Virgílio Castelo protagoniza no Teatro Carlos Alberto a segunda parte de um díptico teatral sobre a temática das migrações. O JPN acompanhou o ensaio de imprensa.
Michelle, interpretada por Francisca Sobrinho, e Leonel, a personagem de Virgílio Castelo. Foto: Francisco Lobo/TNSJ
O palco do Teatro Carlos Alberto recebeu, esta quinta-feira (6), a mais recente criação de Tiago Correia, “Sul”, um drama familiar intergeracional que termina numa “grande tragédia coletiva da qual todos nós somos responsáveis”.
“Sul” é a segunda parte de um díptico teatral iniciado, em 2023, com “O Salto”, peça que se debruçou sobre a grande onda de emigração portuguesa dos anos 60 e 70. “Sul” convida o público a questionar a forma como Portugal acolhe hoje os imigrantes e como os cidadãos reagem politicamente neste tema.
“Se na altura d´’O Salto’ temos um grupo de jovens a tentar emigrar para uma Europa desconhecida, que foi o que faziam milhares de portugueses durante a ditadura, agora temos pessoas que estão em circunstâncias análogas que vêm para cá à procura de uma vida melhor”, refere o encenador da peça ao JPN, à margem do ensaio de imprensa.
Tiago Correia construiu o primeiro esboço de “O Salto” em 2021, como uma peça de época que “apesar de se passar no início dos anos 70, não podia ser mais sobre aquilo que estamos a viver hoje.” Segundo o encenador, o par de peças procura desmistificar o emigrante como um “bode expiatório” criado no sentido de ser “uma ferramenta fácil para dominar a opinião pública através do medo do desconhecido”.
Este díptico resulta de um trabalho de investigação. Tiago Correia desenvolveu “laboratórios” em Paris com lusodescendentes, tanto jovens como adultos, para além de ter aprofundado a sua investigação no Observatório do Tráfico de Seres Humanos do Alentejo: “percebi a realidade do tráfico e que situações é que acontecem concretamente no nosso país”.
O encenador enfrentou desafios, nomeadamente, a escrever sobre imigrantes, tendo em conta que não partilha essa experiência. “Eu sou um privilegiado”, explicou Tiago Correia, “então, recusei-me a falar por eles. Nós não temos aqui ninguém a fazer de imigrante, tudo se passa do lado do privilégio. É uma autocrítica.”
Uma peça intensa e emocional
Entre “O Salto” e “Sul”, atravessam-se 50 anos da história portuguesa e também da história de uma personagem comum às duas peças, Leonel, jovem em “O Salto” e idoso em “Sul”. O enredo termina com uma família deixada para trás por Leonel e retorna agora com a história da sua neta Michelle, que vem para Portugal à sua procura.
Essa personagem é interpretada por Virgílio Castelo, que não hesitou em participar em “Sul”, mesmo antes de ter visto “O Salto”. “Quando descobriu, quis ler e ainda ficou mais entusiasmado”, revelou Tiago Correia, “foi interessante.”
Virgílio Castelo aprendeu com a personagem que “perante uma situação de necessidade, as pessoas fazem as coisas mais inesperadas e, às vezes, não conseguimos impor-nos à circunstância que nos acontece”.
As passagens do ator português por Paris permitiram-lhe perceber melhor o contexto da sua personagem: “Numa altura em que havia muita imigração conheci bem alguns bairros onde os portugueses viviam”, disse o ator.
O ator lisboeta é conhecido por novelas, mas é no palco do teatro que se sente em casa: “Gosto muito mais de fazer teatro do que televisão ou cinema, portanto, qualquer hipótese de fazer teatro para mim é sempre uma experiência muito agradável.” O facto de ser uma peça de texto original português também cativou Virgílio Castelo, assim como a equipa jovem com quem trabalhou. Para o ator “é muito enriquecedor vir fazer uma peça com uma equipa destas, que acrescenta aos vários olhares com que eu já trabalhei ao longo destes anos todos e que me torna mais rico”.
Francisca Sobrinho, que interpreta a personagem principal, Michelle, não tinha qualquer tipo de bases linguísticas no que toca ao francês. “Tive que estudar um bocadinho de francês e de estar com pessoas, como por exemplo, os lusodescendentes que me ajudaram mesmo na própria dicção de algumas das falas da Michelle”, revelou ao JPN. A experiência de interpretar Michelle, “uma jovem mulher que vem à procura de respostas” foi muito “exigente”: “foi desafiante do ponto de vista emocional, porque é uma situação levada ao limite”, explicou a atriz.
Para Francisco Pereira de Almeida, o último a entrar em cena, o grupo de três atores que forma o elenco de “Sul”, ofereceu uma experiência intimista de trabalho: “Aprendemos todos os dias a olhar para os nossos colegas, tanto o Virgílio, que é um ator já bastante experiente, como a Francisca, que, como eu, é bastante nova, ao vê-los a reagir dia para dia às questões que vão aparecendo. Isso para mim tem sido o mais enriquecedor nesta experiência: trabalhar com um grupo tão coeso e curto, em que estamos sempre muito atentos aos trabalhos uns dos outros.”
A questão do esquecimento é a principal razão pela qual o projeto se transformou num díptico. “Foi isso que me fez fazer ‘O Salto’”, explica Tiago Correia. “Eu comecei por pensar em fazer o ‘Sul’, mas depois percebi que primeiro podia recordar quem somos, para agora perceber para onde é que estamos a caminhar”, explicou.
A importância do passado
A questão do esquecimento é algo que inquieta Tiago Correia: “Acho que há uma espécie de um fenómeno nas novas gerações de não querer saber sobre o passado, porque o passado é um erro. O passado é a escravatura, o patriarcado, é tudo aquilo que está errado na história. Então, há uma espécie de uma recusa do passado, de só se querer construir tudo de novo no presente.”
Estas foram razões que o levaram a transformar o projeto num díptico. “Foi isso que me fez fazer ‘O Salto’”, explica Tiago Correia. “Eu comecei por pensar em fazer o ‘Sul’, mas depois percebi que primeiro podia recordar quem somos, para agora perceber para onde é que estamos a caminhar”, explicou.
Ainda que “Sul” encerre o projeto de investigação sobre a temática das migrações, Tiago Correia promete continuar a seguir a sua essência da “procura por momentos de rutura na vida das pessoas e nas relações humanas.” Para 2026, conta já com novidades – irá estrear uma peça sobre a liberdade de imprensa. O encenador acredita que “no fundo [uma peça sobre as migrações e uma peça sobre a liberdade da imprensa] têm uma mesma luta [por trás] que é tentar continuar a contribuir para o pensamento crítico”.
A peça estará no Teatro Carlos Alberto de 6 a 16 de março. Os bilhetes estão à venda na BOL e apresentam um custo de 6 euros.
Editado por Filipa Silva