Para celebrar o Dia Mundial da Poesia, as "Brigadas de Intervenção Poética" da Faculdade de Medicina do Porto animaram os utentes da sala de espera do Serviço de Radioterapia da ULS São João.
“Escrevo versos ao meio-dia / e a morte ao sol é uma cabeleira / que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo / Estou vivo e escrevo sol”. Foram estes versos de António Ramos Rosa que deram início à intervenção poética realizada no Centro Hospitalar Universitário São João (ULS São João) para celebrar o Dia Mundial da Poesia.
Na sexta-feira (21), na sala de espera do Serviço de Radioterapia ecoaram palavras poéticas pelas vozes da estudante de medicina Anna Izabela Vasco, do médico e professor Rui Amaral Mendes e de Paula Ventura da Porto Editora, que se associou ao projeto. Numa sala composta, declamaram-se ainda poemas de Herberto Helder e Ana Luísa Amaral.
A iniciativa realizou-se no âmbito do projeto “Brigadas de Intervenção Poética”, que surgiu a partir da unidade curricular Poesia e Fotografia em Medicina, lecionada pelo professor Rui Amaral Mendes na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). A iniciativa faz ainda parte do projeto de Prescrição Cultural da Reitoria da Universidade do Porto.
A Porto Editora juntou-se ao projeto através da doação de 75 obras de poesia de autores portugueses.
Poesia enquanto prescrição cultural
Professor Rui Amaral Mendes Raquel Sousa/JPN
No tempo em que lecionou nos Estados Unidos da América, o professor Rui Amaral Mendes contactou de perto com projetos que utilizavam a literatura “como uma forma de empoderamento dos doentes”, especialmente na área da oncologia.
Após alguma pesquisa, percebeu que a iniciativa não era exclusiva da Cleveland Clinic, uma clínica de medicina parceira da universidade onde lecionava, mas que “grandes escolas médicas, [como] Stanford, Harvard, Columbia, tinham projetos similares.”
De regresso a Portugal, propôs à FMUP a criação de uma unidade curricular que juntasse a medicina, a poesia e a fotografia. Mas, para a ideia ter alguma “aplicação prática”, o professor criou, há cerca de um mês, as “Brigadas de Intervenção Poética”, que todas as semanas animam os doentes da ULS São João.
As “Brigadas de Intervenção Poética”, compostas por nove estudantes, atuam, para já, no Hospital de Dia de Psiquiatria, por ser necessário fazer um trabalho contínuo com os doentes, e na Unidade de Transplantes do Serviço de Hematologia, devido à “profunda fragilidade física e mental” dos doentes e ao seu nível de “isolamento“. No futuro, gostariam de trabalhar nas “unidades de cuidados paliativos” e de “lidar com doentes geriátricos”.
Durante as aulas, os alunos refletem “sobre a importância e o papel que a poesia e a fotografia podem desenvolver nesse processo de apropriação das narrativas de fragilidade.” Estudam poetas anglo-saxónicos, como Anne Sexton e William Carlos Williams, mas também poetas portugueses, como os já citados – Ana Luísa Amaral, António Ramos Rosa ou Herberto Helder – e outros que são médicos, casos de Jorge Sousa Braga ou João Guimarães.
Público Raquel Sousa/JPN
Quando questionado pelo JPN sobre a forma como a medicina pode ser poética, o professor refere que, na sua perspetiva, a poesia é que pode ser medicinal. Cita William Carlos Williams que afirmava ser importante estar “profundamente atento aos pormenores” aquando da construção de uma história clínica. Para Rui Amaral Mendes, é necessário saber comunicar com os doentes e a poesia “obriga-nos a estar atentos aos pequenos pormenores e dota-nos também de uma plasticidade naquilo que é o uso da linguagem, que estou em crer que vai ajudar os alunos mais tarde no próprio processo de comunicação com os doentes.”
Além disso, a poesia permite ainda aos alunos “treinar a empatia e a humanização”. É necessário “perceber que há uma dimensão que vai para lá da fisiologia, que vai para lá da anatomia e que é essencial para nós conseguirmos que as pessoas que têm doenças possam ser tratadas de forma mais holística possível”, acrescenta o professor.
Na quinta-feira (20), véspera do Dia Mundial da Poesia, o professor desafiou os doentes que têm acompanhado no contexto deste projeto a partilharem alguns poemas. O desafio foi aceite e “metade dos doentes” trouxe poemas de Fernando Pessoa e do seu heterónimo Alberto Caeiro, bem como de haikus, pequenos poemas japoneses. “Percebia-se que havia uma ligação daqueles poemas àquilo que era a sua própria condição. Isso é uma prova, um exemplo de que nós estamos no bom caminho”, referiu a propósito das escolhas.
“A poesia permite uma evasão” aos doentes
Alunos das “Brigadas de Intervenção Poética” Raquel Sousa/JPN
Para Anna Izabela Vasco, estudante de medicina e integrante das “Brigadas de Intervenção Poética”, a poesia “é vida”. A mãe, poeta e escritora, transmitiu-lhe o gosto pela poesia, que define como “a mágica que vemos nas pequenas coisas”.
Maria Catarina também faz parte das “Brigadas de Intervenção Poética”. Já declamou poemas no Serviço de Hematologia e refere que a “poesia e as palavras permitem que os doentes sintam uma evasão do ambiente em que estão”. Ao JPN, a estudante do quarto ano de medicina admite que a “comunicação de igual para igual faz a diferença no internamento” e que a partilha de poesia permite-lhes ajudar a curar “a alma e os sentimentos” dos doentes.
Também Emanuel Pinheiro tem uma relação “muito próxima” com a poesia. Cresceu a ler e a identificar-se com os poemas, mas diz não fazer distinção entre poesia, prosa poética e prosa, porque entende todas estas formas literárias como belas. Defende que a poesia não é um “bicho-papão” e que “nasce das pessoas na prática e não na teoria.”
“Há muita gente que tem medo de um poema, seja grande, seja pequeno. Olha para aquilo e diz ‘não percebi nada’ e percebeu.” Dá o exemplo de um doente que conheceu no Hospital de Dia de Psiquiatria, que afirmava não gostar de poesia. Quando as “Brigadas de Intervenção Poética” leram um poema sobre um cão, o paciente identificou-se com o tema, pois também tinha um cão, e a sua relação com a poesia mudou. “A poesia nasce da pessoa”, conclui Emanuel.
Para o estudante do quinto ano, “a medicina é inerentemente poética”. Tanto pela origem da palavra, que provem do latim ars medicinae, que na tradução literal significa “arte da medicina”, “É indissociável a medicina e a arte. E quem nos diz que nós temos que humanizar a medicina só nos está a lembrar daquilo que é a medicina. A medicina [nasceu] porque olhei para o meu irmão e pensei ‘esta pessoa precisa de mim'”, concluiu.
Editado por Filipa Silva