As dificuldades na apreensão da linguagem têm levado muitos pais e educadores a recorrer à terapia da fala. O JPN conversou com especialistas que destacam a pandemia, a falta de tempo de qualidade passado com a família e a elevada exposição aos ecrãs como as potenciais causas.

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A exposição excessiva aos ecrãs é uma das causas apontadas para o aumento das dificuldades na apreensão da fala nas crianças. luceliaribeiro/Flickr

A produção de alguns sons e a construção frásica são algumas das dificuldades na aquisição da linguagem que, a par do vocabulário pouco alargado, têm levado mais crianças portuguesas a precisar de terapia da fala. É pelo menos essa a perceção de educadores e especialistas na área da fala.

Rosa Coelho, educadora há 41 anos no ensino pré-escolar, acompanha diariamente crianças dos três aos seis anos. A pedagoga infantil afirma que “cada vez há mais crianças com problemas de comunicação”, algo que, na sua perspetiva, está ligado ao ambiente social no qual estão inseridas.

A educadora defende que o tempo para a criança experimentar, errar e resolver problemas por si própria é essencial para o desenvolvimento. No entanto, Rosa Coelho considera que a sociedade atual impõe uma exigência de perfeição que inibe esse processo: “[é necessário] ter espaços onde a criança tenha oportunidade de fazer, de experimentar, de errar. Hoje não é possível [existir] um filho imperfeito, um filho que não saiba fazer”, reitera.

A profissional reflete ainda sobre o facto de, muitas vezes, os pais, por excesso de preocupação e pressa, anteciparem e resolverem todos os problemas das crianças, o que pode comprometer o desenvolvimento da sua autonomia e capacidade de comunicação. “Não dão oportunidade à criança de escolher, por exemplo, o que vai vestir. (…) Esta comunicação não está a ser feita porque os pais, as mães, os cuidadores estão cheios de coisas dentro da cabeça. Acho que este stresse social queima etapas“, sublinha Rosa Coelho.

Ana Paula Castro, coordenadora técnica e pedagógica numa creche e ATL, que trabalha com crianças há mais de 20 anos, conta, em entrevista ao JPN, que só a partir de 2020 teve crianças a frequentar sessões de terapia da fala, continuando a ter atualmente. Embora reconheça um aumento das dificuldades na aquisição da fala, a profissional destaca que, atualmente, existe uma maior consciencialização para esta componente do crescimento: “não quer dizer que não tivessem dificuldades, quer dizer que não eram detetadas ou não eram valorizadas o suficiente para terem acompanhamento”.

Apesar desta constatação, a coordenadora técnica reconhece que, ao longo dos anos, têm vindo a surgir “imensas dificuldades”, tais como “alterações no discurso, vocabulário reduzido, omissão de sílabas” e acrescenta que “as crianças começam a falar muito mais tarde”.

Pandemia, falta de tempo e comportamento dos pais

Anabela Alvarenga, terapeuta da fala há 15 anos, confirma que “houve um aumento significativo” dos problemas de aquisição da linguagem e atribui parte da responsabilidade à pandemia, que originou uma falta de socialização e de interação, além da “utilização das máscaras”, que dificultava a observação dos movimentos articulatórios.

O uso excessivo de dispositivos eletrónicos é um dos principais fatores que contribuem para estas dificuldades, de acordo com a terapeuta da fala: “temos crianças agora com quatro, cinco anos que têm um telefone delas. O aumento do tempo de exposição aos ecrãs tem sido cada vez maior, o que faz com que, em vez de interagirem com as famílias e os pais, fiquem mais isoladas, comprometendo essa interação. Portanto, a linguagem vai ficando cada vez mais para trás”, conclui.

Temos crianças agora com quatro, cinco anos que têm um telefone delas.

No mesmo sentido, São Luís Castro, investigadora no Gabinete de Fala e docente na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), reforça que a pandemia teve um impacto profundo no desenvolvimento das crianças, não apenas na linguagem, mas também na aprendizagem e na socialização. “Teve um impacto significativo nas aprendizagens, na motivação para aprender e até na convivialidade social, pois as pessoas habituaram-se a interagir mais com o computador e com personagens virtuais do que com outras pessoas”, enfatiza.

A investigadora reconhece ainda o impacto dos dispositivos eletrónicos neste cenário e alerta para o facto de “cada vez mais as crianças estarem presas ao ecrã”. A docente da FPCEUP compara este fenómeno a “culturas onde é proibido falar com as crianças”, o que faz com que “elas desenvolvam a fala mais devagar e, portanto, comecem a falar mais tarde”.

“Por analogia, numa cultura em que a criança, desde que começa a gatinhar, está inserida num meio tecnológico repleto de imagens vibrantes, com movimento, cor e som, tão imponentes, que não dão tempo de reagir, é natural que o desenvolvimento da linguagem aconteça de forma mais lenta”, explica São Luís Castro.

A especialista lembra que ainda não existem “dados científicos” que comprovem que as crianças estão a ter mais dificuldades na aquisição da fala. Contudo, não descarta essa hipótese, pois “há muitos dados científicos sobre a aquisição da linguagem” que a relacionam com “o meio ambiente em que a criança se insere”.

Quando questionada pelo JPN sobre estratégias para estimular a linguagem oral, Anabela Alvarenga recomenda que “os pais eliminem ou, pelo menos, reduzam a exposição constante a ecrãs e promovam atividades que impliquem interação com a criança”, sublinhando a falta de convívio, que deve ser combatida. “Verifica-se muito, em restaurantes e espaços públicos, que cada um está no seu telefone. É visível e há pouca interação”, ilustra.

Verifica-se muito, em restaurantes e espaços públicos, que cada um está no seu telefone.

Relativamente à falta de tempo, frequentemente apontada pelos pais, a terapeuta reforça que a comunicação pode ser estimulada no dia a dia: “ao longo das rotinas, numa simples entrega dos meninos na escola ou no trajeto, [os pais podem] conversar com a criança”.

Além dessas técnicas, Anabela Alvarenga realça a importância de “brincar no exterior” e apela a que as crianças frequentem “parques infantis ao fim de semana ou ao final do dia”. A terapeuta da fala sugere também a leitura de histórias antes de dormir, em vez do uso de telemóveis e televisões, permitindo que “o cérebro se acalme naturalmente, promovendo um sono tranquilo e reparador”.

Anabela Alvarenga destaca a importância da identificação precoce de dificuldades na linguagem e salienta que “não é normal uma criança de três anos usar poucas palavras“. A terapeuta frisa que é necessário investigar as causas dessa limitação, avaliando cada caso individualmente, e defende que a intervenção precoce é essencial, pois pode evitar o agravamento das dificuldades e prejuízos na comunicação, socialização e aprendizagem.

A crescente influência do português do Brasil

Em conversa com o JPN, Anabela Alvarenga aponta outra tendência que tem verificado na fala das crianças portuguesas: a influência do português do Brasil e chama à atenção para este fenómeno. Na perspetiva da terapeuta da fala, esta realidade resulta da exposição excessiva a conteúdos digitais produzidos por brasileiros. “Neste momento, crianças que são portuguesas, ou seja, nasceram cá, utilizam a construção frásica do português do Brasil, que é muito diferente da nossa”, exemplifica.

A terapeuta acrescenta que esta influência não é apenas fruto da convivência com colegas imigrantes, como alguns pais sugerem: “É impossível isto ser só por terem meninos [brasileiros na sala]. Há sempre uma palavra ou uma expressão que apanham, acham piada e depois reproduzem, agora, é impossível uma criança que se desenvolveu cá, em Portugal, que não tem familiares brasileiros, falar apenas em português do Brasil. Isto tem a ver com a exposição a conteúdos brasileiros, sem dúvida”, argumenta Anabela Alvarenga.

Editado por Filipa Silva