Estima-se que 10% das mulheres em idade reprodutiva em Portugal têm esta doença. Segundo a OMS, a endometriose é uma das 20 doenças mais dolorosas do mundo. Este é o terceiro de cinco artigos sobre a saúde feminina que desenvolvemos no âmbito do Dia da Mulher.
Mariana Gomes tem 28 anos e esperou uma década para receber o diagnóstico de endometriose profunda. Devido à doença, teve de abandonar a área profissional de sonho – farmácia – e, neste momento, luta para conseguir fazer uma cirurgia no estrangeiro. Os primeiros sintomas começaram aos 11 anos com hemorragias intensas, que levaram a uma anemia. Prescreveram-lhe uma pílula, que manteve os sintomas estáveis até aos 17 anos.
Uma mulher sofre com endometriose quando o tecido semelhante ao revestimento interno do útero (endométrio) cresce fora dele, afetando órgãos como ovários, trompas, bexiga e intestino. O tecido endometrial que cresce fora do útero reage às alterações hormonais do ciclo menstrual, provocando uma inflamação crónica, formação de cicatrizes abdominais, fluxos menstruais muito intensos, entre outros problemas, quase sempre acompanhados de dor intensa – pélvica, menstrual, na relação sexual. Este sofrimento físico pode ser incapacitante. Apesar de ainda não haver cura, há tratamentos que permitem controlar as consequências desta condição.
Nessa idade, o estado de saúde agravou-se, as dores intensas durante a menstruação deixavam-na de cama e o iboprufeno não amenizava a dor. Mariana passou por vários ginecologistas que desvalorizaram as queixas apresentadas: “diziam que era normal, porque fazia parte de ser mulher”. A jovem começou a tomar uma nova pílula, mas, pouco tempo depois, a situação voltou a piorar.
Numa luta incessante por respostas, Mariana voltou a procurar ajuda médica e deparou-se com uma “realidade bastante dura”. Os médicos diziam-lhe que a dor era psicológica. As soluções apresentadas eram sempre as mesmas: “a cada médico ginecologista que ia, era uma pílula diferente”. Mais tarde, a jovem fez uma ressonância magnética, cujos resultados não acusaram qualquer alteração que pudesse indiciar ter endometriose. Mariana ouviu, mais uma vez, que a dor que sentia podia ser psicológica, mas não desistiu.
Mariana luta por uma cirurgia no estrangeiro. Foto: Mariana Gomes
Por volta dos 26 anos, os sintomas pioraram severamente: “comecei a ter diarreias associadas, a sentir muita dor na perna esquerda, dificuldade para me mover e dores cada vez mais incapacitantes”, descreveu. Numa ida às urgências, foi encaminhada para fazer uma TAC que resultou numa “suspeita de endometriose”. Para Mariana, foi um passo marcante na luta pelo diagnóstico. Mais tarde, voltou a ir ao privado, onde realizou mais uma TAC, cujo resultado indicou novamente que não se verificavam alterações.
Em abril do ano passado, determinada em obter um diagnóstico, Mariana saiu da Madeira, de onde é natural, rumo a Lisboa. Depois de alguns exames, foi diagnosticada com endometriose profunda e adenomiose difusa, uma doença que afeta a parte interna do útero. “Sabia que tinha algo, só não sabia que era tão grave. Fui à procura de um diagnóstico, descobri dois e nos estágios mais graves da doença”, conta ao JPN.
Neste momento, e com o estado de saúde a piorar, Mariana vê-se com poucas soluções além de uma cirurgia. A jovem contou ao JPN que faz acupuntura, é seguida por uma nutricionista especializada, toma o óleo CBD (canabidiol, componente da canábis) em 40%, uma percentagem que já está a deixar de ser eficaz para atenuar as dores. Mais recentemente, apostou na mesoterapia.
A endometriose está também a afetar a mobilidade de Mariana: “às vezes, coloco o pé no chão e começo a sentir choques. É difícil estar muito tempo em pé, é difícil estar muito tempo sentada. Acredita-se que [o tecido endometrial] esteja mesmo a infiltrar-se nos nervos”.
A jovem está a tentar fazer uma laparoscopia no estrangeiro, com uma equipa que reúna especialistas de várias áreas. “Se tiver uma equipa multidisciplinar, o corpo vai ser olhado de cima a baixo e isto faz com que as cirurgias de repetição não existam”, justifica.
Mesmo antes de receber o diagnóstico, Mariana criou uma página no Instagram e no Tik Tok para partilhar a sua luta. A jovem também abriu um gofundme, para ajudar a arrecadar 25 mil euros, o valor necessário para realizar a cirurgia em Itália. Para Mariana, viver com endometriose é como “morrer enquanto se está viva”. “Viver assim, muitas vezes, não é viver, é sobreviver”, conclui.
Cirurgia devolve qualidade de vida a Anabela
Anabela Rocha foi submetida a uma laparoscopia e tem boas expectativas para o futuro. Foto: Anabela Rocha
A desvalorização das dores e o tempo prolongado até receber um diagnóstico é uma expriência partilhada por Anabela Rocha, de 24 anos. A jovem começou também a ter os primeiros sintomas aos 11 anos. “As idas para a urgência com perdas de sangue e dores eram muito frequentes, desmaiava mesmo com a dor e com a quantidade de sangue que perdia e diziam-me sempre ‘é normal’. Aos 13 anos, começou a ser absurdo”, relatou ao JPN.
As queixas persistiram, o que levou Anabela a procurar um ginecologista, que lhe prescreveu a pílula, na expectativa de melhorar os sintomas, mas tal não aconteceu. Cansada das mesmas respostas e sem nenhum diagnóstico, decidiu procurar outra opinião médica, visto que “as dores estavam cada vez mais insuportáveis” e não conseguia trabalhar. “Era como se estivesse a ter contrações para ter um filho, era como se o corpo quisesse expelir alguma coisa”, descreveu.
Anabela recorreu a um ginecologista no privado que lhe recomendou a utilização de um DIU (Dispositivo Intrauterino), em 2022. A jovem contou ao JPN que foi “bem enganada” e descreve que o processo foi muito traumático. Depois, as dores pioraram e as perdas de sangue passaram a ser constantes. Anabela recorda que, durante este período, numa ida às urgências, as dores eram tão intensas que chegou a pensar que “estava a sofrer um aborto”, mais uma vez, os médicos desvalorizaram os sintomas, “deram uma injeção e mandaram[-na] embora”.
Só em maio de 2023 teve a primeira consulta com o médico que a acompanha até hoje, através do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Passou mais de um ano até receber o diagnóstico. A jovem sentiu um grande alívio, finalmente “tinha um nome para as dores” e “não era nada da cabeça”. Assoberbada pelo diagnóstico, fez alguma pesquisa e encontrou a Associação MulherEndo, onde encontrou aconselhamento: “‘Tenho endometriose e agora?’ Lembro-me perfeitamente que esta foi a primeira frase que lhes enviei. Deram imenso colo que, confesso, era o que estava a precisar”.
Anabela começou a ser seguida por uma nutricionista especializada em endometriose e a fisioterapia pélvica também foi um elemento fundamental para atenuar os sintomas. A jovem revelou ao JPN que gasta cerca de 300 euros mensais em sessões. Em janeiro deste ano, foi submetida a uma laparoscopia. A recuperação tem tido altos e baixos, mas a jovem tem boas expectativas para o futuro.
MulherEndo batalha ao lado das pacientes
Susana Fonseca é a fundadora e presidente da MulherEndo. Foto: Susana Fonseca
A MulherEndo – Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose nasceu em 2013 pelas mãos de Susana Fonseca, quando recebeu o diagnóstico de endometriose. A responsável explicou ao JPN que se sentia sozinha, encontrava pouca informação sobre este problema e, por isso, surgiu a “vontade de mudar essa realidade no país”. Hoje, a associação tem 800 associadas, que com o pagamento de uma quota anual de 20 euros, podem usufruir de diversas vantagens, como o acesso a descontos em entidades parceiras, aulas de pilates clínico online a uma “preço social” e sessões temáticas todos os meses.
Com mais de dez anos de experiência, a associação é um pilar para a difusão de conhecimento e aconselhamento sobre endometriose, em Portugal. A MulherEndo faz, por exemplo, sessões de sensibilização, em escolas e universidades, para que “as meninas, quando começarem a ter sintomas, não acreditem que é normal e possam procurar ajuda”, justifica Susana.
Como resultado da petição criada pela associação em 2022, desde o início deste ano, o Estado comparticipa em 69% o custo dos medicamentos para a endometriose, de modo a torná-los mais acessíveis às cerca de 350 mil portuguesas que sofrem com esta condição.
A presidente avança que a próxima luta é direcionada para o regime de faltas justificadas remuneradas para mulheres com endometriose, uma das medidas de um projeto-lei apresentado pelo Bloco de Esquerda, aprovado no parlamento em outubro de 2024, mas que ainda não está em vigor.
Multidisciplinariedade é essencial no tratamento
João Sequeira Alves é ginecologista e lida diariamente com a endometriose.
O JPN falou com o ginecologista João Sequeira Alves, que acompanha de perto mulheres com endometriose. O especialista explica que a faixa etária predominante que chega até si com índicios de endometriose, é dos 30 aos 40 anos. Muitas destas mulheres deixaram de tomar a pílula e, por isso, começaram a ter sintomas mais evidentes.
Oito anos é o tempo médio de diagnóstico da doença e o profissional sustenta que esse período longo se deve, essencialmente, a dois fatores. Em primeiro lugar, por uma questão cultural, porque as dores menstruais, “toda a gente diz que são normais. A pessoa até pode ter dores incapacitantes, mas achar que é normal.”, explica o médico. Para além disso, os vários profissionais de saúde podem não estar suficientemente alerta para a doença: “Se nós não conhecemos bem a doença, também não a sabemos diagnosticar.”
O médico explica que a pilula é, em primeira instância, o tratamento a seguir, mas por vezes torna-se necessário passar para um tratamento multidisciplinar como a aposta na fisioterapia pélvica e numa nutrição especializada, por exemplo. Em graus da doença mais críticos, a cirurgia é a opção recomendada.
Para o profissional é importante encontrar um tratamento adequado de forma a obter “ um ponto de equilíbrio em que a pessoa se sinta confortável e sem dor.”
Quando o próximo passo no tratamento é a laparoscopia, esta só é possível com uma equipa multidisciplinar: “o objetivo é tirar a doença toda e isso muitas vezes só é possível mesmo com o apoio de outros colegas. A equipa multidisciplinar envolve, não só, a parte de caráter nutricional, mas também a cirurgia geral, a urologia, várias áreas dentro da cirurgia geral, e também a cirurgia cardiotorácica”, exemplifica.
Constança Carreira ajuda a atenuar as dores que várias mulheres com endometriose sentem.
Fisioterapia pélvica fomenta conexão com o próprio corpo
Uma dos tratamentos para a endometriose é a fisioterapia pélvica, componente que atua diretamente na sintomatologia. Constança Carreira é fisioterapeuta e ao seu consultório chegam várias mulheres com “dor pélvica crónica, dor com a relação sexual e dor incapacitante durante a menstruação”. Procuram a sua ajuda com objetivo de melhorar a função muscular, nomeadamente no relaxamento.
Este tipo de fisioterapia tem também outras vantagens: o ganho da consciência corporal, o autocuidado e a sensibilidade. Constança Carreira contou ao JPN que com o diagnóstico muitas mulheres “vão perder a conexão que têm com o próprio corpo, vão deixar de se conhecer, vão achar que tudo é dor e vão tentar afastar-se o máximo possível da sua saúde”, justifica. A resposta do SNS para esta fisioterapia não é suficiente, o que leva muitas mulheres a recorrer ao privado. Nas suas consultas, a fisioterapeuta conta que cada paciente tem um plano personalizado e autónomo de forma a que possa dar continuidade aos exercícios em casa.
Editado por Filipa Silva