Na rua das Virtudes, o Torreão alia gastronomia com uma missão social, proporcionando emprego e formação a pessoas em situação de exclusão social. O JPN foi conhecer a iniciativa.
Localizado no coração do Porto, o Restaurante Torreão não é apenas um ponto de interesse gastronómico, é um projeto social que emprega pessoas em exclusão social, proporcionando-lhes, por essa via, novas oportunidades de integração. Instalado num torreão do século XIV, este espaço combina história, gastronomia e uma apetecível vista para o rio Douro.
O restaurante é parte de um projeto desenvolvido pelo SAOM (Serviço de Assistência Organizações de Maria), uma instituição de solidariedade social criada em 1976. A ideia teve início em 2006, com o projeto “Dar Sentido à Vida”, que tem como objetivo principal a dignificação e reintegração social de pessoas em situação de sem-abrigo ou em risco grave de exclusão social.
O projeto procura proporcionar uma maior qualificação académica, uma formação especializada na área de hotelaria e restauração, além do desenvolvimento de competências pessoais, sociais e profissionais essenciais para uma reintegração profissional sustentável.
Do restaurante à transformação social
Sandra Bela Jesus, responsável pela gestão de eventos, clientes e animação sociocultural do SAOM, é uma das coordenadoras do projeto e explica que a ideia do Torreão surgiu da necessidade de tornar a instituição socialmente autossustentável. “É difícil e, muitas vezes, quase uma tarefa hercúlea, tornar as instituições sociais sustentáveis ao nível financeiro. Existem apoios, mas as necessidades são sempre maiores do que o que conseguimos oferecer”, começa por explicar a coordenadora.
O Torreão abriu as portas a 29 de junho de 2016, mas a experiência comercial do SAOM teve início dois anos antes, com o restaurante “Português de Gema“. Localizado na Rua de Santana, o estabelecimento começou como uma mercearia de ovos moles e evoluiu para um restaurante de sucesso, inspirando a criação do Torreão, nas Virtudes. O objetivo era aproveitar os espaços disponíveis e transformá-los em fontes de financiamento para as diversas atividades sociais do SAOM, que incluem apoio a idosos, equipas de rua, cantina e lavandaria social.
O modelo de negócio do Torreão tem como pilar a capacitação profissional de pessoas com trajetórias de vida desafiadoras. “Trabalhamos com pessoas de percursos alternativos, oferecendo formação na área da restauração. Muitas chegam até nós através de outras instituições que apoiam sem-abrigo, ex-toxicodependentes e pessoas em recuperação”, explica Sandra Bela Jesus.
O processo de formação é realizado em parceria com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, através de cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA), que oferecem certificação escolar e profissional. Durante os cursos, os formandos passam por estágios em restaurantes e hotéis, e alguns são integrados na equipa do Torreão. Desde a sua abertura, cerca de 400 pessoas já passaram pelo projeto.
Uma história que se destaca é a de um dos responsáveis pela manutenção do restaurante. “Ele teve um percurso de droga de quase 20 anos e foi um dos primeiros formandos, em 2012 ou 2013. Hoje, é um profissional extraordinário e essencial para o funcionamento das nossas instalações”, conta Sandra Bela Jesus.
A gestão de um negócio social traz desafios específicos, sendo a gestão de pessoas um dos principais. “Os casos mais difíceis são os que ficam connosco. Trabalhamos não apenas a inserção profissional, mas também o apoio pessoal, ajudando no desenvolvimento de competências académicas e técnicas”, diz a coordenadora.
A pandemia teve um impacto negativo no funcionamento do restaurante, mas, atualmente, as atividades estão estabilizadas. Questionada sobre a possibilidade de abrir um novo Torreão em outra localização, a responsável diz ao JPN que já houve reflexões sobre essa expansão, mas que qualquer novo projeto depende de parcerias e definições concretas. Além dos restaurantes, o SAOM também administra a cantina da multinacional de seguros AGEAS, de forma a reforçar a sua atuação no setor.
Da rua ao sucesso profissional
Ricardo Simões é empregado de mesa e barman no Torreão. Foto: Bárbara Sequeira Pinto/JPN
Ricardo Simões, empregado de mesa e barman no Torreão, tem uma história de vida marcada pela superação. Começou a morar na rua aos 16 anos, depois do falecimento dos pais e, durante anos, viveu em situação de sem-abrigo.
A trajetória de Ricardo mudou quando decidiu pedir ajuda: “trabalhei como cortador de carnes verdes num talho e depois no Pingo Doce durante quatro anos, mas um mal-entendido levou a que me despedissem e acabei, novamente, na rua. Ao fim de dois anos, percebi que não queria mais aquela vida e procurei apoio”.
Foi nesse momento que conheceu o Torreão através de um programa de formação: “inscrevi-me na formação de empregado de mesa e bar e estive aqui durante dois anos, terminei o 12.º ano e fiquei a trabalhar”. No entanto, a sua primeira passagem pelo restaurante acabou por ser desafiante. “Trabalhava na copa e sentia-me frustrado por não interagir com os clientes, que era o que realmente gostava de fazer e, então, decidi sair”, explicou o funcionário ao JPN.
Após a saída do Torreão, trabalhou, durante quatro anos, em bares e restaurantes no Porto, para ganhar mais experiência na área da restauração. O regresso ao Torreão deu-se em plena pandemia, quando lhe foi dada uma nova oportunidade. “O que sou hoje devo a esta casa que me deu uma segunda oportunidade e eu sou muito grato por isso”, reconhece Ricardo.
O trabalho no Torreão tem desafios específicos, já que o restaurante emprega pessoas que passaram por situações de vulnerabilidade: “não é fácil, porque precisamos de ter um grande encaixe para trabalhar aqui. Lidamos com pessoas que enfrentam dificuldades enormes”.
Quanto ao futuro, Ricardo sente que a sua experiência no Torreão foi essencial para o seu crescimento pessoal e profissional: “aprendi muito aqui e tento passar essa experiência para os meus colegas”. Contudo, deixa um alerta: “90% da mudança depende da própria pessoa. Nós podemos ajudar, aconselhar, mas só elas podem mudar o seu próprio caminho”.
Mais do que cozinha, uma missão de inclusão
André Almeida é chefe de cozinha no Torreão desde 2021. Foto: Bárbara Sequeira Pinto/JPN
Além da missão social, o Restaurante Torreão também se destaca pela qualidade gastronómica.
André Almeida, chefe de cozinha do restaurante há quatro anos, destaca os desafios deste modelo: “é desafiante, porque a maior parte dessas pessoas nunca trabalhou a longo prazo e tem dificuldades com a disciplina e as rotinas”.
O programa desenvolvido no restaurante inclui cursos de formação em serviço de mesas, cozinha e pastelaria, dirigidos para pessoas em situação de sem-abrigo, antigos reclusos e ex-dependentes químicos.
Ao longo dos anos, diversas histórias marcaram a trajetória do restaurante. André Almeida relata um caso que ilustra a complexidade do trabalho: “recebemos um funcionário com problemas de alcoolismo. Logo pela manhã, no primeiro dia, bebeu uma garrafa de gin e sentou-se ali numa das melhores mesas do restaurante com vista para o Douro. Quando chegou a hora do serviço, já estava completamente embriagado”.
Mas há, claro, histórias de sucesso: “tínhamos o Edgar, que estava a trilhar um bom caminho. Ele não tinha problemas com drogas ou álcool, mas lutava contra a esquizofrenia. Com o tempo, a sua condição psicológica agravou-se, o que impactou a sua jornada profissional, mas tirando essa parte mental tinha muita força de vontade e saiu-se muito bem cá”.
Embora as funções atribuídas a cada funcionário estejam adaptadas às suas condições físicas e psicológicas, o chefe garante que “dentro disso, são tratados como qualquer outro profissional”.
Apesar do impacto positivo do projeto, o chefe de cozinha destaca as dificuldades de manter uma iniciativa como essa sem o devido apoio. “Ao nível nacional, somos um dos poucos restaurantes que fazem este trabalho. Há iniciativas semelhantes em Lisboa, mas poucas têm apoio suficiente para continuar, o que nos faz falta cá”, confessou André Almeida ao JPN.
O chefe reforça a importância do apoio governamental e da comunidade para que mais pessoas possam ser integradas no mercado de trabalho: “se houvesse mais incentivos financeiros e programas de apoio, muitos outros restaurantes poderiam aderir a essa iniciativa e contribuir para a reinserção de pessoas em situação de vulnerabilidade”.
Editado por Filipa Silva