A lenda do fantasma da Estação de São Bento tem atravessado gerações, dada a relevância que assume no conhecimento sobre a história do local. O JPN questionou o historiador e arqueólogo Joel Cleto sobre este assunto e foi àquela que é considerada uma das estações ferroviárias mais bonitas do mundo, para perceber se quem lá passa conhece esta narrativa tradicional.

Estação de São Bento, ícone do centro histórico do porto, foi fundada em 1916. Foto: Bárbara Sequeira Pinto/JPN

A Estação de São Bento é um dos mais icónicos pontos históricos do Porto e é palco de uma lenda que tem atravessado gerações: a suposta aparição do fantasma de uma freira, baseada em relatos de vultos sombrios, passos que ecoam durante a noite e arrepios inexplicáveis, que alimentam o mistério e suscitam curiosidade a quem conhece a história.

A lenda remonta ao final do século XIX, quando a estação foi construída no local onde antes existia o Mosteiro de São Bento de Avé-Maria. Em 1834, foi decretada a extinção das ordens religiosas em Portugal. A medida de Joaquim António de Aguiar, mais conhecido por “mata frades”, exigia o fim das ordens masculinas, a proibição a novas freiras de professarem os seus votos e a extinção dos conventos, logo após a morte da última freira residente.

Foram tempos de grandes dificuldades para as ordens religiosas femininas, encapsuladas num tempo que já não lhes pertencia. O convento de São Bento de Avé-Maria não foi exceção, no entanto, a última freira apenas faleceu em 1892 (58 anos depois do decreto), tendo atrasado a construção da estação ferroviária.

Estação com “ambiente misterioso”

Teresa Rego é uma das muitas pessoas que passam por ou utilizam o espaço e já ouviram falar da lenda: “sim, já ouvi falar. Sou um pouco cética, mas confesso que esta estação tem um ambiente meio misterioso, principalmente, quando está mais vazia. Se alguém me dissesse que sentiu algo estranho aqui, não descartaria logo a possibilidade de ter a ver com a lenda”.

Entre os utilizadores que sabem da lenda, há quem, como Ricardo Lemos, acredite que pode haver algo mais do que simples mitos. “Dizem que, às vezes, se vê um vulto escuro a andar pela estação, principalmente, à noite. Acredito que pode haver algo sobrenatural aqui, porque lugares antigos, com tanta história, acabam por guardar certas energias”, contou ao JPN.

Sandra Rego, funcionária da estação há um ano e meio, admite que já ouviu diversos relatos de colegas, mas não partilha da mesma experiência: “alguns juram que já viram sombras ou ouviram ruídos estranhos, mas eu nunca vi nada”.

Para o guia turístico Miguel Pinto, independentemente de serem reais ou não, as lendas têm um papel importante na identidade da cidade e, por isso, costuma partilhá-la com os turistas: “a lenda do fantasma da Estação de São Bento é uma das muitas histórias misteriosas do Porto. A estação já é fascinante pelos azulejos e pela história, mas uma boa lenda dá-lhe um toque especial, especialmente para os turistas”.

As lendas como forma de preservação da história

O historiador e arqueólogo Joel Cleto, em conversa com o JPN, destaca a importância das lendas como património imaterial e como fontes valiosas de pistas históricas e arqueológicas. Embora muitas sejam associadas ao imaginário, a maioria contém elementos ou fundamentos reais que ajudam a compreender o passado. Em entrevista ao JPN, Joel Cleto citou o poeta popular António Aleixo: “a mentira, para ser segura e atingir profundidade, tem que trazer à mistura qualquer coisa da verdade”.

Nos seis livros que escreveu sobre lendas, Joel Cleto analisa e demonstra os elementos ficcionais de cada uma, de forma a valorizar os aspetos verídicos que fornecem pistas sobre acontecimentos ou locais históricos. Exemplo disto são as lendas associadas aos “túneis dos mouros” e aos “tesouros dos mouros”, que, embora, geralmente, não estejam diretamente ligadas à presença muçulmana, são indicadores de locais com vestígios arqueológicos relevantes.

A lenda do fantasma da última freira da Estação de São Bento exemplifica essa relação entre mito e realidade histórica. A estação foi erguida no local onde antes existia o Mosteiro de São Bento de Avé Maria, fundado no início do século XVI pelo rei D. Manuel I. A lenda remete para um evento real, nomeadamente, a extinção das ordens religiosas em Portugal em 1834. As freiras puderam permanecer até ao fim das suas vidas, sendo que a última a permanecer neste convento, Maria da Glória Dias Guimarães, que deu origem à lenda, faleceu a 17 de maio de 1892.

Antes da morte da religiosa, houve um debate na cidade sobre a construção da estação: demolir o convento por completo ou preservar a parte da igreja. Casos semelhantes no Porto, como a Igreja dos Congregados e a Igreja de São Francisco, onde existiram também conventos, mostraram que era possível uma solução de compromisso. No entanto, optou-se por demolir todo o mosteiro, o que contribuiu, na visão de Joel Cleto, para dar força à crença no fantasma a freira que chora pela destruição do seu mosteiro. Uma versão alternativa sugere que, em vez de chorar, a freira riria, uma vez que a sua longevidade atrasou a construção da estação ferroviária, inaugurada em 1916.

Para Joel Cleto, a lenda de São Bento não só adiciona um elemento misterioso ao património da cidade, como também ajuda a manter viva a memória do mosteiro. O historiador acrescentou que as narrativas tradicionais têm um papel essencial na preservação do património histórico: “grande parte das pessoas, apesar da estação se chamar São Bento, não associa isso ao facto de ali ter existido um mosteiro chamado Mosteiro de São Bento e, portanto, para muitos, é graças à lenda que o sabem”.

Editado por Filipa Silva