Luciene Pavanelo, investigadora e professora da Universidade Estadual Paulista, visitou o Porto por altura dos 200 anos de Camilo Castelo Branco, celebrados este mês. Participou numa jornada científica organizada pelo Instituto de Literatura Comparada da FLUP, em parceria com a Casa dos Livros. Especialista camiliana e orientadora de vários estudantes de Camilo no Brasil, a docente partilhou com o JPN a sua perspetiva sobre a obra e o estudo da obra do autor nos dias de hoje.

Durante o ensino básico, Luciene Pavanelo leu “Amor de Perdição”, mas de uma forma “bastante ingénua”, como um estudante do ensino básico. Foi na Universidade de São Paulo que o professor Paulo Motta Oliveira apresentou um outro Camilo Castelo Branco a Luciene, muito distinto daquele que encontrava nos livros didáticos. “Eu me apaixonei pela leitura que esse professor fez”, conta Luciene ao JPN, “e fui procurá-lo, quando ainda estava na licenciatura, e começamos então um projeto de investigação em 2004.”

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Escritor, cronista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor Camilo Castelo Branco nasceu a 16 de março de 1825 em Lisboa e foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XIX. O autor lisboeta produziu mais de 260 obras durante toda a sua vida, destacando-se “Amor de Perdição“, romance que escreveu na Cadeia da Relação do Porto, onde esteve preso por adultério, em 1861. Após enfrentar cegueira causada por sífilis, Camilo cometeu suicídio em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão, em 1890.
 

Após finalizar o mestrado com uma dissertação sobre Camilo Castelo Branco, Luciene não deixou os seus estudos sobre o autor, seguindo para o doutoramento, com a orientação de Paulo Motta Oliveira. Em 2014, passou num concurso público na Unesp, que é a Universidade Estadual Paulista, tornando-se, então, professora de literatura portuguesa.

Hoje, Luciene tem vários orientandos de mestrado e de doutoramento, que segundo a própria, “também se apaixonam por Camilo Castelo Branco”.

Luciene Pavanelo junto à estátua de Camilo no Porto. Foto: Maria Miguel Marques/JPN

A obra romântica de Camilo 

Luciene Pavanelo procura mostrar aos seus alunos como Camilo Castelo Branco quebra as expectativas: “Quando eles estão no ensino básico, aprendem que Camilo Castelo Branco é um escritor de histórias de amor e isso, para o estudante muito jovem, não interessa mais.

Para cativar os seus alunos, Luciene ensina como a figura de Camilo é humorística e sarcástica. “Eles se interessam muito pela crítica social que o Camilo Castelo Branco faz”, diz. Luciene destaca a forma como Camilo representa a situação das mulheres da época, que eram submetidas aos maridos por casamentos de conveniência: “Essa crítica muito forte que Camilo faz a essa situação feminina e às desigualdades sociais interessa muito aos alunos. Camilo mostra que há um mundo que favorece os ricos em detrimento dos mais pobres e isso fascina-os muito”. O uso da metaficção, o trabalho dos narradores nas obras de Camilo e como o autor critica a própria literatura diferenciam-no para Luciene, que o considera “acima de escolas e modas literárias”.

A humanização de Tiradentes e outras referências de Camilo ao Brasil

O Brasil é um lugar com presença em grande parte da obra do autor português, contudo, “a maior parte dos estudos que são feitos [a envolver o Brasil e Camilo] focam na figura do brasileiro de torna-viagem, que, na verdade, é um português que enriqueceu no Brasil e depois tornou a Portugal”, refere Luciene. E há mais para onde olhar.

A professora salienta, por exemplo, que há algumas obras pouco estudadas, em que parte do enredo se passa no Brasil, como o romance “Demónio do Ouro“, em que uma das personagens é Tiradentes, um grande herói no Brasil.

Tiradentes foi uma das principais personagens do período colonial do Brasil, tendo sido enforcado por conspirar contra a Coroa Portuguesa. Luciene explica que Camilo “humaniza a figura de Tiradentes nesse romance” e que “os alunos acham muito interessante como o autor o transforma numa espécie de namorador”.

Camilo também tinha contactos com muitos amigos que tinham emigrado para o Brasil. Entre eles, Luciene destaca Faustino Xavier de Novaes, cunhado de Machado de Assis, que emigrou para o Brasil. Xavier de Novaes era um poeta muito famoso na época, muito amigo do Camilo, e trocavam correspondência.

Luciene conta que no preâmbulo do romance “Coração, Cabeça e Estômago“, “Camilo inventa uma conversa com Xavier de Novaes, dizendo: ‘sei que você está no Brasil’, como se ele estivesse dizendo para Faustino: ‘olha, este é o meu novo romance para ser publicado aí no Rio de Janeiro’.”

Luciene considera a polémica de 2023 à volta da estátua de Camilo Castelo Branco no Campo dos Mártires da Pátria, “tola”. Foto: Maria Miguel Marques/JPN

“Amor de Perdição” é a obra-prima de Camilo?

Luciene contraria a maior parte dos seus colegas camilianistas. Apesar de ter trabalhado bastante com “Amor de Perdição“, considera que não é a melhor obra do Camilo e entende que ela fez muito sucesso, por conta da prisão de Camilo na Cadeia da Relação do Porto, onde em 1861 escreveu o romance em apenas 15 dias.

“Houve essa associação por parte dos leitores, talvez da imprensa da época, que acabou perdurando na história literária”, afirma Luciene, “mas eu, particularmente, gosto mais de um Camilo mais crítico e para mim a obra-prima do Camilo é ‘Coração, Cabeça e Estômago’”.

No entanto, mesmo numa obra dramática como “Amor de Perdição”, Luciene também encontra crítica à sociedade, quando o autor comenta sobre a desigualdade social e a literatura da época: “são pequenos trechos da obra, mas que também são importantes e que, para mim, cativam mais do que a famosa história do Romeu e Julieta em português”.

Quando Luciene mostra outras formas de analisar aquela obra e torná-la mais complexa, a professora nota que os alunos também aprendem a ter um olhar interpretativo mais amplo.

Diálogo entre literatura e jornalismo 

O tempo em que Camilo foi jornalista influenciou também a sua escrita. Segundo Luciene, a primeira narrativa que o autor natural de Lisboa escreveu foi “Maria Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe”, uma obra de 1848 inspirada numa notícia de jornal sobre um crime que foi um grande escândalo na capital.

A ficção literária e a história jornalística fundem-se nesta narrativa, como exemplifica Luciene: “uma mulher assassinou e esquartejou a sua própria mãe e Camilo se aproveitou da comoção pública criada pelos jornais para escrever um grande sucesso literário.” A obra que descreve com muitos detalhes o assassinato da vítima e o esquartejamento foi, porém, uma criação de Camilo, porque não houve testemunhas do crime. “A própria assassina jamais confessou como matou a mãe e como a esquartejou”, explica Luciene.

Os “folhetos de cordel” que acolhiam as histórias de Camilo tinham uma linguagem característica popular e apelativa, “mas o autor é tão brilhante”, afirma Luciene, “que revestia esse discurso apelativo com um tom moralista e religioso, para se defender de críticas.” O autor publicava nos jornais grande parte da sua obra antes de a lançar em livro, sendo que essa proximidade da literatura com o jornal era muito típica do século XIX.

“É como se o jornal dependesse da literatura para vender e vice-versa”, afirma Luciene. A professora refere que “esses romances que eram publicados antes em jornal e depois reunidos em volume eram escritos aos poucos, acompanhando, por vezes, a reação do público”. Luciene compara esta estratégia com a das telenovelas de hoje, uma vez que “dependendo da reação do público, o autor alterava o enredo, havendo esse diálogo muito próximo entre o público e o escritor”.

Como fazer com que os alunos gostem de Camilo

Para Luciene, a compreensão da obra de Camilo depende do trabalho do professor: “pelo menos, os alunos brasileiros, muitas vezes, nem sequer compreendem a linguagem de Camilo, porque é muito distinta da nossa fala ou da nossa escrita do século XXI”. “Muitas vezes, eles compreendem somente a superfície do texto”, relata Luciene, “e é trabalho do professor fazer a mediação para ajudá-los a interpretar a obra.”

É quando a professora faz a leitura em sala de aula, que os alunos mudam a perspectiva. “A imensa maioria deles começa os meus cursos com um certo preconceito sobre Camilo”, revela a professora universitária, “acham que será chato, aborrecido”. “Eu sempre inicio o meu semestre dizendo aos alunos que é minha missão fazê-los gostar de Camilo Castelo Branco e não há alegria maior para mim do que, quando eu chego ao final do semestre, os alunos me falam: “nossa, professora, a senhora tinha razão, Camilo é divertido’”, sublinha.

“Investir em outras leituras de Camilo é essencial para cativar o aluno do século XXI”

É fundamental para a especialista “investir, acima de tudo, em outras leituras de Camilo”. “Já faz quase um século, e continuamos ainda repetindo o mesmo ponto de vista sobre a obra”, diz Luciene, “e esse ponto de vista, da primeira metade do século XX, já não interessa mais aos alunos”.

Ler os críticos mais jovens de Camilo ou pensar o que da obra dele pode cativar o aluno do século XXI são os desafios que Luciene considera enfrentar hoje: “Temos de abraçar esse desafio, porque, para mim, é uma pena que escritores clássicos sejam relegados ao esquecimento”.

A investigadora brasileira entende que quando se perde o olhar sobre o passado, o contemporâneo também perde grande parte do seu sentido: “Penso que aqui, em Portugal, há uma grande ideia de que apenas o contemporâneo interessa. Mas isso não é verdade, porque, para compreendermos o contemporâneo, é necessário entendermos a tradição literária”.

Editado por Filipa Silva