A doença celíaca é uma condição autoimune que exige mudanças drásticas na alimentação e no estilo de vida. Em entrevista ao JPN, pacientes e especialistas explicam as dificuldades de viver com a doença, desde o medo permanente de comer fora de casa ao preço elevado dos produtos sem glúten.

A alimentação é fundamental à vida. A privação de certos alimentos, como acontece com os celíacos, pode afetar os indivíduos a nível físico, emocional e social. Comer é mais do que uma necessidade biológica, é também um ato de prazer, partilha e cultura. Quando é feito um diagnóstico que exige restrições alimentares permanentes, como a intolerância ao glúten, adaptar-se pode ser desafiante, exigindo a reconfiguração de hábitos e a aprendizagem de alternativas.

Estima-se que, em Portugal, existam cerca de 100 mil pessoas diagnosticadas com doença celíaca, ou seja, 1% da população.

A doença celíaca “é uma doença autoimune causada por uma sensibilidade permanente ao glúten”, explica ao JPN a nutricionista Carolina Frias da Costa. Esta condição manifesta-se em “pessoas que sejam suscetíveis geneticamente” e não pode ser prevista, “a não ser por alguns sintomas que comecem a surgir”, afirma a especialista.

É importante sublinhar que nem todas as pessoas sensíveis ao glúten são celíacas. Como esclarece a nutricionista Sara Lopes de Sousa, a doença, sendo autoimune, leva a uma resposta imunológica do organismo, que “reage contra o próprio organismo” e provoca “alterações na parede do intestino”, que impedem a devida absorção dos alimentos ingeridos.

Já aqueles que sofrem de “sensibilidade ao glúten não celíaca têm sintomas, que podem ser semelhantes, mas não apresentam uma resposta imune”, conclui a profissional de saúde.

Longo processo de diagnóstico

Iara Claro, 21 anos, foi diagnosticada com doença celíaca há três anos, mas o processo para descobrir esta condição foi longo: “comia e tinha de ir a correr para a casa de banho. Ficava muitas vezes enjoada. Tive uma perda de peso enorme, perdi quase 20 quilos”, conta ao JPN.

Tive uma perda de peso enorme, perdi quase 20 quilos.

Foi assim que percebeu que algo não estava bem. Tinha 19 anos quando procurou ajuda médica, em setembro de 2022. Contudo, só em junho de 2023 recebeu a resposta que explicava os seus sintomas: “fui, inicialmente, aos médicos de clínica geral fazer exames, [mas] a doença celíaca foi descartada logo. Ninguém pensa que vai ter doença celíaca. A primeira coisa que pensam é intolerância à lactose”, expõe.

Iara Claro perdeu quase 20 quilos até ser devidamente diagnosticada. Foto: D.R.

A jovem só conseguiu o diagnóstico correto após lhe ter sido “recomendado um médico no privado” e, depois de “fazer uma endoscopia e uma biópsia”, veio a confirmação: era doente celíaca e teria que retirar o glúten da alimentação.

A história de Sandra Gonçalo, 48 anos, não é muito diferente. Só aos 33 descobriu a doença, após anos de sintomas ignorados: “andava sempre doente do estômago. Qualquer coisa que comia, ficava maldisposta”. “Ia ao médico e davam-me medicação para o estômago, diziam-me que era uma úlcera gástrica, mas aquilo [a medicação] deixou de fazer efeito. Foi nessa altura que me lembrei de ir ao privado, e foi assim que descobri que era intolerante ao glúten”, relata.

Sandra Gonçalo enfrentou muitas dificuldades para encontrar alimentos isentos de glúten nas imediações de Miranda do Douro. Foto: D.R.

O diagnóstico tardio não é incomum, embora “a maior parte seja feita normalmente até aos quatro anos” de idade, como explica a nutricionista Sara Lopes de Sousa. Para a especialista, esta demora deve-se, muitas vezes, ao facto de se “tratar o sintoma e não procurar a causa”, o que adia a correta identificação da doença.

Mas as respostas nem sempre chegam tarde. Mariana Martins, com 19 anos, descobriu que era celíaca ainda em criança, aos sete, após uns exames de rotina. “Fiz análises normais aos marcadores todos e reparei que tinha anemia ferropénica” (por défice de ferro), revela. Foi essa descoberta que levou o pediatra a suspeitar de um problema gastrointestinal e a pedir exames específicos ao glúten, que confirmaram a patologia.

Mariana Martins foi diagnosticada aos sete anos. Foto: D.R.

Os principais sintomas eram a baixa estatura, a anemia e as frequentes dores de barriga e articulares. Para além dos desafios físicos, Mariana Martins enfrentou dificuldades na adaptação à nova alimentação, principalmente devido à escassez de produtos sem glúten na altura. A estudante, natural de Aveiro, lembra-se de ter de “ir ao Porto ou a Lisboa” para conseguir comprar comida sem glúten, já que “em Aveiro não havia nada”.

O mesmo aconteceu com Sandra Gonçalo, natural de Miranda do Douro, que há 15 anos não encontrava produtos sem glúten onde vive: “não havia nada para substituir. Comprei uma máquina de fazer pão, comecei a fazer em casa e comecei a sentir-me melhor”.

“Deixei de comer, praticamente”

A falta de oferta teve repercussões na vida de Sandra: “Deixei de comer, praticamente. Emagreci muito. Entrei numa depressão porque não podia comer nada”.

A introdução de uma nova dieta pode ser muito desafiante. Iara Claro relata a experiência de ir jantar fora com a família, pela primeira vez, depois de ser diagnosticada: “tinha visto que o Burger King, por exemplo, tinha coisas sem glúten, que eram certificadas pela Associação Portuguesa de Celíacos (APC). E pensei ‘ok, ao menos sempre tenho o Burger King’. Deram-me um hambúrguer, que era só um hambúrguer no pão, mais nada. Não tinha batatas, porque disseram que ali não conseguiam fazer as batatas de forma segura. E não me deram bebida”. “Eu fiquei a olhar para aquilo e comecei a chorar no meio da zona de restauração”, admite.

Existem cada vez mais alimentos sem glúten nas superfícies comerciais, mas o preço dos produtos continua a ser um adversidade. “Até se vai conseguindo arranjar alguns produtos relativamente em conta sem glúten, mas, maioritariamente, é mais caro”, aponta Carolina Frias da Costa.

Carolina Frias da Costa, nutricionista. Foto: D.R.

A restauração também continua a ser um entrave para os celíacos. Tânia Neves, nutricionista da Associação Portuguesa de Celíacos, explica ao JPN que a única obrigação “que está na lei é a de um restaurante facultar a lista de alergénios quando solicitada, mas o celíaco, ao pedir a lista de alergénios, muitas das vezes, não encontra o glúten, porque aquele prato não é composto por nenhum ingrediente com glúten, mas pode ter por contaminação”, isto é, os alimentos estiveram em contacto com o glúten de alguma forma.

A especialista considera que a “legislação nos restaurantes é insuficiente”, assim como Susana Tavares, presidente da APC, que avalia a sensibilidade da restauração para a doença celíaca como “muito baixa” e afirma que “uma das principais atividades” da associação passa por “tentar ter restaurantes certificados”.

Comer em restaurantes ou na casa de outras pessoas é um obstáculo permanente na vida de um celíaco, que pode gerar um medo constante. Iara Claro admite que esta angústia é “como se fosse paranóia”: “se me sentir enjoada, vou pensar logo no que é que comi. Faço uma lista do que comi nos últimos dois ou três dias para ter a certeza de que não pode ter havido nada que me faça ficar doente e entro logo em pânico”, reconhece.

Este receio constante pode impactar significativamente a qualidade de vida e criar ansiedade e insegurança em situações sociais. Como destaca a nutricionista Carolina Frias da Costa, “a psicologia deve intervir sempre desde o diagnóstico”, ajudando os doentes celíacos a lidar com o medo da contaminação e a adaptarem-se à nova realidade alimentar.

Como é ser uma criança celíaca

Para as crianças, este desafio pode ser ainda maior. A alimentação desempenha um papel central no crescimento, na socialização e na rotina escolar, o que torna a adaptação a uma dieta isenta de glúten particularmente exigente. O diagnóstico precoce é essencial para evitar complicações a longo prazo, mas também para garantir que a criança aprenda, desde cedo, a gerir a alimentação de forma segura.

Bruna Ribeiro, mãe de “João”, nome fictício, conta ao JPN as dificuldades que enfrentou quando, aos quatro anos, o filho foi diagnosticado com doença celíaca: “foi muito difícil, inicialmente. Para mim também era novidade e a maior dificuldade que tive foi não ter conhecimento de ninguém que fosse celíaco, ninguém mesmo”, declara.

Outro desafio na vida de uma criança celíaca é o dia a dia na escola, onde as diferenças alimentares podem torná-la mais suscetível à exclusão social. Bruna Ribeiro explica que fez tudo para que o filho não se sentisse diferente dos colegas: “quando sabia que havia aniversários, fazia em casa uma fatia de bolo para ele levar e cantar na mesma com as outras crianças”. “Ele queria estar integrado”, reforça.

Quando sabia que havia aniversários, fazia em casa uma fatia de bolo para ele levar e cantar na mesma com as outras crianças.

A entrevistada revelou que, no início, quando “João” foi diagnosticado, uma das formas que encontrou para lhe explicar a doença foi através de histórias: “eu cheguei a contar histórias ao ‘João’ sobre um menino, que, embora fosse igual às outras crianças, ao nível da alimentação, teria de ter mais cuidado, porque, se não, poderia começar a doer-lhe a barriga”, relembra.

Bruna Ribeiro, assim como os outros entrevistados, também menciona que “os produtos poderiam ser mais acessíveis porque estas crianças e estes adultos não têm culpa de ter este problema”, frisa. Para a mãe de “João”, a composição dos alimentos sem glúten também deveria ser revista, porque, “embora haja muita diversificação a nível de produtos, muitos deles contêm muito açúcar”.

Carolina Frias da Costa explica que, “como [esses alimentos] não têm glúten”, é necessário “compensar com outro tipo de aditivos ou produtos como gorduras saturadas ou açúcares”, de forma a “tornar o alimento mais interessante”, tanto ao “nível da textura como do paladar”, o que tem implicações no valor nutricional dos alimentos.

Dieta sem glúten não é mais saudável

A nutricionista Sara Lopes de Sousa refletiu sobre as mensagens erróneas que, por vezes, são disseminadas nas redes sociais: “acho que muita desinformação, principalmente ao nível das redes sociais”, alertou.

De acordo com a especialista, a alimentação segue tendências como qualquer outro tema e, frequentemente, surgem modas alimentares sem base científica.

O glúten é um dos muitos exemplos de como informações incorretas podem levar a mudanças alimentares desnecessárias: “há a moda do glúten e, muitas vezes, também há reações psicossomáticas. Alguém lê que o glúten pode provocar isto ou aquilo e, de repente, começa a sentir esses sintomas. Depois, faz restrições alimentares que não fazem sentido”, adverte.

Sara Lopes de Sousa, nutricionista. Foto: D.R.

O perigo desta desinformação vai além da eliminação desnecessária do glúten. “Isto pode levar a desequilíbrios nutricionais e, às vezes, dar a volta é muito complicado”, reforça Sara Lopes de Sousa.

A nutricionista destacou a importância de consultar profissionais de saúde antes de adotar qualquer mudança alimentar radical, sublinhando que uma dieta sem glúten não é, por si só, mais saudável para quem não tem doença celíaca ou sensibilidade ao glúten diagnosticada.

Necessidade de mais apoios

As pessoas com doença celíaca podem incluir, na declaração de IRS, como despesas de saúde sujeitas a IVA reduzido, os gastos com alimentos sem glúten“, afirma a presidente da APC, Susana Tavares, que acrescenta: “gostaríamos que a doença celíaca fosse tratada como outras doenças crónicas, que têm muito mais apoios, nomeadamente a diabetes”.

A APC tem trabalhado com o Governo e com os grupos parlamentares, focando-se, entre outras questões, no abono retirado aos celíacos. Inicialmente atribuído a pessoas com doença celíaca, este apoio gerou problemas, já que foi incluído numa portaria destinada a doentes com deficiência, apesar de, como explica Susana, “os celíacos não terem deficiência”. A falta de entendimento e a recente alteração da portaria, em 2024, que excluiu os celíacos do benefício, evidenciam a necessidade de uma abordagem mais adequada, alerta a APC.

Editado por Filipa Silva