 2022, Putin mandou milhares de veículos militares para junto da fronteira com a Ucrânia.
Durante a madrugada, os russos ultrapassaram a fronteira e a guerra oficialmente começou. A Rússia invadiu o território ucraniano sob a alegação de uma Operação Militar Especial que visava “desmilitarizar e desnazificar” a Ucrânia. A entrada de tropas ocorreu através da Bielorrússia [país aliado da Rússia], da Crimeia e da fronteira leste entre os dois países.
Locais onde a Rússia atacou a Ucrânia na primeira ofensiva, em 2022.
As primeiras investidas russas ocorreram nas cidades de Kherson, Mariupol e na capital Kiev, com lançamento de mísseis e ataques terrestres. Os dias a seguir foram de mais ataques, principalmente no leste da Ucrânia (região de Donbass).
Logo de início, a guerra mobilizou os EUA e a Europa, que passaram a fornecer apoio financeiro e militar à Ucrânia e aplicaram sanções à Rússia. Logo na primeira semana, a Alemanha e a União Europeia enviaram armas em apoio aos ucranianos. Em paralelo, aconteceu na Bielorrússia uma reunião entre os dois países em conflito na tentativa de um cessar-fogo. Mas sem um desfecho positivo, os ataques continuaram.
Em março de 2022, a Rússia atacava com muita intensidade. Tinha sob o seu domínio a cidade de Khelson e cercava Mariupol, uma cidade fundamental para o comércio da Ucrânia devido ao seu porto, um dos principais escoadores de produtos do país. Mas era também fundamental para a estratégia militar russa. Em pouco menos de um mês, 90% da cidade foi destruída.
Na altura, os russos investiam forte também contra Kiev. No dia 11, passaram a marchar em direção à capital com uma coluna militar de mais de 60 quilómetros de extensão, o que gerou grande tensão. Em face da violência russa, os países ocidentais passaram a ser ainda mais atuantes nos bastidores. EUA e Inglaterra passaram a sancionar produtos russos, enquanto o Conselho da Europa expulsou a Rússia de seu quadro.
Nas semanas seguintes, os ânimos acalmaram-se com a suspensão da coluna militar russa em Kiev e com a neutralidade ucraniana em relação à entrada na NATO. Entretanto, em nova reunião entre os países, dessa vez na Turquia, não houve acordo mais uma vez e a guerra prosseguiu. Com a suspensão da coluna militar, a Ucrânia retomou o controle da região de Kiev e os russos, em contrapartida, passaram a investir em regiões mais ao leste do país.
Nos bastidores, mais impedimentos à Rússia, que desta vez viu o seu carvão sancionado e seus clubes de futebol excluídos de competições da UEFA, e apoio adicional à Ucrânia, que recebeu, em maio, um pacote de 20 milhões de dólares dos países do G7 e mais 40 milhões de dólares dos EUA. Nesta altura, em menos de três meses, a guerra já havia feito 14 milhões de desalojados e seis milhões de refugiados ucranianos.
Em junho de 2022, a Rússia já controlava aproximadamente 20% do território ucraniano (percentagem que se mantém até hoje), principalmente as regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporijia e Kherson, áreas essas que Putin declarou que seriam “russas para sempre”. A partir de então, o ritmo de ataque diminuiu e o avanço russo fez-se mais lento.
Nos bastidores, mais sanções e bloqueios contra a Rússia por parte do ocidente. Porém, do outro lado, o contra-ataque de Putin: o fornecimento de gás à Europa foi fechado, fazendo com que os preços do produto subissem 30% no continente.
Já nos campos de batalha, a Ucrânia ensaiava uma contraofensiva: fortaleceu as operações na região de Kharkiv e, no mês seguinte, bombardeou a ponte entre Crimeia e Rússia, um dos principais pontos de passagem de abastecimento para os soldados russos.
Em dezembro de 2022, Putin mostrou-se aberto a negociar o fim da guerra, mas Zelensky negou qualquer possibilidade de diálogo até que todas as tropas russas fossem tiradas do país. Assim, o conflito continuou.
Nos meses a seguir, a situação não mudou muito. Com menor movimentação nos campos de batalha devido ao rigoroso frio do inverno ucraniano (cujas temperaturas mantêm-se abaixo dos zero graus) e mais movimentação política nos bastidores. O ocidente enviava cada vez mais apoio à Ucrânia, que com melhores condições financeiras e militares, passou a planear uma contraofensiva. A Rússia, por sua vez, fortificava as suas posições em território ucraniano.
Em junho de 2023, os ucranianos finalmente colocaram em ação um plano de contra-ataque, mas não tiveram sucesso. Após meses de trabalho e duras batalhas, não conseguiram superar a defesa montada pelos russos e recuperaram apenas 17 quilómetros de seu território.
Quatro meses depois, em outubro de 2023, teve início a guerra em Gaza, o que fez com que os países ocidentais, que antes se concentravam no Leste Europeu, passassem a repartir atenções com a situação no Oriente Médio.
Entretanto, Zelensky continuava a pedir mais apoio aos EUA e à Europa. Porém, o conflito começou a ser encarado com mais resistência por parte do ocidente, que já não via muitas alternativas para a resolução do embate.
No verão seguinte, já em 2024, a Ucrânia preparou uma nova contraofensiva, que desta vez resultou.
Em agosto, o exército ucraniano mobilizou mil homens, invadiu e ocupou o território russo de Kursk, a 200 quilómetros de distância de Kharkiv. Vladimir Putin, na ocasião, classificou a ação como uma “grande provocação”. Esta foi a primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial que o território russo foi invadido. De acordo com o governo ucraniano, mais de mil quilómetros quadrados de solo russo passaram a estar sob o seu domínio.
Nos últimos meses de 2024, a guerra chegou a um ponto considerado delicado. Após a Ucrânia fazer ofensivas dentro do território russo, usando mísseis norte-americanos e britânicos, Putin respondeu ordenando um ataque com um novo míssil hipersónico (chamado Oreshnik) com capacidade de alcance de 5 mil quilómetros. No mês seguinte, o líder russo desafiou os EUA para um “duelo de mísseis” para demonstrar ao ocidente a soberania da nova arma. “Que escolham qualquer instalação para atacarmos, digamos, em Kiev. Que concentrem aí todos os seus sistemas antiaéreos e antimísseis. E nós atacaremos com [o míssil] Oreshnik”, afirmou o presidente Russo.
A partir de então, as coisas só voltariam a mudar com a eleição de Donald Trump para a Casa Branca. O magnata, quando ainda era candidato, afirmou que, quando eleito, acabaria com a guerra em um dia. Logo após a posse, iniciou as negociações pelo fim do combate, que, como seria de esperar, não se resolveu nem resolverá em 24 horas,
Quem atuou na guerra?
Desde o início da guerra, era clara a diferença de poderio económico e militar entre as duas nações. Putin, inclusive, afirmou que conquistaria Kiev “em três dias”, o que não aconteceu. Ao longo do tempo, a Ucrânia conquistou cada vez mais força devido ao apoio financeiro e militar de norte-americanos e europeus, enquanto a Rússia se viu cada vez mais isolada por eles.
Putin, por sua vez, impossibilitado de negociar com a Europa, apoiou-se nas relações comerciais com países asiáticos e os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) para manter a sua economia viva em face dos embargos impostos pelo ocidente [foram 16 apenas da União Europeia].
Apesar das sanções, a União Europeia não conseguiu deixar de consumir produtos russos, principalmente pela necessidade de uso dos recursos fósseis russos. Desde o início da guerra, a Rússia exportou mais de 828 mil milhões de euros em gás natural, petróleo e carvão para todo o mundo, sendo que a União Europeia foi responsável por 205 mil milhões deste total, principalmente pelo uso de gás natural, usado no aquecimento das casas.
Apesar dos esforços ocidentais, as sanções não surtiram o efeito esperado na Rússia, que manteve a sua economia estável o suficiente para suportar os gastos com a guerra e fazer frente a uma Ucrânia apoiada pelos EUA e Europa.
Negociações
Pode-se dizer que a Guerra na Ucrânia nunca esteve tão perto de um fim quanto agora. Com Donald Trump como principal mediador, os países trabalham por um acordo. Porém, o líder americano não tem sido bem visto pelos ucranianos, uma vez que desde que voltou ao governo, os EUA mudaram sua posição oficial em relação ao combate.
No passado, o ex-presidente Joe Biden era abertamente pró-Ucrânia e enviava constantemente pacotes de ajuda ao país, além de ter criticado abertamente Vladimir Putin na cimeira da NATO, referindo-se a ele como um “louco assassino”.
Trump, por outro lado, mantém uma posição mais próxima de Putin e já criticou Zelensky em algumas ocasiões. No último dia 19, o líder norte-americano publicou na sua rede social Truth Social que o líder ucraniano era “um ditador sem eleições”, além disso, em outra ocasião, acusou a Ucrânia de ser responsável pelo início da guerra, afirmando que “nunca a deviam ter começado”.
Na última semana, oficiais dos EUA e da Rússia encontraram-se na Arábia Saudita para uma primeira conversa em direção a um acordo de paz. Porém, a ação foi criticada pela comunidade internacional por não incluir a Ucrânia, nem países europeus no encontro. Zelensky mostrou-se surpreendido e contrariado e já declarou que não vai haver acordo pela paz sem o envolvimento do seu país nas negociações.
Trump quer terras raras ucranianas
No início de fevereiro, os EUA apresentaram a primeira proposta de um possível acordo com a Ucrânia: a cedência de terras raras ucranianas em troca da assistência continua norte-americana. De acordo com Trump, essa troca serviria como uma garantia ucraniana à ajuda prestada pelos americanos. A primeira proposta foi recusada por Zelensky, que declarou que “não pode vender a Ucrânia” e que as terras pretendidas valem muito mais do que os EUA investiram no país, mas os dois países terão, entretanto, chegado a um acordo nesta matéria.
Zelensky deve visitar a Casa Branca, na sexta-feira (28), para assinar o acordo. Será o primeiro encontro desde a troca azeda de palavras dos dois líderes na sequência da cimeira entre EUA e Rússia em Riade.
As tais terras raras que Trump cobiça são minas com um grupo de 17 elementos químicos que são fundamentais para as indústrias altamente tecnológicas, como aeronáutica e espacial. Eles servem para a produção de chips eletrónicos, motores e ímans. Apesar do nome “raro”, os elementos não são escassos no mundo. O seu nome vem do facto de eles serem dificilmente encontrados na sua forma pura. E por estarem, geralmente, acompanhados de elementos radioativos (como o urânio), têm uma extração difícil, dispendiosa e muito poluente.
Além desses elementos, a Ucrânia também é rica em reservas de lítio e titânio, usados na fabricação de baterias e na ligação de metais com alta resistência. Ou seja, são fundamentais para as novas indústrias, cujo domínio está em disputa entre EUA e China. Apesar de ainda ter iniciado a extração, há mais de 450 mil toneladas de lítio sob o solo ucraniano, sendo que parte dele está sob domínio militar russo.
Sendo assim, essa questão pode ser determinante nas negociações pelo fim da guerra. Com territórios em disputa, EUA, Ucrânia e Rússia vão lutar por cada centímetro de terra. A Ucrânia, naturalmente, não quer perder territórios (ainda mais aqueles tão valiosos economicamente), a Rússia não deve querer abrir mão das regiões que conquistou e os EUA não querem que os metais parem nas mãos dos chineses (grandes aliados de Putin).
Editado por Filipa Silva